terça-feira, 8 de maio de 2018

Do Amor e Outros Demônios


de Gabriel García Márquez
Comentários de Priscila Fernandes Costa

Do Amor e Outros Demônios relata a história de um amor impossível e “pecaminoso” entre uma menina de 13 anos – Sierva Maria – e um jovem padre – Cayetano de Laura. A narrativa se passa no século XVIII, quando a Igreja e a Inquisição ainda dominam os países de língua espanhola, determinam a conduta e o comportamento de todos os membros da comunidade católica e castigam tudo o que é diferente, desconhecido, misterioso e demoníaco, incluindo aí a paixão amorosa.
Sierva Maria, certo dia, foi mordida por um cão raivoso e a partir daí passou a ser vista como irremediavelmente condenada à morte prematura. Acontece, contudo, que para  a Igreja o cólera, ou a raiva, nada mais era que uma das muitas astúcias do demônio, e que a mordida de um cão raivoso era uma forma do maligno injetar sua força demoníaca no corpo da vítima,  para então se apropriar de sua alma.
Sierva Maria, portanto, não mais deverá ser assistida por médicos, curandeiros ou feiticeiros, mas ficará sob os cuidados da Santa Madre Igreja, e mais especificamente das irmãs do convento de Santa Clara, que muito a contragosto se vêem obrigadas, por ordem do bispo, a receber a jovem endemoniada. O padre Cayetano Delaura fica, pois, encarregado de oficiar os rituais de exorcismo a fim de expulsar o demônio do corpo da menina. Como consequência desses encontros, surge, então, entre o padre e a moça, uma forte relação de amor apaixonado.  
Num relato que mistura realidade e fantasia, Garcia Marques faz da mordida do cão raivoso uma metáfora da chegada avassaladora da sexualidade e do amor-paixão na vida da jovem Sierva Maria. Ela, então, se vê tomada pela emergência da sexualidade, com todos os arrebatamentos do amor juvenil. Sabemos que até o final do século XVIII a adolescência, tal como a identificamos hoje, não era percebida como um estágio particular do desenvolvimento. O período da infância era logo substituído pela fase adulta e muitas vezes essa passagem era facilitada pelos chamados ritos de passagem, que consistiam em celebrações ritualísticas que marcavam a mudança de status de uma pessoa, no seio de sua comunidade.
Sierva Maria experiencia e acolhe a chegada desse amor como uma jovem mulher desejosa e apaixonada. A descoberta do amor-paixão parece ser, pois,  para nossa personagem, o rito de passagem que possibilitará a  saída da infância e a entrada na vida adulta, do lugar de menina à posição feminina.  
Diante das freiras e de todos os representantes da Igreja a jovem reage como uma endemoniada, com ataques histéricos furiosos, dando a ver exatamente aquilo que lhe é demandado e divertindo-se, ao mesmo tempo, com a farsa encenada diantes das autoridades eclesiásticas. Mas ao lado de Cayetano mostra-se mulher dócil e apaixonada, sempre a espera de seu amado, entregando-se por inteira aos caprichos do amor e sabedora do lugar que ocupa como aquela que causa seu (dele) desejo. As mulheres, por cultivarem o amor mais do que os homens, somos responsáveis pelos encontros possíveis entre os sexos. Para nós o amor é uma paixão; sem ele, perdemos a nós mesmas, pois é o amor que nos identifica como mulheres. “O amor te faz rebelde. O amor te faz diferente. O amor te faz crescer.”
Lacan diz que “amar é dar o que não se tem”, o que quer dizer que amar é reconhecer a própria falta e, então, doá-la ao outro. Para amar, pois, é necessário confessar nossa falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que o outro nos falta. Não é dar o que se possui – presentes, por exemplo – mas dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo.  Isso é essencialmente feminino, e nesse sentido o amor feminiza. Talvez por isso alguns homens tenham tanta dificuldade de amar...
Num mundo onde impera o culto ao demoníaco, onde o tempo todo se fala no diabo, mesmo que seja de forma disfarçada e justificada pela da necessidade de combate-lo e derrota-lo – a palavra presentifica a coisa, nos lembra a psicanálise –, não existe lugar para o amor-desejo, pois até ele é considerado uma personificação do mal.
Com sua narrativa fantástica Garcia Marques nos transporta para uma dimensão estranha e ao mesmo tempo muito familiar, possibilitando que fenômenos até então percebidos como obscuros e irracionais sejam experienciados como vivências concretas e portadoras de uma verdade onde o cotidiano e o insólito se sobrepõem. O fantástico, nos adverte Freud, é uma forma de representação de um mal-estar típico da subjetividade. É uma expressão do inconsciente.
Excelente livro. Recomendo a leitura.
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