quarta-feira, 13 de novembro de 2019

FLORES

de Afonso Cruz

Companhia das Letras, São Paulo (2019)


por Marília Macedo Klotz

SOBRE O AUTOR

            Afonso Cruz, nasceu na cidade de Figueira da Foz em Portugal em julho de 1971, hoje com 48 anos de idade. 
            Ainda criança mudou com a família para Lisboa, onde estudou na Escola Secundária Artística Antônio Arroio, nas Belas Artes e no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira.
            Desde sempre foi ligado as artes em especial a música, embora fosse considerado um “duro de ouvido”.  Com 18 anos comprou uma guitarra e aprendeu a tocar sozinho.  Entretanto, seu  primeiro emprego como profissional  não foi com a música, mas sim com a animação. Segundo ele não era uma vocação , mas um trabalho para sustentar o modo de vida que desejava ter , ou seja, trabalhar 6 meses e viajar os outro seis.
            Em 10 anos conseguiu visitar 60 países e dentre os que mais gostou destaca-se o Brasil e a Síria.  Dessa lista,  a Índia foi motivo de expectativas e grandes decepções.
            Passado o tempo da viagens e com a chegada de seu primeiro filho decidiu com sua mulher Maria João sair de Lisboa para morar em um sítio. Assim fizeram e foram para Monte Novo no Alantejo que fica mais ou menos uma hora de Lisboa, onde moram até hoje.
            Nessa época das mudanças, iniciou carreira de escritor, de ilustrador e criou um grupo musical chamado “The Soaked Lamb” ( O cordeiro ensopado), uma banda de Blues.
            Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico. Publicou mais de 30 livros, tendo estreiado na literatura com o romance “ A Carne de Deus”.  Em 2009 ganhou o Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco com o livro “Enciclopédia da Estória Universal “.
            Na lista de suas publicações encontramos: “Os livros que devoraram meu pai “ – 2011;
“A Boneca de Kokoschka” – 2012, que ganhou o prêmio da União Européia para a Literatura ;  “ Jesus bebia Cerveja”, considerado o Livro do Ano e ganhador do Time Out.
            No ano seguinte 2013 , se destacou com “O Cultivo da Flores de Plástico” feito essencialmente para o teatro e, também, “Para onde vão as Grandes Chuvas”.
            Em 2015, venceu o prêmio de Ilustração pela obra  “ Capital “  e também lançou “Flores “, um romance inquietante que fala sobre amor, a falta de memória e as perdas em geral.
            Este ano – 2019 , publicou “Como Cozinhar uma Criança “ e o ensaio “ O Macaco Bêbado foi a Ópera “.
            Além das obras literárias esse jovem escritor português também fez filmes entre os quais “Planets Aren’t Going Anywhere “  e  “Misanhopo “ que foram os mais conhecidos.
            Com sua Banda de Blues fez inúmeras apresentações sempre criativas e de boa receptividade.
            Segundo os críticos Afonso Cruz é  “uma das vozes mais criativas da nova literatura em língua portuguesa (Mia Couto) e, certamente “ alcançará um lugar de grande destaque” (El País).  

