Comentários de Priscila Fernandes
Costa
Do Amor e Outros Demônios relata
a história de um amor impossível e “pecaminoso” entre uma menina de 13 anos –
Sierva Maria – e um jovem padre – Cayetano de Laura. A narrativa se passa no
século XVIII, quando a Igreja e a Inquisição ainda dominam os países de língua
espanhola, determinam a conduta e o comportamento de todos os membros da
comunidade católica e castigam tudo o que é diferente, desconhecido, misterioso
e demoníaco, incluindo aí a paixão amorosa.
Sierva Maria, certo dia, foi
mordida por um cão raivoso e a partir daí passou a ser vista como irremediavelmente
condenada à morte prematura. Acontece, contudo, que para a Igreja o cólera, ou a raiva, nada mais era
que uma das muitas astúcias do demônio, e que a mordida de um cão raivoso era
uma forma do maligno injetar sua força demoníaca no corpo da vítima, para então se apropriar de sua alma.
Sierva Maria, portanto, não mais
deverá ser assistida por médicos, curandeiros ou feiticeiros, mas ficará sob os
cuidados da Santa Madre Igreja, e mais especificamente das irmãs do convento de
Santa Clara, que muito a contragosto se vêem obrigadas, por ordem do bispo, a
receber a jovem endemoniada. O padre Cayetano Delaura fica, pois, encarregado
de oficiar os rituais de exorcismo a fim de expulsar o demônio do corpo da
menina. Como consequência desses encontros, surge, então, entre o padre e a
moça, uma forte relação de amor apaixonado.
Num relato que mistura realidade
e fantasia, Garcia Marques faz da mordida do cão raivoso uma metáfora da chegada
avassaladora da sexualidade e do amor-paixão na vida da jovem Sierva Maria. Ela,
então, se vê tomada pela emergência da sexualidade, com todos os arrebatamentos
do amor juvenil. Sabemos que até o final do século XVIII a adolescência, tal
como a identificamos hoje, não era percebida como um estágio particular do
desenvolvimento. O período da infância era logo substituído pela fase adulta e
muitas vezes essa passagem era facilitada pelos chamados ritos de passagem, que consistiam em celebrações ritualísticas que
marcavam a mudança de status de uma
pessoa, no seio de sua comunidade.
Sierva Maria experiencia e acolhe
a chegada desse amor como uma jovem mulher desejosa e apaixonada. A descoberta
do amor-paixão parece ser, pois, para
nossa personagem, o rito de passagem que possibilitará a saída da infância e a entrada na vida adulta,
do lugar de menina à posição feminina.
Diante das freiras e de todos os
representantes da Igreja a jovem reage como uma endemoniada, com ataques
histéricos furiosos, dando a ver exatamente aquilo que lhe é demandado e
divertindo-se, ao mesmo tempo, com a farsa encenada diantes das autoridades
eclesiásticas. Mas ao lado de Cayetano mostra-se mulher dócil e apaixonada,
sempre a espera de seu amado, entregando-se por inteira aos caprichos do amor e
sabedora do lugar que ocupa como aquela que causa seu (dele) desejo. As
mulheres, por cultivarem o amor mais do que os homens, somos responsáveis pelos
encontros possíveis entre os sexos. Para nós o amor é uma paixão; sem ele,
perdemos a nós mesmas, pois é o amor que nos identifica como mulheres. “O amor te faz rebelde. O amor te faz
diferente. O amor te faz crescer.”
Lacan diz que “amar é dar o que não se tem”, o que quer
dizer que amar é reconhecer a própria falta e, então, doá-la ao outro. Para
amar, pois, é necessário confessar nossa falta e reconhecer que se tem
necessidade do outro, que o outro nos falta. Não é dar o que se possui –
presentes, por exemplo – mas dar algo que não se possui, que vai além de si
mesmo. Isso é essencialmente feminino, e
nesse sentido o amor feminiza. Talvez por isso alguns homens tenham tanta
dificuldade de amar...
Num mundo onde impera o culto ao
demoníaco, onde o tempo todo se fala no diabo, mesmo que seja de forma
disfarçada e justificada pela da necessidade de combate-lo e derrota-lo – a
palavra presentifica a coisa, nos lembra a psicanálise –, não existe lugar para
o amor-desejo, pois até ele é considerado uma personificação do mal.
Com sua narrativa fantástica
Garcia Marques nos transporta para uma dimensão estranha e ao mesmo tempo muito
familiar, possibilitando que fenômenos até então percebidos como obscuros e
irracionais sejam experienciados como vivências concretas e portadoras de uma
verdade onde o cotidiano e o insólito se sobrepõem. O fantástico, nos adverte
Freud, é uma forma de representação de um mal-estar típico da subjetividade. É
uma expressão do inconsciente.
Excelente livro. Recomendo a
leitura.
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