terça-feira, 10 de dezembro de 2019

ATRÁS DA CATEDRAL DE RUÃO


Conto de Mário de Andrade

por Cristiane Rauen

Sobre o livro

"Contos Novos", publicados postumamente em 1947, foram escritos por Mário de Andrade. A obra reúne nove narrativas da maturidade artística do autor, de estrutura moderna, que acolhem as principais correntes ficcionistas que marcaram a Literatura Brasileira das décadas de 30 e 40.

Análise do conto

Mademoiselle, uma francesa solteirona de 43 anos, é a preceptora das filhas de Dona Lúcia, mulher rica e separada da São Paulo do início do século XX. 
Alba e Lúcia são as adolescentes de 15 e 16 anos atendidas por Mademoiselle, inicialmente em aulas de francês, e, com o passar do tempo, como dama de companhia. 
As meninas são bastante viajadas, conhecem outras línguas e culturas e acabam elas mesmas sendo a companhia que falta a Mademoiselle, mantida como acompanhante mais por piedade do que por necessidade. 
Conversam sobre tudo, e o assunto preferido é a presença masculina nas diversas experiências que as meninas viveram (ou fingem viver) e que acabam por perturbar a preceptora frustrada. 
Mademoiselle vive adoentada, resfriada e com uma coriza constante. É tomada por obsessivos anseios sexuais - "um vendaval de mal de sexo", e dissimula seus impulsos em conversas com suas pupilas, que são cheias de trocadilhos infames, numa língua que o autor denomina “franco-brasileira”.
Os diálogos entre elas são sempre em francês e contém muitas expressões de duplo sentido que podem acabar por tornar a leitura um pouco cansativa, principalmente para aqueles que sentirão necessidade de traduzi-los. 
Apesar de a não tradução não prejudicar a compreensão da obra, os trocadilhos são em essência um recurso utilizado pelo autor para explicitar os conflitos internos vividos pela personagem principal, com suas constantes repreensões às falas das meninas e risinhos histéricos.
A narrativa da obra é onisciente em terceira pessoa. Essa opção permite ao narrador explorar as angústias e aflições da personagem influenciado, aparentemente, pela psicanálise e pelas ideias freudianas, bastante popularizadas em todo o mundo naquele período. Lembrou-me, nesse sentido, o tipo de narrativa e de história do conto lido no ano passado: "Capote". Uma interessante coincidência.
É também intrigante a forma como o autor, apesar da narrativa onisciente, opta por distanciar-se da personagem principal, sem denominá-la, apenas referindo-se a ela de forma irônica ou pejorativa - Mademoiselle, velhota etc.
O ponto auge da obra se inicia quando as meninas contam a Mademoiselle o episódio em que haviam presenciado atrás da catedral francesa de Ruão um homem barbudo em atitude suspeita. 
Dividida entre a curiosidade, o temor e o desejo, Mademoiselle passa a desviar seu caminho para a pensão onde mora e a dirigir-se aos fundos das catedrais da cidade para quem sabe passar por experiência semelhante.
Em dada ocasião, durante um evento em que acompanhava a família de Dona Lúcia, bastante resfriada, a preceptora acaba por tomar mais rum do que devia. No caminho de volta para casa tem alucinações com os passageiros do bonde. Em suas fantasias, vários deles a perseguem, tentando sequestrá-la.
Assustada, Mademoiselle desce num ponto anterior ao seu e percebe-se próxima à catedral de Santa Cecília (ou seria a Catedral de Ruão?). 
Ainda aturdida, porém sem hesitar, contorna a catedral e percebe-se seguida por dois homens (de barba?). 
Mademoiselle chega a delirar que eles a alcançariam e a violentariam sem piedade, tal como acontecera em sua imaginação no episódio atrás da Catedral de Ruão. 
Chegava a visualizar o crime hediondo, as roupas ensanguentadas e rasgadas, as pessoas que encontrariam o seu corpo no dia seguinte, e o terror das meninas ao receberem a notícia. Pobres meninas!
No entanto, na real experiência vivida por Mademoiselle, os homens da Catedral de Santa Cecília sequer se aproximaram. Apenas, por coincidência, fizeram o mesmo trajeto e encontram-na na porta da pensão. 
O desfecho da obra é irônico e imprevisível. Mademoiselle, já acolhida na entrada de sua pensão, ao ver os homens se aproximando, obstrui sua passagem e oferece a eles dois níqueis como forma de agradecimento pela companhia.
Esse desfecho enfatiza a constante oposição presente na obra entre o moralismo e os instintos naturais femininos, que devem (claro!) ser reprimidos, disfarçados tanto na forma da linguagem quanto no acometimento da saúde física e mental da protagonista. 
O possível acometimento psíquico de Mademoiselle demonstra, ainda que implicitamente, uma forma de histeria. Vivenciar a experiência no percurso atrás da Catedral corresponderia a uma espécie de tratamento, de alívio à sua condição, motivo pelo qual os dois sujeitos que abalaram o seu imaginário mereceram o devido ressarcimento financeiro.
Trata-se de obra bem desenhada, repleta de duplos sentidos, de dualidades, do implícito que revela o verdadeiro, o real. A apresentação de uma senhora aturdida em busca de seu feminino, de sua essência, tal qual uma sociedade à procura de sua identidade, do novo, de novos caminhos, novos contos, de Contos Novos. Recomendo com entusiasmo!  