                                               SOBRE O LIVRO

            “Flores” é um romance instigante, de leitura fácil que fala sobre o amor, a perda da memória, da morte, das referências familiares e culturais que compõem nossa identidade.
            “Flores” é também o sobrenome de um trio de irmãs – Dália, Margarida e Violeta, que foram as protagonistas dos desejos adolescentes de um tal Sr. Manuel Ulme e seus amigos de infância de quem o narrador se encarrega de esclarecer.
            A história começa com a morte e enterro do pai do protagonista, um jornalista que vive uma vida sem graça com sua mulher Clarisse e sua filha Beatriz.
            Nesse momento de despedida fúnebre, como diz o narrador,” estava com os sentimentos à deriva, sem correr uma lágrima, mas com os destroços da morte que compareciam por todo lado diante da triste realidade da perda do pai”. Apesar do impacto, intensificado pela concretude do fato e da expressão de dor de sua mãe, veio-lhe o contraditório pensamento de que ao invés do imaginado odor de coisa podre a morte cheirava a Flores , neste seu trabalho de transformar tudo em terra e em pó.  O jornalista, então, se dá conta de que as perdas não são todas iguais assim como as lágrimas que derramamos por uma cebola ou pelo coração.  A partir daí passa a notar o comportamento de seus vizinhos, antes desapercebidos, em especial do Sr Manuel Ulme que perdeu a memória em consequência de um aneurisma cerebral.  Esse senhor não lembra da infância, do primeiro beijo e muito menos de ter visto uma mulher nua em sua vida.
            Comovido, o jornalista se propõe ajudar o vizinho na recuperação da memória perdida e da sua história de vida. Faz uma pesquisa empírica, visitando a aldeia onde ele morou, procurando seus conhecidos, amigos e todos que pudessem revelar algo sobre a identidade daquele senhor.
            Esse trabalho lhe dá uma grande “dor de cabeça” e faz ele pensar “como seria possível caber tanta dor em tão poucos centímetros de crânio”.  Descobre uma dualidade acerca daquele homem que era bom e perverso ao mesmo tempo. Porém não percebe em si mesmo a contradição entre não se achar supersticioso e não aguentar um chapéu jogado displicentemente sobre a cama. Tempos de desconhecimento e resistência ao saber!
            O casamento com Clarice está em crise e vive uma enorme rotina sem emoção. Para piorar as coisas sua filha presencia um momento de traição conjugal que abala a relação entre pai e filha, daí para frente sem aproximação e afeto.
            Em alguns momentos o personagem principal – narrador, tem diálogos consigo mesmo e com o espelho que lhe dá a violenta consciência da realidade.  Mostra-lhe a imagem de um homem deprimido, pouco sociável, que busca saber o que é o amor.  Além do espelho, os diálogos com o velho Sr. Ulme lhe mostram que a vida não é o que parece e que é a reflexão da luz interior que faz com que cada pessoa tenha cor própria. Nesse sentido, cada vivência conta e por isso cada pessoa tem o tamanho do universo que merece. (pg 25)
            Por outro lado, e junto com a percepção do Sr. Ulme frente as tragédias que se apresentam diariamente nos jornais e TV, reconhece que andamos pouco solidários e muito anestesiados diante do humano.
            Escuta a reflexão do velho quanto a realidade ser responsável pela falta de felicidade. Segundo ele o sonho nos conforta, mas a realidade nos trás medo, solidão e desespero. Precisamos Sorrir, “pois um sorriso transforma o homem e lhe trás a promessa de alegria e satisfação”.  Essa reflexão não será esquecida e seguirá o narrador até o final de sua relação com o vizinho que no fim da vida tinha sua debilidade física coberta com recortes e fotografias de sorrisos que lhe eram colados na boca por ele e por Beatriz. Além do sorriso fala da importância da poesia que “adoça a vida e ameniza os efeitos da dura realidade.
            Quanto a infância, reconhece como é difícil esse tempo do desenvolvimento humano e comove-se com sua filha Beatriz no enfrentamento das mazelas da vida e no aprendizado de tantas coisas estúpidas que são transmitidas às crianças.  Faz uma crítica a condição social das crianças e das mulheres daquele tempo, onde viviam em um canto sem prestígio e sem  reconhecimento, mas conclui que hoje não é muito diferente. Margarida, uma das irmãs Flores e eterna paixão do Sr. Ulme,  contribuiu para essas concepções. Para contrariedade da família e de todos, tornou-se cantora de Fado, seguindo e sustentando seus próprios desejos.
No resgate da história do vizinho, o narrador faz uma viagem pelos vários aspectos de sua própria vida, inclusive na questão religiosa. Mas, durante esse processo de conhecimento Clarice e ele se separam, porque viver realmente não tem nada a ver com a rotina e com aquilo que as pessoas fazem todos os dias. “Viver é precisamente o oposto”.  Desde então, começa outro tipo de convivência com a ex-mulher e com sua filha que acompanha o pai nos cuidados com o Sr. Ulme servindo-lhe de tradutora e mediadora diante da incapacidade de compreensão e sensibilidade do pai.
Na busca obessiva do narrador pela história e identidade do Sr. Manuel Ulme confronta-se  com as verdades, mas “elas não se ouvem “ já que ninguém verdadeiramente quer saber disso. Diz ele: “ quando se vive privado de tudo a verdade importa, mas quando a temos por todo lado, parece uma ficção” (pg89) O que importa é termos coração !!!!
            Assim que seguindo as palavras do Sr. Ulme o narrador vai “ entrando cada vez mais na espessura”, aprofundando a pesquisa sobre o vizinho, mas sobretudo sobre si mesmo. É uma viagem as profundezas do ser humano e conclui que “precisamos ir falando para dentro de nós” (pg 109)
Essa é a verdadeira chave que o Sr Ulme trás consigo pendurada no pescoço.  Sua função – metafórica o jornalista só vai conhecer no final do livro, quando finalmente encontra a porta que abre  para desvendar o mistério da vida sempre presente no cotidiano e nada surpreendente.
“Entremos mais dentro da espessura”, ou seja,  vamos mais a fundo para não envergonhar Darwin , quanto a evolução humana. Para tal, na sua lucidez o Sr. Ulme coloca a questão de não perder tempo a morrer enquanto pode estar vivo! Como nos diz o ditado a realidade se impõe, mas a esperança é a última que morre.  O diálogo entre eles ilustra isso. O narrador pergunta ao vizinho depois de uma consulta médica: Quanto tempo lhe deram de vida? Ele reponde: A eternidade. Estou cada vez mais próximo dela. Deram-me a porra da esperança que é infinita.... então, o que custa acreditar na eternidade? (pg 172)
Finalmente, o livro termina mostrando ao narrador que apesar do espelho mostrar –lhe  a realidade de não saber dançar, não ter jogo de pés, não espancar a realidade, não juntar Box e canção lírica,  devemos resistir com amor e solidariedade tal qual o Sr. Ulme e a doce Beatriz.
Entremos mais dentro da espessura e assim poderemos tolerar o “chapéu sobre a cama” e agir com” Altitude “!!!!
O livro é uma dose de realidade, mas uma grande mensagem de esperança!!!!
Gostei e recomendo.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

