domingo, 22 de setembro de 2019

MEMORIAL DE AIRES

de Machado de Assis, 1908



por Daniela Biaggioni Lopes

O Memorial de Aires é a última obra de Machado de Assis, lançada apenas meses antes da morte do autor, em 1908. Machado de Assis tinha então 69 anos, tendo exercitado a literatura em suas várias expressões durante a vida, enquanto burocrata do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Sua formação literária se deu na transição do romantismo para o realismo e durante sua carreira expressou elementos de ambos movimentos literários da mesma forma como os transgrediu constantemente.

A obra coloca-se como um diário íntimo de um personagem ficcional mas também parece um romance em certos momentos; trai os elementos tradicionais dos dois formatos; não é uma conversa do conselheiro consigo mesmo, ele conversa com o ‘papel’ e não tem diálogo/compromisso com o leitor; insere apresentações de personagens e diálogos como em um romance.

Começo esta resenha com a minha experiência emocional inicial com a leitura da obra, já carregando o peso do Machado de Assis sobre os meus ombros antes da primeira página. Entendiei-me profundamente com os registros do Conselheiro Aires sobre a vida alheia, também entediante. Os personagens são todos também da elite burguesa do Rio do final do Império, com alguns escravos no fundo. Tive uma reação de estranhamento: que Machado maduro é esse? Minha principal referência afetiva do texto machadiano é do Alienista, mordaz, irônico:

“Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.” (O Alienista)
Passada esta primeira reação a que me permiti, fui atrás de ‘ler a bula’. Há dezenas de estudos e análises sobre toda a obra do Machado, li dois artigos interessante de Pedro Fragelli (A forma e os dias; Memorial de Aires e a Abolição da Escravatura), que fez mestrado em Literatura Brasileira na USP em 2005 sobre esta obra. Então, resgatei abaixo, nos artigos, os comentários e análises que dão sentido à minha experiência com o livro, expandindo-a bem além das reações iniciais, como o autor merece.

Recomendo o livro para aqueles já bem iniciados na vida e obra de Machado de Assis, como importante obra de sua maturidade literária e relato crítico da elite do final do segundo Reinado. Para aqueles que estão se iniciando em Machado, sugiro começarem por outros romances e contos, talvez seguindo a cronologia da obra.

A forma e os dias – Pedro Fragelli , 2010
  
‘O Memorial de Aires é um romance realista em que se representa, no plano das formas, o diário íntimo de um representante das classes dominantes brasileiras do final do Segundo Reinado.’
“Livro cinzento, livro morto, livro bocejado e não escrito. Aires? Fidélia? Tristão e o casal Aguiar? Só vejo uma personagem – o Tédio” (citando Augusto Meyer). “As razões disso prendem-se ao teor social do tédio representado na obra machadiana. Com efeito, o tédio vivenciado pelas personagens de Machado de Assis é uma experiência histórica e de classe: ele é um dos resultados da vida cheia de satisfações, mas vazia de sentido, que os proprietários desfrutam nos romances de Machado. Facultada às nossas elites do século XIX pela organização social brasileira, a existência regida pelo capricho, portanto desprovida de continuidade de propósitos, termina em nada. Ora, o Memorial concentra-se justamente no momento terminal da classe dominante do Segundo Reinado, da qual o conselheiro Aires, diplomata aposentado, é um representante sofisticado. Na medida em que o romance é o próprio diário íntimo do conselheiro, ou se - ja, na medida em que o ponto de vista “narrativo” do livro é o ponto de vista de Aires, tudo se apresenta no livro sob o signo do tédio, entre outras manifestações mais perversas do privilégio social.”
“Assim, os retratos morais das personagens esboçados pelo diarista ao longo do Memorial não são completos nem fidedignos. Solidário de sua classe, Aires oculta, sob um véu tecido com as palavras, os “atos inconfessáveis” de seus pares, em particular as constantes infrações a valores emprestados do repertório de ideais romântico-burgueses, tais como a fidelidade amorosa, a vocação profissional, o apego à terra natal, entre outros princípios que as personagens, pertencentes às nossas elites oitocentistas, assumem como seus de modo enfático ao longo do livro. O esforço para preservar a imagem da classe dominante, por meio do disfarce ou da justificação de comportamentos que podem comprometê-la, resulta em uma verdadeira operação de abafa, que se traduz em uma cumplicidade ativa por meio da qual o conselheiro encobre deliberadamente os traços essenciais do caráter das personagens, acumulando dúvidas sobre dúvidas, compondo afinal, mediante o emprego de uma linguagem eminentemente sofística, um enredo repleto de obscuridades e duplicidades, espécie de versão brasileira, muito antecipada, do jardim borgiano de veredas que se bifurcam, e que só poderá ser compreendido após a identificação da feição social de Aires e de suas observações.50 A escandalosa volubilidade ideológica de Tristão, por exemplo, típica dos políticos formados nos quadros das elites do Segundo Reinado, é comentada por Aires nos seguintes termos: Tristão assistiu à Comuna, em França, e parece ter temperamento conservador fora da Inglaterra; em Inglaterra é liberal; na Itália continua latino. Tudo se pega e se ajusta naquele espírito diverso. O que lhe notei bem é que em qualquer parte gosta da política. Vê-se que nasceu em terra dela e vive em terra dela. Pode-se afirmar desde já, portanto, que o diário íntimo do Memorial de Aires tem um caráter propriamente realista: trata-se do diário de um prócer das elites brasileiras do Segundo Reinado, ou seja, de um diário marcado pela posição social de seu redator, uma vez que ele transfere para sua escrita os seus sentimentos e condutas de classe.”

