Comentários de Ana Studart
A Balada de Adam Henry ( The Children Act), de Ian McEwan, é um romance típico. Apresenta uma boa história com temas relevantes, muito bem redigida, apresentada em dois planos paralelos- um plano romântico e um plano jurídico, que se entrelaçam. Não é um romance que nos “pegue”, daqueles que a gente não consegue parar a leitura - é daqueles livros que vamos lendo aos poucos e sempre achando interessante. Outro tema, igualmente importante, que se desenvolve paralelamente, é que Fiona, a austera juíza da Vara de Família que vai julgar o caso de Adam, está se separando do marido, apaixonado por uma mulher mais nova, e se percebe atraída, aos sessenta anos, por um intenso e inteligente jovem de dezessete anos que deve julgar.
O romance, lançado em 2014, toca, portanto, em dois temas polêmicos e bem atuais.
Os personagens são bem desenvolvidos, com suas personalidades magistralmente delineadas.
Fiona é uma magistrada sessentona, bonita e elegante, contida e rigorosa, que se decide por estudar leis por gostar "das coisas direitas". Para suavizar essa imagem de austeridade, toca piano e se apresenta em recitais do meio jurídico. Tornou-se famosa ao julgar um caso complexo, o da separação de irmãos siameses, separação que provocaria a morte da criança mais fraca- mas, por outro lado, a falta da cirurgia significaria a morte das duas. Segundo o o autor, Fiona é dona de "prosa incisiva, quase irônica, quase entusiasmada", sendo admirada por suas sentenças concisas.
Adam Henry é um jovem “adorável”, nas palavras de Fiona, um rapaz frágil mas muito bonito, inteligente e romântico, que escreve poemas, aprende violino e está disposto a se sacrificar sua vida pela religião, pelos pais e pela seita.
Jack, o marido de Fiona, é professor universitário, um homem amável, leal e bondoso, nas palavras do autor. Um pessoa elegante, vaidosa e romântica, que vive duas crises- a da idade e a do casamento.
Vale ressaltar aqui as descrições minuciosas mas nada cansativas que o autor faz dos personagens e dos ambientes, nos colocando “visualmente”, dentro do romance. E vale ressaltar ainda a perícia do autor ao tratar das indecisões e dos sentimentos femininos de Fiona.
O tradutor dá a impressão de respeitar a forma inglesa como o romance foi redigido, embora tenha estranhado algumas frases que, a meu ver, destoaram do conjunto.
O romance tem um narrador onipresente, na terceira pessoa. O autor baseia o tema central num fato verídico, acontecido no Tribunal Superior inglês na década de 1990, se desdobrando em recursos jurídicos na década de 2000.
A narrativa começa de forma interessante, com Jack propondo à esposa, que ele viva, sem prejuízo do sólido casamento, uma grande paixão, ou seja, ele deseja manter uma amante, mas "sem falsidades”, às claras. Ele explica com calma, que ama Fiona, mas como uma irmã, já que não mantêm relações sexuais há tempos.
Essa discussão é interrompida por um telefonema urgente-o hospital Edith Cavell precisa fazer uma transfusão de sangue de emergência num paciente menor de idade com câncer, e os pais não consentem, por serem Testemunhas de Jeová. Se a transfusão não se realizar em curto espaço de tempo, o paciente não sobreviverá à doença. Fiona deverá proferir sentença determinando ao hospital o procedimento a ser adotado.
Fiona ( até para encerrar a difícil conversa com o marido) decide ir imediatamente ao hospital conversar com o jovem e ver se a ele se aplica o preceito chamado "competência de Gillick" já que Adam tem 17 anos e nove meses, e está muito perto da maioridade, quando poderia decidir sozinho qual o tratamento a ser aplicado pelo hospital, independente do desejo dos pais.
A partir de então o romance dedica páginas à entrevistas de Fiona com os médicos sobre os procedimentos adequados para a cura do câncer do rapaz, e a conversas muito interessantes com os pais de Adam e com o próprio Adam, sobre suas convicções religiosas. Adam lhe mostra um poema, que Fiona elogia sem convicção, e toca seu violino, ao som da voz de Fiona, sugerindo um vínculo afetivo que se inicia entre os dois.