* * *
ilustração: foto de OSM de Zuleno Pessoa (1977)

Atrás da Catedral de Ruão

de Mário de Andrade



Comentários de Priscila Fernandes Costa

Depois de ler o conto de Mário de Andrade me pareceu poder considerar que estamos, aí, diante de uma fantasia tipicamente masculina. Esta afirmação pode parecer paradoxal e, então, convoca a um esclarecimento. A história se desenvolve em torno de uma professora de francês, conhecida apenas como Mademoiselle, 43 anos, e de suas duas pupilas, as irmãs Lucia, 16 anos e Alba 15 anos. Mademoiselle é uma “donzela” descrita como “envelhecida”, uma “velhota”, dizem, “mais destratadinha agora, coitada”, e totalmente tomada por um “vendaval de mal de sexo”. Estabelece com as adolescentes um relacionamento dúbio, com diálogos cheio de insinuações eróticas, falas  de duplo sentido, onomatopéias maliciosas, reticências e curiosidades malignas e relatos fantasiosos misturados de sensualidade e violência que devastam a professora. Quando se vê pega na “armadilha” das meninas, ela reage com arroubos de pudor e nojo fingidos, como que escandalizada frente às bobagens “muito freudianas” que elas dizem. “Mademoiselle caíra naquele mundo mágico de anseios” que era o das duas jovens. Por isso, quando houve de Alba o que acontece atrás da catedral de Ruão... “nós vimos um homem de barba, a senhora entende... A história atiça os anseios de Mademoiselle de tal forma que todas as vezes que precisa sair à rua para ir à farmácia, se vê impelida, intimada mesmo a passar atrás da catedral da cidade, embora essas incursões redundem em desilusão: nada lhe acontece.  Numa noite, ao voltar para casa percebe estar sendo seguida por dois homens e a partir de então cai num devaneio no qual se vê na iminência de ser violada sem piedade. Apressa o passo, corre ofegante, dobra a esquina de sua rua e chega finalmente na porta da pensão em que mora. Os homens se aproximam “em sua conversa distraída”; tudo, então, não passou de fantasia, quimera... Mademoiselle sobe as escadas correndo e vai chorar.
Neste conto Mario de Andrade parece apostar que o grande anseio amoroso das mulheres, sejam elas jovens ou maduras, é o de ser seduzida e violada pelo homem de seus sonhos, bem ao estilo de uma leitura apressada dos primeiros desenvolvimentos de Freud a propósito das fantasias de suas pacientes histéricas. Freud constatou que a fantasia de sedução é primordial no desenvolvimento deste tipo de neurose  (embora não seja uma exclusividade das histéricas), e que muitas de suas pacientes viviam essas ficções como acontecimentos reais. Mas percebeu que entre fantasiar e passar ao ato propriamente dito existe uma enorme distância . O ato de fantasiar é próprio da subjetividade humana e constitue a nossa realidade psíquica.
Para o olhar masculino, incluindo aí o próprio Freud, a feminilidade foi sempre um enigma, um continente negro misterioso a ser explorado. Ele confessou, por exemplo, que não sabia o que fazer com a sexulidade feminina, esse desconhecido que se torna fonte de angústia e de fantasias projetivas, sobretudo nos homens. Nos últimos anos de sua vida ele escreve “Se vocês quiserem saber mais sobre a feminilidade, interroguem suas próprias experiências de vida ou enderencem-se aos poetas”. Ao longo da história, essa irrepresentabilidade do feminino tem servido de palco para um verdadeiro circo de horrores, onde todos os medos, todas as angústias, todas as maldades são encenadas; nele se representam o diabo e a santidade, as possessões demoníacas, os martírios e as loucuras da humanidade. A resposta mais comum dada pelos homens a este traço inefável da feminilidade foi o de tornar as mulheres sedentas de falo em função da famigerada inveja do pênis – outra noção freudiana mal compreendida e deturpada pelo imaginário popular –, ao se descobrirem desprovidas do órgão fálico tão valorizado pelo personagem viril.
