segunda-feira, 22 de julho de 2019

Madrugada Suja

     Miguel Sousa Tavares
                        

             Considerado um dos expoentes da literatura contemporânea portuguesa, Miguel de Sousa Tavares se apoia nos seus conhecimentos e experiências de jornalista e advogado para desenvolver suas tramas e construir de seus personagens. Esta vivência está presente nas diversas publicações do autor, como Equador, O Segredo do Rio, Rio das Flores, No teu Deserto, Ismael e Chopin, A História não acaba assim- estritos políticos 2005-2012, Madrugada Suja, Não se encontra o que se procura, Cebola Crua Com Sal e Broa.

A leitura de Madrugada Suja inicialmente me fez pensar numa trilogia iniciada com Equador onde autor analisa as mudanças na monarquia e sociedade portuguesa através de sua atuação colonial em São Tomé e Príncipe no início do século XX. Em Rio das Flores, (que lemos no grupo) as mudanças da sociedade portuguesa entre as 2 guerras e os anos da ditadura salazarista são retratados através da saga de uma família da pequena burguesia rural do Alentejo. Em Madrugada Suja o autor continua a analisar a sociedade portuguesa em suas dimensões econômicas e políticas através da estória (história) de uma família na transição da ditatura e das guerras coloniais, passando pela Revolução dos Cravos até o final do século XX.

O que me fez pensar ser uma trilogia foi a estratégia adotada pelo autor nos 3 romances que li. Em todos eles o autor se utiliza das trajetórias familiares para fazer uma análise existencial dos personagens e análise política da sociedade portuguesa do período.  É um modelo ou estratégia que o autor utiliza com maestria mas que ao cabo do 3 livro esta estratégia vai perdendo a força que vimos em Rio das Flores por ex.  Não sei se os outros livros do autor seguem a mesma estratégia e fiquei curiosa em conhecer os livros infantis do autor. 
Voltando à Madrugada Suja. O romance tem como personagem central Filipe nascido em Mendronhais da Serra que representa o interior rural e isolado de Portugal. A partir da trajetória familiar deste personagem o autor nos apresenta as mudanças da sociedade portuguesa pós Revolução dos Cravos até os tempos recentes. Este é o quadro para que o autor trate dos temas éticos e existenciais como a culpa, corromper e ser corrompido, pequenos e grandes poderes, concentração de renda e poder, papel dos políticos e dos magistrados. Temas tão atuais que chegam a doer quando lemos.
O capítulo inicial é forte e nos toma de surpresa e nos impulsiona para seguir adiante. Em seguida os caps 2, 3, 4, 5,6 7 que constituem a primeira parte o leitor é transportado para outro mundo (outro Portugal) a vila que morre como uma analogia de Portugal trás dos montes.  Bem monótono e se esta foi a intenção do autor devo dizer que ele foi bemsucedido.  O Portugal da Revolução dos Cravos com as Unidades de Produção Coletivas (Alentejo como uma nova Cuba), apresentado a partir da experiência de Francisco, pai Felipe, até o capitulo 8, que abandona a vila e seu filho, prepara leitor para entender Portugal moderno ou sem o romantismo da revolução dos Cravos. 
Na segunda parte o romance se torna mais interessante pois as trajetórias vão se entrelaçando e voltando ao capítulo inicial onde o acaso gerou tragédia que como diz Filipe no início, “Não há forma de escapar o que está feito. Todavia, não há dúvida que o ser humano é extraordinário na sua capacidade de adaptação a tudo, até mesmo à própria canalhice. Pois, ele sobrevivera e seguira em frente, por vezes atormentado pelos remorsos e pela culpa, mas a maior parte das vezes fazendo por esquecer- e conseguindo –o”
 Na narrativa de todas as trajetórias de vida o autor apresenta pelos menos dois argumentos constantes: Nada é aquilo que parecer ser. E, a vida é feita de acasos.
Vejamos por exemplo, Filipe, se visto só levando em conta o evento ou tragédia que ocorreu na saída de uma festa, é uma pessoa sem ética ou escrúpulos. Entretanto, no contexto de sua estória de vida suas atitudes são de uma pessoa integra e afetiva.  Seu avó (Tomas da Burra) sempre calado e conversando com sua burra ou com a natureza pode parecer no início uma pessoa simplória mas de fato é uma pessoa profunda e que vive com sabedoria.
Já Luis, seu pai biológico, médico e empresário, bem sucedido, com aparência de honestidade e seriedade nos negócios é de fato um homem que usou da sua vida pública e de político no interior para enriquecer aceitando subornos e mais tarde como grande empreiteiro corrupto mas com aparência de homem ilibado.
Já o romance, assim com o autor considera a vida, é fruto de acasos. Por acaso Filipe estava na escadaria da universidade saindo bêbado de uma festa e encontra Eva. Por acaso aparece o “amigo” que os convida para continuar a festa.  Na sucessão de acasos chega –se a uma tragédia que marcar a vida de todos.
O acaso leva Filipe a ser arquiteto paisagista na prefeitura de uma cidade litorânea e ser chamado a dar parecer em um projeto que causará danos ao meio ambiente. Por acaso os interessados na aprovação do projeto, no processo de convencer o arquiteto a não dar parecer negativo ou eximir de dar parecer sobre o projeto, contam como outros projetos foram aprovados. Neste processo, Filipe toma conhecimento das atividades do pai biológico, quando presidente da câmara de vereadores em outra cidade litorânea. E acaso em acaso a trama da estória e da vida se desenvolve.
Outro elemento que perpassa o romance é o tema da corrupção e as diversas formas que é exercida, apesar e mesmo com aquiescência da justiça e dos legisladores. A naturalização da corrupção, entendida e justificada pela visão de necessidade de modernizar o país. O autor, deixa aqui transparecer sua formação de jornalista engajado e mostra com muita propriedade o processo de concentração de poder e de formas de corrupção onde o público é apropriado pelo privado. A esperança aparece na capacidade de resistir a este sistema da parte de Filipe e da promotora que por acaso é a jovem atropelada em Cromeleque dos Almendres.
O autor conclui o romance com a figura poética da primavera que chega em Mendronhais da Serra “Para onde quer que olhasse, os sinais da primavera – verdes, amarelos, roxos e vermelhos – estavam espalhados por todo lado e gritavam-lhe a evidência da vida contra a evidência da sua aldeia morta”.
E com esta visão de primavera Filipe, pensa na construção de algo diverso do que estavam vivendo, ou seja, migração para centros urbanos sem qualidade de vida para a possiblidade de reconstruir a aldeia motivando a vinda pessoas com outros valores em relação ao meio ambiente as relações humanas. Romântico, mas por que não?  Gostei do livro e recomendo.

Lenita Turchi

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