de Machado de Assis, 1908
O Memorial de Aires é a última
obra de Machado de Assis, lançada apenas meses antes da morte do autor, em
1908. Machado de Assis tinha então 69 anos, tendo exercitado a literatura em
suas várias expressões durante a vida, enquanto burocrata do Ministério da
Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Sua formação literária se deu na
transição do romantismo para o realismo e durante sua carreira expressou
elementos de ambos movimentos literários da mesma forma como os transgrediu
constantemente.
A obra coloca-se como um diário
íntimo de um personagem ficcional mas também parece um romance em certos momentos;
trai os elementos tradicionais dos dois formatos; não é uma conversa do
conselheiro consigo mesmo, ele conversa com o ‘papel’ e não tem
diálogo/compromisso com o leitor; insere apresentações de personagens e
diálogos como em um romance.
Começo esta resenha com a
minha experiência emocional inicial com a leitura da obra, já carregando o peso
do Machado de Assis sobre os meus ombros antes da primeira página. Entendiei-me
profundamente com os registros do Conselheiro Aires sobre a vida alheia, também
entediante. Os personagens são todos também da elite burguesa do Rio do final
do Império, com alguns escravos no fundo. Tive uma reação de estranhamento: que
Machado maduro é esse? Minha principal referência afetiva do texto machadiano é
do Alienista, mordaz, irônico:
“Aos quarenta anos
casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos,
viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador
de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha
e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições
fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia
regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para
dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas
dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições,
longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de
preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da
consorte.” (O Alienista)
Passada esta primeira reação a
que me permiti, fui atrás de ‘ler a bula’. Há dezenas de estudos e análises
sobre toda a obra do Machado, li dois artigos interessante de Pedro Fragelli (A
forma e os dias; Memorial de Aires e a Abolição da Escravatura), que fez
mestrado em Literatura Brasileira na USP em 2005 sobre esta obra. Então, resgatei
abaixo, nos artigos, os comentários e análises que dão sentido à minha
experiência com o livro, expandindo-a bem além das reações iniciais, como o
autor merece.
Recomendo o livro para aqueles
já bem iniciados na vida e obra de Machado de Assis, como importante obra de
sua maturidade literária e relato crítico da elite do final do segundo Reinado.
Para aqueles que estão se iniciando em Machado, sugiro começarem por outros
romances e contos, talvez seguindo a cronologia da obra.
A forma e os dias – Pedro
Fragelli , 2010
‘O Memorial de Aires é um
romance realista em que se representa, no plano das formas, o diário íntimo de
um representante das classes dominantes brasileiras do final do Segundo
Reinado.’
“Livro cinzento, livro morto,
livro bocejado e não escrito. Aires? Fidélia? Tristão e o casal Aguiar? Só vejo
uma personagem – o Tédio” (citando Augusto Meyer). “As razões disso prendem-se
ao teor social do tédio representado na obra machadiana. Com efeito, o tédio
vivenciado pelas personagens de Machado de Assis é uma experiência histórica e
de classe: ele é um dos resultados da vida cheia de satisfações, mas vazia de
sentido, que os proprietários desfrutam nos romances de Machado. Facultada às
nossas elites do século XIX pela organização social brasileira, a existência
regida pelo capricho, portanto desprovida de continuidade de propósitos,
termina em nada. Ora, o Memorial concentra-se justamente no momento terminal da
classe dominante do Segundo Reinado, da qual o conselheiro Aires, diplomata
aposentado, é um representante sofisticado. Na medida em que o romance é o
próprio diário íntimo do conselheiro, ou se - ja, na medida em que o ponto de
vista “narrativo” do livro é o ponto de vista de Aires, tudo se apresenta no
livro sob o signo do tédio, entre outras manifestações mais perversas do
privilégio social.”
“Assim, os retratos morais das
personagens esboçados pelo diarista ao longo do Memorial não são completos nem
fidedignos. Solidário de sua classe, Aires oculta, sob um véu tecido com as
palavras, os “atos inconfessáveis” de seus pares, em particular as constantes
infrações a valores emprestados do repertório de ideais romântico-burgueses,
tais como a fidelidade amorosa, a vocação profissional, o apego à terra natal,
entre outros princípios que as personagens, pertencentes às nossas elites
oitocentistas, assumem como seus de modo enfático ao longo do livro. O esforço
para preservar a imagem da classe dominante, por meio do disfarce ou da
justificação de comportamentos que podem comprometê-la, resulta em uma
verdadeira operação de abafa, que se traduz em uma cumplicidade ativa por meio
da qual o conselheiro encobre deliberadamente os traços essenciais do caráter
das personagens, acumulando dúvidas sobre dúvidas, compondo afinal, mediante o
emprego de uma linguagem eminentemente sofística, um enredo repleto de
obscuridades e duplicidades, espécie de versão brasileira, muito antecipada, do
jardim borgiano de veredas que se bifurcam, e que só poderá ser compreendido
após a identificação da feição social de Aires e de suas observações.50 A
escandalosa volubilidade ideológica de Tristão, por exemplo, típica dos
políticos formados nos quadros das elites do Segundo Reinado, é comentada por
Aires nos seguintes termos: Tristão assistiu à Comuna, em França, e parece ter
temperamento conservador fora da Inglaterra; em Inglaterra é liberal; na Itália
continua latino. Tudo se pega e se ajusta naquele espírito diverso. O que lhe
notei bem é que em qualquer parte gosta da política. Vê-se que nasceu em terra
dela e vive em terra dela. Pode-se afirmar desde já, portanto, que o diário
íntimo do Memorial de Aires tem um caráter propriamente realista: trata-se do
diário de um prócer das elites brasileiras do Segundo Reinado, ou seja, de um
diário marcado pela posição social de seu redator, uma vez que ele transfere
para sua escrita os seus sentimentos e condutas de classe.”