O complexo de Édipo é para Freud um fundamental divisor de águas tanto no que diz respeito à entrada da criança no mundo da linguagem e da cultura, quanto um elemento primordial na diferenciação entre o masculino e o feminino. Com o surgimento  do Édipo, cujo evento desencadeador é denominado complexo de castração, a identidade sexual de meninos e meninas tomam caminhos bem distintos. Enquanto o menino renuncia ao gozo infantil do desejo pela mãe para preservar sua potência fálica a ser vivida ao longo da vida (assim ele sai do complexo de Édipo), a menina volta seu amor para o pai, ingressando, então,  no complexo de Édipo. Devido ao medo da perda do amor dos pais ela irá renunciar gradativamente a esse desejo, transferindo-o, mais tarde, para outros homens. Desejo (sexual) e amor são as duas saídas desse tempo do desenvolvimento psíquico, indicando destinos próprios do lado masculino e do feminino, respectivamente. Não estou com isto querendo dizer que o sexo não é importante para nós mulheres; as mulheres também gostam de sexo. Apenas que o sexo não tem a mesma representação que para os homens. Não precisamos comprovar o tempo todo nenhuma potência fálica, nos basta, muitas vezes, o olhar desejante do outro que nos coloca como causa de seu desejo.
O conto, então,  pode ser lido como uma representação das fantasias masculinas diante do desejo pela mulher. Serve também para apresentar as fantasias das mulheres que toman posse do inconsciente do homem, como a dizer que cada sujeito deseja o desejo do outro.
Já que estamos falando  em fantasia, aproveito para interrogar sobre o que poderia ser a fantasia que move Mario de Andrade neste conto? Poderia ser a personagem de Mademoiselle uma representação da figura materna do autor, uma espécie de alter ego da mãe, mas colocada como portadora do lado “sujo”, denegrido que a sexualidade dos pais representa no imaginário dos filhos? Ou ainda uma representação denegada de seu amor infantil por ela? – na medida que Mademoiselle é descrita como desprovida de encantos e, portanto, indesejável. Ou quem sabe, trata-se aí  de um jogo de espelhos: o desejo de Mademoiselle é mediado pelo desejo do autor?
Enquanto pensava nessas questões me lembrei do filme da diretora Ana Carolina de nome “Das Tripas Coração” (1982),  que enfoca muito bem a fantasia masculina sobre o que se passa vida sexual das mulheres. Recomendo também outro filme em cartaz de título “A vida invisível”, do diretor Karin Ainouz, de uma beleza dilacerante. Poder-se-á constatar, então, o abismo existente entre a subjetividade masculina e a feminina.
Para finalizar, vale dizer que a dramaticidade da situação descrita no conto é demolida pela ironia fina, pelas insinuações jocosas e picantes e pelo humor cáustico.   Ressalto também que em sua escrita Mario de Andrade brinca o tempo todo com as palavras, fazendo uso de inúmeros neologismos, tais como: afrosa, buscular, knadapantes, zunite, gluante, ecruladas. O neologismo semântico é de grande valor para a psicanálise. Eles são uma marca da prevalência do inconsciente no discurso concreto. Partindo da tese de que a linguagem é a condição do inconsciente, os neologismos apontam para um outro discurso, cuja significação precisa ser estebelecida. Eis aí, pois, o discurso do inconsciente, que ao mesmo tempo que propõe enigmas a serem decifrados, descortina a verdade do sujeito.