Memorial de Aires e a abolição – Pedro Fragelli, 2007
O narrador do Memorial de Aires é um narrador que está em situação. Conforme previne a “Advertência” ao leitor, o livro é um trecho de um diário íntimo encontrado após a morte de seu autor, um diplomata aposentado que tinha o hábito de registrar os acontecimentos que ocorriam à sua volta. Assim sendo, o narrador do Memorial não está fora ou acima do contexto narrativo — posição tradicional do narrador realista —, mas entre as personagens do romance, como uma delas. Sua perspectiva é limitada e parcial, o que naturalmente compromete a objetividade do discurso. No Memorial de Aires,os tipos sociais representados pelas personagens pertencem todos, assim como o próprio narrador, à elite fluminense do final do Segundo Reinado: o fazendeiro do Vale do Paraíba, a filha do fazendeiro, o filho do comissário de café, o sócio de banco, o desembargador. Ao fundo apenas, como sombras, os libertos de Santa-Pia. Nesse caso, o leitor perceberá que Aires, ao longo de todo o romance, procura abafar as infrações das personagens em relação a princípios que elas enfaticamente assumem como seus — geralmente emprestados do repertório de ideais romântico-burgueses —, como o amor eterno de Fidélia ou a vocação profissional e o apego à pátria de Tristão. Conforme se verá, uma das características essenciais do Memorial de Aires é o compromisso de classe do narrador, compromisso que todavia só se revela plenamente nos comentários do conselheiro sobre situações em que as personagens estão associadas, de uma forma ou de outra, aos acontecimentos ligados à Abolição — ou seja, quando a massa de ex-escravos, mesmo ausente, funciona como referência.
 “Mesmo quando o conselheiro demonstra simpatia pela Abolição, sua satisfação parece estar menos ligada à liberdade dos escravos do que à imagem do país — portanto da classe dirigente — diante das nações modernas: Dizem que, abertas as câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha, que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião da famosa proclamação de Lincoln: “Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados Unidos da América...”. Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem.”
“No Brasil, como é sabido, uma vez removida a mancha de atraso — a escravidão — que desmoralizava o país diante do mundo “civilizado”, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte. Nas prósperas fazendas do Oeste Paulista, o trabalhador negro foi substituído pelo imigrante, com boa redução de custos e aumento considerável de eficiência produtiva. Desde a década de 1870,a alta dos preços de escravos e a modernização das técnicas de beneficiamento do café haviam tornado o trabalho compulsório cada vez mais caro e improdutivo com relação ao trabalho livre10. A Abolição vinha libertar a nova oligarquia cafeeira de uma mão-de-obra excessivamente onerosa e mal adaptada às novas condições de produção. Por sua vez, as plantações de café do Vale do Paraíba — como as do barão de Santa-Pia, no ‘Memorial de Aires’ —,em processo de esgotamento desde o início dos anos 1870, foram sendo progressivamente abandonadas pelos fazendeiros, que se dirigiram para os promissores campos de São Paulo ou para a Corte, em busca de cargos públicos. Em poucos meses, as terras, exaustas, tornaram-se pastos para gado, passando a exigir o mínimo de mão-de-obra. Com isso, os libertos que haviam permanecido nas fazendas se tornaram supérfluos e deixaram a região, sem ter para onde ir: “Os negros morriam de fome nos caminhos, não tinham onde morar, ninguém os queria, eram perseguidos”, registrou Coelho Netto, escritor célebre no início do século XX, que viveu em Vassouras nos anos seguintes à Abolição.”
“Machado de Assis percebeu cedo que o fim do escravismo não traria liberdade verdadeira aos ex-escravos e que as velhas estruturas econômico-sociais, com algum rearranjo, sobreviveriam à Abolição. Conforme demonstra o trabalho de Roberto Schwarz,uma decepção dessa ordem remonta aos anos 1878-1880, quando Machado abandona tanto a esperança de uma reforma interna do paternalismo — que animara seus primeiros romances —, como a perspectiva da possibilidade de superação das relações de dependência por meio do trabalho livre — insinuada no final de Iaiá Garcia —, passando a explorar, a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, sem mais qualquer tipo de freio ideológico, as virtualidades retrógradas do progresso no país.”




quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Memorial de Aires

de Machado de Assis




Comentários de Carlos Guido Azevedo

Não tinha lido um livro de Machado de Assis, para não gostar muito. Memorial de Aires foi o primeiro. Fiquei preocupado. Será que li errado? O que não entendi? Por que será que não gostei? Já que sou fã incondicional do autor, para mim uma descoberta tardia que me apresentou um Brasil do início do século XX, final do XIX quando importantes eventos históricos construíram muito do que somos hoje.
Mas, será o Aires um protótipo de nós mesmos? Logo o Aires, tão interessante no Esaú e Jacó. Acabou se tornando chato e repetitivo em seu Memorial? Que terá acontecido?
Foi o ritmo e a pachorra do tempo na lentidão das carruagens, no vai e vem de uma sociedade parasita dela mesmo? Foi o disse me disse da conversa estreita, entreouvida da mesa para a sala, da casa de um para a casa de outro?  Foi o estreito dos personagens, a repetição aguada das conversas sem temática?
Foi a ausência de um alinhamento de posições entre Aires e sua irmã Rita que fazem uma aposta insípida sobre a vida da viúva apaixonada pelo marido, se casaria ou não casaria? Se seria bom par para o Aires, mas sem argumento de parte a parte.
Ou será que foi essa ausência de tragédia nas vidas dos personagens que me fez desagradar do livro? Nesse caso o problema é meu, do leitor, não do autor ou da estória.
Assim, fui até o final do livro, vendo uma época sendo descrita nas entrelinhas dos acontecimentos brasileiros.
O final da escravidão sendo contada sem paixão pelos libertos ou pelos senhores. Com incrível naturalidade e uma alegria contida de uns e outros em um evento pouco revolucionário e animado por uma missa e um corso, desfile de carros e carruagens onde, a elite libertária avaliava a conveniência de expressar mais ou menos seu entusiasmados e se colocar para fora do veículo como se fazia naturalmente nos carnavais. Aquilo que em outros povos demandou suor e sangue.
Os proprietários dos escravos preocupados em buscar compensações do governo pela perda dos bens patrimoniais, ao tempo em que percebiam a importância econômica do final da escravidão posto que os mercados ameaçavam boicote às suas exportações agrícolas. Tudo igual aos dias de hoje.
Até o inusitado deputado eleito sem presença em Portugal é repetido agora com o Deputado Federal Luiz Miranda do DEM que foi eleito a partir de Miami, de onde aplicava golpe em investidores incautos e sorteava iPhones para eleitores potenciais.
Sei que sempre seguimos uma estratégia diferente de outros povos, pois aqui desconstruímos ídolos e não aceitamos heróis. Herói que se preza vai lutar na Europa, África ou outros países, aqui, formamos esta nação sem heróis, sem respeito à sua história, sem sonho de futuro ou revolução, sem um passado a se orgulhar e sempre em revisão. Como afirmou Pedro Malan “no Brasil até o passado é incerto”.
Voltando ao tema:
Memorial de Aires é marcado pela nostalgia da velhice e pela consciência de que a morte ou o refúgio da memória escrita de um diário e na convivência com os amigos podem aliviar a dor de um final de vida.
O Conselheiro Aires, diplomata aposentado se mostra como um sujeito frustrado, impotente diante da sua viuvez e da velhice, além da ausência de filhos que lhe garantam a sobrevivência através da sua prole.
Como observador sutil do comportamento humano acompanhou em seu diário o sofrimento do casal Aguiar na construção da relação e da perda dos dois filhos postiços Tristão e Fidélia.
Como observador dos próprios sentimentos registrou de modo bem camuflado a sua própria perda da possibilidade ainda que longínqua de uma nova relação.
Assim, a desilusão amorosa transforma-se em conformismo e aceitação da velhice e da morte como fim único e inevitável do trio de velhos.
“Eu tenho a mulher embaixo do chão de Viena e nenhum dos meus filhos saiu do berço do nada. Estou só, totalmente só. Os rumores de fora, carros, bestas, gentes, campainhas e assobios, nada disto vive para mim. Quando muito o meu relógio de parede, batendo as horas, parece falar alguma cousa, - mas fala tardo, pouco e fúnebre. Eu mesmo, relendo estas últimas linhas, pareço-me um coveiro”.
A falta de entusiasmo de Aires e dos seus convivas por qualquer assunto que não seja as suas vidas privadas, em que pese a importância do momento que o Brasil estava vivendo nessa época, retrata o sentimento de indiferença da elite brasileira, com os destinos da nação. A nossa natureza dúbia e indiferente aos destinos grupais, além daqueles pessoais e familiares, sentimento que se estende até aos dias de hoje.
“Ao transpor a porta para a rua vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos”.
A saudade de mim mesmo, também me invade e volto atrás, para valorizar a obra e o gênio de Manchado de Assis.
Aprovo com Louvor.  Indico com Ênfase.   O defeito era meu mesmo.
***
imagem: Why War? de Charles Spencelayh (1938)