FLORES

de Afonso Cruz

Comentários de Carlos Guido Azevedo


Alguns autores se identificam conosco de maneira direta e sólida, outros demoram mais um pouco, precisamos conhecer melhor seus estilos e valores para que entrem no restrito campo dos amados, admirados e respeitados.
Mas, há aqueles que gozam do direito inquestionável de não agradar. São os que abrem novos estilos, os que avançam mostrando novos caminhos e não comungam com seus contemporâneos, nem buscam modelos já aprovados dos grandes sucessos. Parece-me ser o caso do Luiz Ruffato no Eles Eram Muito Cavalos e de Afonso Cruz agora no Flores.
Não encontrei o lugar comum em seu livro, não vi a construção de um herói, nem a linhagem do bem contra o mal. Seus personagens parecem de carne e osso, não são bons e às vezes são inquestionavelmente humanos.
Vejo o quebra cabeça com que ele conta a estória em primeira pessoa, se assumindo como um cidadão em pleno gozo de sua incapacidade de amar e se definir como uma pessoa feliz. Vejo sua insegurança doméstica, sua dificuldade de estar inteiro na ação, ausente mesmo quando está em casa, incapaz de observar os detalhes. Sua conversação é sacrificada e quase sempre involuntária. Fala pouco até ao seu espelho e menos se compreende.
No livro Flores, Afonso Cruz deixa um legado de lições, para homens e mulheres contemporâneos, escondido numa estória a princípio trivial de um casamento desfeito, uma filha incompreendida, um vizinho sem memória e uma instigante e inconsequente busca do personagem pela memória do outro, como se coscuvilhasse a própria vida.
Gosto de livros que deixam lições intrigantes. Que não se esvaem com o fim da leitura ou com o desenlace da trama urdida para manter a atenção do leitor.
Será que um chapéu em cima da cama quer dizer mais que simples desleixo? Já li esta ojeriza em outros autores. E comer o melhor da torrada ou quebrar a gema do ovo preferido é motivo para briga, contestação e separação?
Até que ponto o espelho fala a verdade?  Por que o desvendar das maldades e perversidades do senhor Ulme não o levou a se eximir ou expiar qualquer culpa?  Por que ele foi até admirado em suas ousadias e maldades, como a capacidade de vender ingresso para a sua lua de mel; de entregar sua amada para ser torturada pela DIP e de construir um GOLEM para denunciar a maldade no mundo? 
Porque, penso eu, ele representa o alerta para que tenhamos mais profundidade na espessura dos nossos pensamentos e mais elevação em nossas ações. Que estejamos atentos aos outros em detalhes e tenhamos, por fim, cuidados para não sermos transformados em GOLENS vivos consubstanciados pela maldade exalada pelos meios de comunicação que nos mergulham em notícias catastróficas, em detalhes de crimes hediondos, crimes ambientais, crimes de toda espécie que põem em risco nossa sobrevivência como espécie.
Afinal, um corpo de mulher nua é o supremo perdão!    Gostei - Recomendo