terça-feira, 10 de abril de 2018

CARTA AO PAI

de Franz Kafka
por Claudine M D Duarte

"Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e tenha certeza de que
não porei aqui, seja para embelezar ou enfear, mais do que aquilo que vi e me pareceu."
Carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manuel, Rei de Portugal



            Franz Kafka nasceu em Praga no ano de 1883, filho do comerciante Hermann Kafka e de Julie Löwy. Formou-se em Direito e trabalhou alguns anos como advogado. Nunca se casou, apesar de ter tido relações marcantes com várias mulheres. Antes de morrer de tuberculose, em 1924, passou algumas temporadas em sanatórios e viveu em Praga a maior parte de sua vida. Ao lado de James Joyce, Marcel Proust e William Faulkner, Kafka é considerado um dos escritores mais relevantes do século XX. A maioria de seus textos, escritos em alemão, foram publicadas postumamente e são obras-primas da prosa universal. Cabe destaque para: O Castelo, O Processo, A Metamorfose, A Colônia Penal, A Construção e Um Artista da Fome. Particularmente, gosto e recomendo muito o conto O Novo Advogado, integrante do livro O Médico Rural.

           Quanto ao livro CARTA AO PAI, alguns biógrafos de Kafka afirmam que o texto é resultado dos dramas vivenciados pelo autor, como a tuberculose e os três noivados desfeitos, sendo o último deles a circunstância que provoca a contundente escrita ao seu pai.

            Quem nunca? Que atire a primeira pedra.

           Cada um de nós, em algum ponto da vida, escreveu – mental ou literalmente – uma carta ao pai. E nesse escrito vieram críticas, lamúrias e acusações. Assim fez o escritor Franz Kafka, ao longo de dez dias do frio novembro de 1919 em Praga. Sua pena correu sobre o papel ‘cuspindo’ o que naquele tempo lhe pareceu justo afirmar.


         A primeira leitura me remeteu a uma sessão de terapia Constelação Familiar, onde o filho acusa o pai dominador e, violentamente, ausente de sua construção como ser humano e escritor. E, para completar a sessão terapêutica imaginada, esperava o final das palavras do filho para que eu pudesse ‘falar’ pelo pai... qual a minha surpresa ao descobrir que o próprio Kafka já havia se encarregado disso. Afirma que o pai, poderia responder a ele:

“Portanto, agora você já teria conseguido o bastante com sua insinceridade, pois provou três coisas: primeiro, que você é inocente; segundo, que sou culpado, e terceiro, que por pura grandiosidade você está disposto não só a me perdoar, mas – o que é mais ou menos o mesmo – a demonstrar e crer pessoalmente que eu, seja como for contra a verdade, também sou inocente.
(...)
No fundo, porém, aqui e em toda parte, não me provou nada a não ser que todas as minhas recriminações eram justificadas e que faltou entre elas uma especialmente legítima, ou seja: a recriminação da insinceridade, da bajulação, do parasitismo. Se não me equivoco muito, você ainda parasitando em mim com esta carta.”

           Um aspecto interessante é que, apesar de escrita, a carta nunca foi entregue ao seu destinatário. Medo? Culpa? Difícil afirmar.
        No livro de contos O Médico Rural, escrito e publicado por Franz Kafka também no ano de 1919, encontramos a seguinte dedicatória: “a meu pai”.  Como entendê-la? Franz compreendeu a distância de Hermann? Seria A Carta ao Pai, junto com essa árida dedicatória, a base para os personagens de obras posteriores, como O Processo (1925) e O Castelo (1926)? Segundo o crítico Walter Benjamin, é possível vermos irmanados, na obra de Kafka, pais e burocratas:
“O pai é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka.”

           Assim sendo, a literatura mundial deve muito ao senhor Hermann Kafka e ao que seu filho fez com os sentimentos provocados pela relação de ambos. No dicionário Houaiss encontramos o verbete kafkiano como um adjetivo que ‘de forma semelhante à obra de Kafka, evoca uma atmosfera de pesadelo, de absurdo; especialmente em um contexto burocrático que escapa a qualquer lógica ou racionalidade’.

      O pai Samsa, personagem de A Metamorfose, aniquila perversamente a vida do filho Gregor, metaforicamente transformado em uma barata. Isso nos remete aos trechos da Carta ao Pai em que são citados os insetos daninhos e sua capacidade de ‘sugar simultaneamente o sangue para conservar a vida’. Noutros romances, encontramos situações e personagens vivenciando delírios persecutórios, sentimentos de culpa e, densamente, muito medo e impotência.