***
ilustração: reprodução de Claude Monet da série Catedral de Notre-Dame de Rouen. 
As 31 pinturas da série (1890) pretendiam capturar a fachada da catedral em horas diferentes do dia e do ano.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

FLORES

de Afonso Cruz

Companhia das Letras, São Paulo (2019)


por Marília Macedo Klotz

SOBRE O AUTOR

            Afonso Cruz, nasceu na cidade de Figueira da Foz em Portugal em julho de 1971, hoje com 48 anos de idade. 
            Ainda criança mudou com a família para Lisboa, onde estudou na Escola Secundária Artística Antônio Arroio, nas Belas Artes e no Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira.
            Desde sempre foi ligado as artes em especial a música, embora fosse considerado um “duro de ouvido”.  Com 18 anos comprou uma guitarra e aprendeu a tocar sozinho.  Entretanto, seu  primeiro emprego como profissional  não foi com a música, mas sim com a animação. Segundo ele não era uma vocação , mas um trabalho para sustentar o modo de vida que desejava ter , ou seja, trabalhar 6 meses e viajar os outro seis.
            Em 10 anos conseguiu visitar 60 países e dentre os que mais gostou destaca-se o Brasil e a Síria.  Dessa lista,  a Índia foi motivo de expectativas e grandes decepções.
            Passado o tempo da viagens e com a chegada de seu primeiro filho decidiu com sua mulher Maria João sair de Lisboa para morar em um sítio. Assim fizeram e foram para Monte Novo no Alantejo que fica mais ou menos uma hora de Lisboa, onde moram até hoje.
            Nessa época das mudanças, iniciou carreira de escritor, de ilustrador e criou um grupo musical chamado “The Soaked Lamb” ( O cordeiro ensopado), uma banda de Blues.
            Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico. Publicou mais de 30 livros, tendo estreiado na literatura com o romance “ A Carne de Deus”.  Em 2009 ganhou o Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco com o livro “Enciclopédia da Estória Universal “.
            Na lista de suas publicações encontramos: “Os livros que devoraram meu pai “ – 2011;
“A Boneca de Kokoschka” – 2012, que ganhou o prêmio da União Européia para a Literatura ;  “ Jesus bebia Cerveja”, considerado o Livro do Ano e ganhador do Time Out.
            No ano seguinte 2013 , se destacou com “O Cultivo da Flores de Plástico” feito essencialmente para o teatro e, também, “Para onde vão as Grandes Chuvas”.
            Em 2015, venceu o prêmio de Ilustração pela obra  “ Capital “  e também lançou “Flores “, um romance inquietante que fala sobre amor, a falta de memória e as perdas em geral.
            Este ano – 2019 , publicou “Como Cozinhar uma Criança “ e o ensaio “ O Macaco Bêbado foi a Ópera “.
            Além das obras literárias esse jovem escritor português também fez filmes entre os quais “Planets Aren’t Going Anywhere “  e  “Misanhopo “ que foram os mais conhecidos.
            Com sua Banda de Blues fez inúmeras apresentações sempre criativas e de boa receptividade.
            Segundo os críticos Afonso Cruz é  “uma das vozes mais criativas da nova literatura em língua portuguesa (Mia Couto) e, certamente “ alcançará um lugar de grande destaque” (El País).  

