Conto de Mário de Andrade
por Cristiane Rauen
Sobre o livro
"Contos Novos", publicados postumamente em 1947, foram escritos por Mário de Andrade. A obra reúne nove narrativas da maturidade artística do autor, de estrutura moderna, que acolhem as principais correntes ficcionistas que marcaram a Literatura Brasileira das décadas de 30 e 40.
Análise do conto
Mademoiselle, uma francesa solteirona de 43 anos, é a preceptora das filhas de Dona Lúcia, mulher rica e separada da São Paulo do início do século XX.
Alba e Lúcia são as adolescentes de 15 e 16 anos atendidas por Mademoiselle, inicialmente em aulas de francês, e, com o passar do tempo, como dama de companhia.
As meninas são bastante viajadas, conhecem outras línguas e culturas e acabam elas mesmas sendo a companhia que falta a Mademoiselle, mantida como acompanhante mais por piedade do que por necessidade.
Conversam sobre tudo, e o assunto preferido é a presença masculina nas diversas experiências que as meninas viveram (ou fingem viver) e que acabam por perturbar a preceptora frustrada.
Mademoiselle vive adoentada, resfriada e com uma coriza constante. É tomada por obsessivos anseios sexuais - "um vendaval de mal de sexo", e dissimula seus impulsos em conversas com suas pupilas, que são cheias de trocadilhos infames, numa língua que o autor denomina “franco-brasileira”.
Os diálogos entre elas são sempre em francês e contém muitas expressões de duplo sentido que podem acabar por tornar a leitura um pouco cansativa, principalmente para aqueles que sentirão necessidade de traduzi-los.
Apesar de a não tradução não prejudicar a compreensão da obra, os trocadilhos são em essência um recurso utilizado pelo autor para explicitar os conflitos internos vividos pela personagem principal, com suas constantes repreensões às falas das meninas e risinhos histéricos.
A narrativa da obra é onisciente em terceira pessoa. Essa opção permite ao narrador explorar as angústias e aflições da personagem influenciado, aparentemente, pela psicanálise e pelas ideias freudianas, bastante popularizadas em todo o mundo naquele período. Lembrou-me, nesse sentido, o tipo de narrativa e de história do conto lido no ano passado: "Capote". Uma interessante coincidência.
É também intrigante a forma como o autor, apesar da narrativa onisciente, opta por distanciar-se da personagem principal, sem denominá-la, apenas referindo-se a ela de forma irônica ou pejorativa - Mademoiselle, velhota etc.
O ponto auge da obra se inicia quando as meninas contam a Mademoiselle o episódio em que haviam presenciado atrás da catedral francesa de Ruão um homem barbudo em atitude suspeita.
Dividida entre a curiosidade, o temor e o desejo, Mademoiselle passa a desviar seu caminho para a pensão onde mora e a dirigir-se aos fundos das catedrais da cidade para quem sabe passar por experiência semelhante.
Em dada ocasião, durante um evento em que acompanhava a família de Dona Lúcia, bastante resfriada, a preceptora acaba por tomar mais rum do que devia. No caminho de volta para casa tem alucinações com os passageiros do bonde. Em suas fantasias, vários deles a perseguem, tentando sequestrá-la.
Assustada, Mademoiselle desce num ponto anterior ao seu e percebe-se próxima à catedral de Santa Cecília (ou seria a Catedral de Ruão?).
Ainda aturdida, porém sem hesitar, contorna a catedral e percebe-se seguida por dois homens (de barba?).
Mademoiselle chega a delirar que eles a alcançariam e a violentariam sem piedade, tal como acontecera em sua imaginação no episódio atrás da Catedral de Ruão.
Chegava a visualizar o crime hediondo, as roupas ensanguentadas e rasgadas, as pessoas que encontrariam o seu corpo no dia seguinte, e o terror das meninas ao receberem a notícia. Pobres meninas!
No entanto, na real experiência vivida por Mademoiselle, os homens da Catedral de Santa Cecília sequer se aproximaram. Apenas, por coincidência, fizeram o mesmo trajeto e encontram-na na porta da pensão.
O desfecho da obra é irônico e imprevisível. Mademoiselle, já acolhida na entrada de sua pensão, ao ver os homens se aproximando, obstrui sua passagem e oferece a eles dois níqueis como forma de agradecimento pela companhia.
Esse desfecho enfatiza a constante oposição presente na obra entre o moralismo e os instintos naturais femininos, que devem (claro!) ser reprimidos, disfarçados tanto na forma da linguagem quanto no acometimento da saúde física e mental da protagonista.
O possível acometimento psíquico de Mademoiselle demonstra, ainda que implicitamente, uma forma de histeria. Vivenciar a experiência no percurso atrás da Catedral corresponderia a uma espécie de tratamento, de alívio à sua condição, motivo pelo qual os dois sujeitos que abalaram o seu imaginário mereceram o devido ressarcimento financeiro.
Trata-se de obra bem desenhada, repleta de duplos sentidos, de dualidades, do implícito que revela o verdadeiro, o real. A apresentação de uma senhora aturdida em busca de seu feminino, de sua essência, tal qual uma sociedade à procura de sua identidade, do novo, de novos caminhos, novos contos, de Contos Novos. Recomendo com entusiasmo!
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ilustração: foto de OSM de Zuleno Pessoa (1977)