          Gostaria de ter uma dedicação maior para a escrita dessa resenha e pontuar as partes da carta em que encontrei deslumbres de elogio e gratidão ao pai... mas não terei tempo e, por isso, contento-me com uma pequena citação logo no início:

“Esse seu modo usual de ver as coisas eu só considero justo na medida em que também acredito que você não tem a menor culpa pelo nosso distanciamento. Mas eu também não tenho a menor culpa. Se pudesse levá-lo a reconhecer isso, então seria possível, não uma nova vida – para tanto nós dois estamos velhos demais – mas sem dúvida uma espécie de paz; não a cessação, mas certamente um abrandamento das suas intermináveis recriminações.”

       A leitura de Kafka nem sempre é fácil, talvez pelo incômodo persistente, pela presença do não-pertencimento – a falta de um lugar. O não acolhimento provocado pelo medo e pela insegurança do não-entendimento. A cada leitura, sinto uma dor diferente, em lugares distintos e, nem sempre, inexplorados. O livro nos deixa a tristeza provocada pelo absurdo de nossa condição e, principal e ‘kafkianamente’, pelos insensatos labirintos de nossas relações humanas.

    Recomento fortemente a leitura e, para os amantes de Kafka, está disponível o portal: https://franzkafka.com.br/. Nesse link é possível encontrar material compilado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, através de seu programa de pós-graduação em Literatura, relacionado à obra e à vida do escritor. Imperdível!

Carta ao Pai


de Franz Kafka
por Carlos Guido Azevedo

Não sei se mulheres fazem carta ao pai, ou o fazem às suas mães. Mas, eu fiz a minha carta aos 19 anos, quando cursava o primeiro ano de engenharia.  Pensando bem, não sei se fui tão bondoso com papai, como Kafka foi com o seu. Na verdade, acho que fui mais grosseiro e sem a capacidade intelectual do autor, mas não deixei de colocar todos aqueles pontos nos is. 

Claro, não é um livro de metáforas "Kafkianas" emblemáticas e desesperadoras. É uma desabafo absolutamente necessário na formação da personalidade masculina. Não há formação adulta sem esse rito de passagem. Sem matar (metaforicamente) o pai, o homem adulto não estabelece sua personalidade e não supera as dependências da infância. 

Há muitas formas de fazer isso, mas aqueles que articulam a lógica e o discurso, normalmente se expressam através de uma carta, que também, quase nunca é enviada.

Estarei tomando a minha experiência e a de Kafka, como regra geral? Acho que não. Há casos de alguns que partem para a negação absoluta da autoridade paterna, outros anulam o contato e falseiam sua existência, mas o que importa é que este rito de passagem, também foi experienciado por mim e posso atestar a realidade dos fatos.

Se não há dois adolescentes iguais, não há a menor diferença na relação entre eles e seus pais, quando estão presentes as mesmas características autoritárias e ameaçadoras.

Então posso afirmar que a carta me tocou de uma forma muito íntima e pessoal. Algumas partes eram mesmo semelhantes, ressalvando a qualidade do texto e a objetividade. No entanto, a catarse me fez bem, me fez compreender a diferença de gerações, amadurecer e autonomizar meu pensamento e ação em relação à orientação paterna.

Kafka, no entanto, embora tenha colocado em papel, tudo que lhe incomodava, oprimia, e fazia dele aquele jovem tímido, cheio de medos e introvertido, sempre temendo contrariar o pai, não conseguiu fazer a transição necessária, por questões, que julgo muito particulares de sua personalidade.

Não sou capaz de fazer uma análise dos motivos que o levaram a ser quem foi, mas tenho certeza que a importância do pai no contexto, não foi tão peremptória como ele julgava, era mais uma necessidade pessoal de se submeter àquela personalidade forte, buscando a aprovação na submissão e fazendo dela o seu guia para toda a vida, toda a obra.

Afinal, o velho Hermann Kafka, não devia ser muito diferente dos outros pais judeus daquela época. Duro, autoritário, minimamente amoroso, que via o filho com sérios problemas emocionais e talvez com alguma inclinação feminina e, cuidou, a seu modo, de proteger por toda a vida aquela frágil criatura, que mesmo tendo editado livros, ele mandava entrar em casa para não se resfriar.

Kafka não efetivou a transição da adolescência para a maturidade, morreu aos 41 anos sendo tratado pela família como uma criança insegura. Sua mente profunda e complexa transformou suas contradições internas em textos fortes e instigantes. Na verdade, este seu desespero não me faz bem e reluto em indicar como um texto necessário para a leitura, embora repute como um clássico.

Não recomendo.