                                               SOBRE O LIVRO

            “Flores” é um romance instigante, de leitura fácil que fala sobre o amor, a perda da memória, da morte, das referências familiares e culturais que compõem nossa identidade.
            “Flores” é também o sobrenome de um trio de irmãs – Dália, Margarida e Violeta, que foram as protagonistas dos desejos adolescentes de um tal Sr. Manuel Ulme e seus amigos de infância de quem o narrador se encarrega de esclarecer.
            A história começa com a morte e enterro do pai do protagonista, um jornalista que vive uma vida sem graça com sua mulher Clarisse e sua filha Beatriz.
            Nesse momento de despedida fúnebre, como diz o narrador,” estava com os sentimentos à deriva, sem correr uma lágrima, mas com os destroços da morte que compareciam por todo lado diante da triste realidade da perda do pai”. Apesar do impacto, intensificado pela concretude do fato e da expressão de dor de sua mãe, veio-lhe o contraditório pensamento de que ao invés do imaginado odor de coisa podre a morte cheirava a Flores , neste seu trabalho de transformar tudo em terra e em pó.  O jornalista, então, se dá conta de que as perdas não são todas iguais assim como as lágrimas que derramamos por uma cebola ou pelo coração.  A partir daí passa a notar o comportamento de seus vizinhos, antes desapercebidos, em especial do Sr Manuel Ulme que perdeu a memória em consequência de um aneurisma cerebral.  Esse senhor não lembra da infância, do primeiro beijo e muito menos de ter visto uma mulher nua em sua vida.
            Comovido, o jornalista se propõe ajudar o vizinho na recuperação da memória perdida e da sua história de vida. Faz uma pesquisa empírica, visitando a aldeia onde ele morou, procurando seus conhecidos, amigos e todos que pudessem revelar algo sobre a identidade daquele senhor.
            Esse trabalho lhe dá uma grande “dor de cabeça” e faz ele pensar “como seria possível caber tanta dor em tão poucos centímetros de crânio”.  Descobre uma dualidade acerca daquele homem que era bom e perverso ao mesmo tempo. Porém não percebe em si mesmo a contradição entre não se achar supersticioso e não aguentar um chapéu jogado displicentemente sobre a cama. Tempos de desconhecimento e resistência ao saber!
            O casamento com Clarice está em crise e vive uma enorme rotina sem emoção. Para piorar as coisas sua filha presencia um momento de traição conjugal que abala a relação entre pai e filha, daí para frente sem aproximação e afeto.
            Em alguns momentos o personagem principal – narrador, tem diálogos consigo mesmo e com o espelho que lhe dá a violenta consciência da realidade.  Mostra-lhe a imagem de um homem deprimido, pouco sociável, que busca saber o que é o amor.  Além do espelho, os diálogos com o velho Sr. Ulme lhe mostram que a vida não é o que parece e que é a reflexão da luz interior que faz com que cada pessoa tenha cor própria. Nesse sentido, cada vivência conta e por isso cada pessoa tem o tamanho do universo que merece. (pg 25)
            Por outro lado, e junto com a percepção do Sr. Ulme frente as tragédias que se apresentam diariamente nos jornais e TV, reconhece que andamos pouco solidários e muito anestesiados diante do humano.