Memorial de Aires e a abolição
– Pedro Fragelli, 2007
O narrador do Memorial de
Aires é um narrador que está em situação. Conforme previne a “Advertência” ao
leitor, o livro é um trecho de um diário íntimo encontrado após a morte de seu
autor, um diplomata aposentado que tinha o hábito de registrar os
acontecimentos que ocorriam à sua volta. Assim sendo, o narrador do Memorial
não está fora ou acima do contexto narrativo — posição tradicional do narrador
realista —, mas entre as personagens do romance, como uma delas. Sua
perspectiva é limitada e parcial, o que naturalmente compromete a objetividade
do discurso. No Memorial de Aires,os tipos sociais representados pelas
personagens pertencem todos, assim como o próprio narrador, à elite fluminense
do final do Segundo Reinado: o fazendeiro do Vale do Paraíba, a filha do
fazendeiro, o filho do comissário de café, o sócio de banco, o desembargador.
Ao fundo apenas, como sombras, os libertos de Santa-Pia. Nesse caso, o leitor
perceberá que Aires, ao longo de todo o romance, procura abafar as infrações
das personagens em relação a princípios que elas enfaticamente assumem como
seus — geralmente emprestados do repertório de ideais romântico-burgueses —,
como o amor eterno de Fidélia ou a vocação profissional e o apego à pátria de
Tristão. Conforme se verá, uma das características essenciais do Memorial de
Aires é o compromisso de classe do narrador, compromisso que todavia só se
revela plenamente nos comentários do conselheiro sobre situações em que as
personagens estão associadas, de uma forma ou de outra, aos acontecimentos
ligados à Abolição — ou seja, quando a massa de ex-escravos, mesmo ausente,
funciona como referência.
“Mesmo quando o conselheiro demonstra simpatia
pela Abolição, sua satisfação parece estar menos ligada à liberdade dos escravos
do que à imagem do país — portanto da classe dirigente — diante das nações
modernas: Dizem que, abertas as câmaras, aparecerá um projeto de lei. Venha,
que é tempo. Ainda me lembra do que lia lá fora, a nosso respeito, por ocasião
da famosa proclamação de Lincoln: “Eu, Abraão Lincoln, Presidente dos Estados
Unidos da América...”. Mais de um jornal fez alusão nominal ao Brasil, dizendo
que restava agora que um povo cristão e último imitasse aquele e acabasse
também com os seus escravos. Espero que hoje nos louvem.”
“No Brasil, como é sabido, uma
vez removida a mancha de atraso — a escravidão — que desmoralizava o país
diante do mundo “civilizado”, os ex-escravos foram abandonados à própria sorte.
Nas prósperas fazendas do Oeste Paulista, o trabalhador negro foi substituído
pelo imigrante, com boa redução de custos e aumento considerável de eficiência
produtiva. Desde a década de 1870,a alta dos preços de escravos e a
modernização das técnicas de beneficiamento do café haviam tornado o trabalho
compulsório cada vez mais caro e improdutivo com relação ao trabalho livre10. A
Abolição vinha libertar a nova oligarquia cafeeira de uma mão-de-obra
excessivamente onerosa e mal adaptada às novas condições de produção. Por sua
vez, as plantações de café do Vale do Paraíba — como as do barão de Santa-Pia, no
‘Memorial de Aires’ —,em processo de esgotamento desde o início dos anos 1870,
foram sendo progressivamente abandonadas pelos fazendeiros, que se dirigiram
para os promissores campos de São Paulo ou para a Corte, em busca de cargos
públicos. Em poucos meses, as terras, exaustas, tornaram-se pastos para gado,
passando a exigir o mínimo de mão-de-obra. Com isso, os libertos que haviam
permanecido nas fazendas se tornaram supérfluos e deixaram a região, sem ter
para onde ir: “Os negros morriam de fome nos caminhos, não tinham onde morar, ninguém
os queria, eram perseguidos”, registrou Coelho Netto, escritor célebre no
início do século XX, que viveu em Vassouras nos anos seguintes à Abolição.”
“Machado de Assis percebeu
cedo que o fim do escravismo não traria liberdade verdadeira aos ex-escravos e
que as velhas estruturas econômico-sociais, com algum rearranjo, sobreviveriam
à Abolição. Conforme demonstra o trabalho de Roberto Schwarz,uma decepção dessa
ordem remonta aos anos 1878-1880, quando Machado abandona tanto a esperança de
uma reforma interna do paternalismo — que animara seus primeiros romances —,
como a perspectiva da possibilidade de superação das relações de dependência
por meio do trabalho livre — insinuada no final de Iaiá Garcia —, passando a
explorar, a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, sem mais qualquer tipo
de freio ideológico, as virtualidades retrógradas do progresso no país.”