de Afonso Cruz
Companhia das Letras, São Paulo (2019)
por Marília Macedo Klotz
SOBRE O AUTOR
Afonso
Cruz, nasceu na cidade de Figueira da Foz em Portugal em julho de 1971, hoje
com 48 anos de idade.
Ainda
criança mudou com a família para Lisboa, onde estudou na Escola Secundária
Artística Antônio Arroio, nas Belas Artes e no Instituto Superior de Artes
Plásticas da Madeira.
Desde
sempre foi ligado as artes em especial a música, embora fosse considerado um
“duro de ouvido”. Com 18 anos comprou
uma guitarra e aprendeu a tocar sozinho.
Entretanto, seu primeiro emprego
como profissional não foi com a música,
mas sim com a animação. Segundo ele não era uma vocação , mas um trabalho para
sustentar o modo de vida que desejava ter , ou seja, trabalhar 6 meses e viajar
os outro seis.
Em
10 anos conseguiu visitar 60 países e dentre os que mais gostou destaca-se o
Brasil e a Síria. Dessa lista, a Índia foi motivo de expectativas e grandes
decepções.
Passado
o tempo da viagens e com a chegada de seu primeiro filho decidiu com sua mulher
Maria João sair de Lisboa para morar em um sítio. Assim fizeram e foram para
Monte Novo no Alantejo que fica mais ou menos uma hora de Lisboa, onde moram
até hoje.
Nessa
época das mudanças, iniciou carreira de escritor, de ilustrador e criou um
grupo musical chamado “The Soaked Lamb” ( O cordeiro ensopado), uma banda de
Blues.
Afonso
Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico. Publicou mais de 30 livros,
tendo estreiado na literatura com o romance “ A Carne de Deus”. Em 2009 ganhou o Prêmio de Conto Camilo
Castelo Branco com o livro “Enciclopédia da Estória Universal “.
Na
lista de suas publicações encontramos: “Os livros que devoraram meu pai “ –
2011;
“A Boneca de Kokoschka” – 2012,
que ganhou o prêmio da União Européia para a Literatura ; “ Jesus bebia Cerveja”, considerado o Livro
do Ano e ganhador do Time Out.
No
ano seguinte 2013 , se destacou com “O Cultivo da Flores de Plástico” feito
essencialmente para o teatro e, também, “Para onde vão as Grandes Chuvas”.
Em
2015, venceu o prêmio de Ilustração pela obra
“ Capital “ e também lançou
“Flores “, um romance inquietante que fala sobre amor, a falta de memória e as
perdas em geral.
Este
ano – 2019 , publicou “Como Cozinhar uma Criança “ e o ensaio “ O Macaco Bêbado
foi a Ópera “.
Além
das obras literárias esse jovem escritor português também fez filmes entre os
quais “Planets Aren’t Going Anywhere “
e “Misanhopo “ que foram os mais
conhecidos.
Com
sua Banda de Blues fez inúmeras apresentações sempre criativas e de boa
receptividade.
Segundo
os críticos Afonso Cruz é “uma das vozes
mais criativas da nova literatura em língua portuguesa (Mia Couto) e,
certamente “ alcançará um lugar de grande destaque” (El País).
SOBRE O LIVRO
“Flores” é um
romance instigante, de leitura fácil que fala sobre o amor, a perda da memória,
da morte, das referências familiares e culturais que compõem nossa identidade.
“Flores” é também o sobrenome de um
trio de irmãs – Dália, Margarida e Violeta, que foram as protagonistas dos
desejos adolescentes de um tal Sr. Manuel Ulme e seus amigos de infância de
quem o narrador se encarrega de esclarecer.
A
história começa com a morte e enterro do pai do protagonista, um jornalista que
vive uma vida sem graça com sua mulher Clarisse e sua filha Beatriz.
Nesse
momento de despedida fúnebre, como diz o narrador,” estava com os sentimentos à
deriva, sem correr uma lágrima, mas com os destroços da morte que compareciam
por todo lado diante da triste realidade da perda do pai”. Apesar do impacto,
intensificado pela concretude do fato e da expressão de dor de sua mãe,
veio-lhe o contraditório pensamento de que ao invés do imaginado odor de coisa
podre a morte cheirava a Flores , neste seu trabalho de transformar tudo em
terra e em pó. O jornalista, então, se
dá conta de que as perdas não são todas iguais assim como as lágrimas que
derramamos por uma cebola ou pelo coração.
A partir daí passa a notar o comportamento de seus vizinhos, antes
desapercebidos, em especial do Sr Manuel Ulme que perdeu a memória em
consequência de um aneurisma cerebral.
Esse senhor não lembra da infância, do primeiro beijo e muito menos de
ter visto uma mulher nua em sua vida.
Comovido,
o jornalista se propõe ajudar o vizinho na recuperação da memória perdida e da
sua história de vida. Faz uma pesquisa empírica, visitando a aldeia onde ele
morou, procurando seus conhecidos, amigos e todos que pudessem revelar algo
sobre a identidade daquele senhor.
Esse
trabalho lhe dá uma grande “dor de cabeça” e faz ele pensar “como seria
possível caber tanta dor em tão poucos centímetros de crânio”. Descobre uma dualidade acerca daquele homem
que era bom e perverso ao mesmo tempo. Porém não percebe em si mesmo a contradição
entre não se achar supersticioso e não aguentar um chapéu jogado
displicentemente sobre a cama. Tempos de desconhecimento e resistência ao saber!