            Escuta a reflexão do velho quanto a realidade ser responsável pela falta de felicidade. Segundo ele o sonho nos conforta, mas a realidade nos trás medo, solidão e desespero. Precisamos Sorrir, “pois um sorriso transforma o homem e lhe trás a promessa de alegria e satisfação”.  Essa reflexão não será esquecida e seguirá o narrador até o final de sua relação com o vizinho que no fim da vida tinha sua debilidade física coberta com recortes e fotografias de sorrisos que lhe eram colados na boca por ele e por Beatriz. Além do sorriso fala da importância da poesia que “adoça a vida e ameniza os efeitos da dura realidade.
            Quanto a infância, reconhece como é difícil esse tempo do desenvolvimento humano e comove-se com sua filha Beatriz no enfrentamento das mazelas da vida e no aprendizado de tantas coisas estúpidas que são transmitidas às crianças.  Faz uma crítica a condição social das crianças e das mulheres daquele tempo, onde viviam em um canto sem prestígio e sem  reconhecimento, mas conclui que hoje não é muito diferente. Margarida, uma das irmãs Flores e eterna paixão do Sr. Ulme,  contribuiu para essas concepções. Para contrariedade da família e de todos, tornou-se cantora de Fado, seguindo e sustentando seus próprios desejos.
No resgate da história do vizinho, o narrador faz uma viagem pelos vários aspectos de sua própria vida, inclusive na questão religiosa. Mas, durante esse processo de conhecimento Clarice e ele se separam, porque viver realmente não tem nada a ver com a rotina e com aquilo que as pessoas fazem todos os dias. “Viver é precisamente o oposto”.  Desde então, começa outro tipo de convivência com a ex-mulher e com sua filha que acompanha o pai nos cuidados com o Sr. Ulme servindo-lhe de tradutora e mediadora diante da incapacidade de compreensão e sensibilidade do pai.
Na busca obessiva do narrador pela história e identidade do Sr. Manuel Ulme confronta-se  com as verdades, mas “elas não se ouvem “ já que ninguém verdadeiramente quer saber disso. Diz ele: “ quando se vive privado de tudo a verdade importa, mas quando a temos por todo lado, parece uma ficção” (pg89) O que importa é termos coração !!!!
            Assim que seguindo as palavras do Sr. Ulme o narrador vai “ entrando cada vez mais na espessura”, aprofundando a pesquisa sobre o vizinho, mas sobretudo sobre si mesmo. É uma viagem as profundezas do ser humano e conclui que “precisamos ir falando para dentro de nós” (pg 109)
Essa é a verdadeira chave que o Sr Ulme trás consigo pendurada no pescoço.  Sua função – metafórica o jornalista só vai conhecer no final do livro, quando finalmente encontra a porta que abre  para desvendar o mistério da vida sempre presente no cotidiano e nada surpreendente.
“Entremos mais dentro da espessura”, ou seja,  vamos mais a fundo para não envergonhar Darwin , quanto a evolução humana. Para tal, na sua lucidez o Sr. Ulme coloca a questão de não perder tempo a morrer enquanto pode estar vivo! Como nos diz o ditado a realidade se impõe, mas a esperança é a última que morre.  O diálogo entre eles ilustra isso. O narrador pergunta ao vizinho depois de uma consulta médica: Quanto tempo lhe deram de vida? Ele reponde: A eternidade. Estou cada vez mais próximo dela. Deram-me a porra da esperança que é infinita.... então, o que custa acreditar na eternidade? (pg 172)
Finalmente, o livro termina mostrando ao narrador que apesar do espelho mostrar –lhe  a realidade de não saber dançar, não ter jogo de pés, não espancar a realidade, não juntar Box e canção lírica,  devemos resistir com amor e solidariedade tal qual o Sr. Ulme e a doce Beatriz.
Entremos mais dentro da espessura e assim poderemos tolerar o “chapéu sobre a cama” e agir com” Altitude “!!!!
O livro é uma dose de realidade, mas uma grande mensagem de esperança!!!!
Gostei e recomendo.