Os argumentos a favor da cura colocados por Fiona impressionam Adam, que rompe com sua fé, aceitando a sentença da magistrada, que deu ao hospital o direito de tratá-lo com as transfusões de sangue necessárias. Em carta enviada a Fiona, Adam relata que sua sentença provocou lágrimas em seus pais, mas não de tristeza, por contrariar a fé das Testemunhas de Jeová, mas sim, de alegria, por ver a possibilidade do filho amado se salvar. ”Que alivio! Ainda temos nosso filho, embora tivéssemos dito que ele devia morrer” Essa mudança de atitude é vista por Adam como uma fraude, uma contradição, e ele por carta, pode Fiona uma conversa, e diz sonhar com uma viagem dando uma volta ao mundo," juntos num navio, com camarotes vizinhos,” os dois conversando pelo convés.
Como não recebeu nenhuma resposta de Fiona às suas cartas- ela chegou a rascunhar alguma coisa, mas decidiu não enviar- Adam passa a seguir Fiona pela cidade, o que resulta em alguns encontros a dois. Num deles, ao se despedirem, os lábios se encontram, o que desencadeia emoções de lado a lado.
A partir desse momento melhor não comentar mais o enredo, para não revelar o final do livro. Quero registrar, no entanto, que esperava uma conclusão mais ousada,
O romance transcorre no clima frio e úmido da Inglaterra, com chuvas permanentes que encharcam guarda-chuvas e roupas. Ian McEwan não se limita a tratar do caso Dre Adam, e se extende descrevendo meio jurídico inglês, tanto tecnicamente, descrevendo casos solucionados na Justiça, quanto socialmente- reuniões e encontros de final der ano, quando Fiona se apresenta tocando clássicos ao piano. Enfim, é um romance interessante, de leitura fácil, que recomendo sem restrições.
Não resisto a comentar o fato de uma juíza de Tribunal Superior preferir caminhar à pé, sob a chuva, sempre que a distancia permite, para seus compromissos, embora disponha de carro com motorista- coisa que seria impensável no Brasil…
Quanto ao autor-
Ian Russel McEwan nasceu em 1948 em Aldershot, Hampshire, no Reino Unido. Estudou nas universidades de Sussex e East Anglia e é considerado um dos ficcionistas britânicos mais importantes de sua geração. Filho de um oficial do Exército, morou no Oriente, na Alemanha e na África.
Recebeu viários prêmios- Premio Man Booker,.o Premio Jerusalem pela Liberdade do Indivíduo na Sociedade, o Premio Shakespeare, o National Book Critics Circle Award para ficção, o Premio Somersest Maughan, e o James Tais Black Memorial Prize.
Inicialmente apelidado de Ian Macabro por causa dos temas de suas primeiras obras, Ian é um ateu convicto, sendo considerado um dos 50 ateístas top do mundo pela The Best Schools. Está em 34o lugar, sendo seguido por Woody Allan. Escreveu livros que tratam do assunto, como Black Dogs, Saturday, e Solar. e considera que ”os Ateistas tem tanta consciência, talvez mais, do que pessoas com profundas convicções religiosas."
Públicou 24 obras, sendo a primeira "Primeiro Amor, Últimos Ritos", de 1975, que recebeu o Premio Somerset Maughan. Uma das suas obras mais conhecidas é "Amsterdã" , de 1998, que recebeu o prêmio Man Booker.
Dois de seus livros foram adaptados para o cinema- Atonement, em 2007 e O Jardim de Cimento, em 1993.
Recentemente lançou uma novela audaciosa, intitulada "Machines Like Me", um romance que se passa no ano de 1980, em Londres, numa realidade alternativa, quando um casal apaixonado compra Adam, um humano sintético, e define sua personalidade. O resultado é um ser humano quase perfeito, bonito, forte e inteligente,Forma-se então um triângulo amoroso levantando questões morais e colocando a pergunta: o que nos torna humanos?
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