O
casamento com Clarice está em crise e vive uma enorme rotina sem emoção. Para
piorar as coisas sua filha presencia um momento de traição conjugal que abala a
relação entre pai e filha, daí para frente sem aproximação e afeto.
Em
alguns momentos o personagem principal – narrador, tem diálogos consigo mesmo e
com o espelho que lhe dá a violenta consciência da realidade. Mostra-lhe a imagem de um homem deprimido,
pouco sociável, que busca saber o que é o amor.
Além do espelho, os diálogos com o velho Sr. Ulme lhe mostram que a vida
não é o que parece e que é a reflexão da
luz interior que faz com que cada pessoa tenha cor própria. Nesse sentido, cada
vivência conta e por isso cada pessoa tem o tamanho do universo que merece. (pg
25)
Por
outro lado, e junto com a percepção do Sr. Ulme frente as tragédias que se
apresentam diariamente nos jornais e TV, reconhece que andamos pouco solidários
e muito anestesiados diante do humano.
Escuta
a reflexão do velho quanto a realidade ser responsável pela falta de
felicidade. Segundo ele o sonho nos conforta, mas a realidade nos trás medo,
solidão e desespero. Precisamos Sorrir,
“pois um sorriso transforma o homem e lhe trás a promessa de alegria e
satisfação”. Essa reflexão não será
esquecida e seguirá o narrador até o final de sua relação com o vizinho que no
fim da vida tinha sua debilidade física coberta com recortes e fotografias de
sorrisos que lhe eram colados na boca por ele e por Beatriz. Além do sorriso
fala da importância da poesia que “adoça a vida e ameniza os efeitos da dura
realidade.
Quanto
a infância, reconhece como é difícil esse tempo do desenvolvimento humano e
comove-se com sua filha Beatriz no enfrentamento das mazelas da vida e no
aprendizado de tantas coisas estúpidas que são transmitidas às crianças. Faz uma crítica a condição social das
crianças e das mulheres daquele tempo, onde viviam em um canto sem prestígio e
sem reconhecimento, mas conclui que hoje
não é muito diferente. Margarida, uma das irmãs Flores e eterna paixão do Sr.
Ulme, contribuiu para essas concepções.
Para contrariedade da família e de todos, tornou-se cantora de Fado, seguindo e
sustentando seus próprios desejos.
No resgate da
história do vizinho, o narrador faz uma viagem pelos vários aspectos de sua
própria vida, inclusive na questão religiosa. Mas, durante esse processo de
conhecimento Clarice e ele se separam, porque viver realmente não tem nada a
ver com a rotina e com aquilo que as pessoas fazem todos os dias. “Viver é
precisamente o oposto”. Desde então,
começa outro tipo de convivência com a ex-mulher e com sua filha que acompanha
o pai nos cuidados com o Sr. Ulme servindo-lhe de tradutora e mediadora diante
da incapacidade de compreensão e sensibilidade do pai.
Na busca
obessiva do narrador pela história e identidade do Sr. Manuel Ulme confronta-se
com as verdades, mas “elas não se ouvem
“ já que ninguém verdadeiramente quer saber disso. Diz ele: “ quando se vive
privado de tudo a verdade importa, mas quando a temos por todo lado, parece uma
ficção” (pg89) O que importa é termos
coração !!!!
Assim que seguindo as palavras do
Sr. Ulme o narrador vai “ entrando cada
vez mais na espessura”, aprofundando a pesquisa sobre o vizinho, mas
sobretudo sobre si mesmo. É uma viagem
as profundezas do ser humano e conclui que “precisamos ir falando para dentro
de nós” (pg 109)
Essa é a
verdadeira chave que o Sr Ulme trás consigo pendurada no pescoço. Sua função – metafórica o jornalista só vai
conhecer no final do livro, quando finalmente encontra a porta que abre para desvendar o mistério da vida sempre
presente no cotidiano e nada surpreendente.
“Entremos mais
dentro da espessura”, ou seja, vamos
mais a fundo para não envergonhar Darwin , quanto a evolução humana. Para tal,
na sua lucidez o Sr. Ulme coloca a questão de não perder tempo a morrer
enquanto pode estar vivo! Como nos diz o ditado a realidade se impõe, mas a
esperança é a última que morre. O
diálogo entre eles ilustra isso. O narrador pergunta ao vizinho depois de uma
consulta médica: Quanto tempo lhe deram de vida? Ele reponde: A eternidade.
Estou cada vez mais próximo dela. Deram-me a porra da esperança que é
infinita.... então, o que custa acreditar na eternidade? (pg 172)
Finalmente, o
livro termina mostrando ao narrador que apesar do espelho mostrar –lhe a realidade de não saber dançar, não ter jogo
de pés, não espancar a realidade, não juntar Box e canção lírica, devemos resistir com amor e solidariedade tal
qual o Sr. Ulme e a doce Beatriz.
Entremos mais
dentro da espessura e assim poderemos tolerar o “chapéu sobre a cama” e agir
com” Altitude “!!!!
O livro é uma
dose de realidade, mas uma grande mensagem de esperança!!!!
Gostei e
recomendo.