por Carlos Guido Azevedo
Escrito há mais de 30 anos é
corriqueiro falar que este é um romance distópico, na verdade ele é sufocante e
uma ficção de um futuro mais provável que as profecias de invasão de extra
terrestres.
A evolução ou involução nesses 30
anos do lançamento foi tanta que se seu enredo fosse desenvolvido num país
mulçumano ou em alguma república africana, nem chamaríamos de distopia, nem
seria relevante como profecia.
O surpreendente nele é o contexto
e a ambiência construído pela autora, localizando o nos Estados Unidos da
América do Norte, depois de uma hecatombe que tornou difícil a reprodução
humana, colocando em perigo a continuidade da raça, nãos e sabe se só neste
território.
Um previsível golpe militar introduziu
restrições à sociedade americana tornando difícil a saída da América e o
deslocamento interno entre regiões, como é corriqueiro em países ocupados
militarmente, as tentativas de fuga ou transição entre territórios quase sempre
acabam em morte ou prisão, como se vê diariamente.
A força militar cristã de direita
que assumiu o governo e tomou o poder instituiu uma ditadura religiosa seguindo
os preceitos do Velho Testamento Bíblico, e redefiniu a sociedade em castas e
funções conforme os valores e os interesses da oligarquia dominante. Também,
mudou o nome do país para República de Gilead, não consegui entender o motivo.
O fato das lembranças de antes
estarem tão vivas na memória das pessoas dá uma ideia da celeridade das
transformações descritas e de como a sociedade foi surpreendida pelas mudanças.
A velocidade do processo de perda de direitos e a aceitação da população é algo
inimaginável, mas imensamente provável com a evolução do politicamente correto
e a evolução de um discurso de ódio e xenofobia que separa velozmente as pessoas
dentro do mesmo território, além da heteronomia geral que se segue a alguma
catástrofe.
No conto, a Aia narra o seu dia a
dia, tempos não muito distante do acontecido, quando a primeira geração que
sofreu as transformações ainda guardava a lembrança de como era a vida antes da
hecatombe seus momentos de angústia e suas lembranças, como se estivesse
escrevendo um diário.
As mulheres nessa sociedade,
principal foco de preocupações pelo problema de reprodução, foram divididas em
castas, nomeadas como: Esposas (as mulheres que têm permissão para casar,
geralmente mulheres influentes e importantes antes da Guerra); Martas (mulheres
responsáveis por cuidar da casa); Aias (mulheres férteis, responsáveis por
engravidar dos Comandantes e lhes conceber um filho); e Tias (mulheres mais
velhas, fanáticas responsáveis pelo treinamento e controle das aias) e as Não
Mulheres, a geral sem casta e trabalhadora.
Há também a divisão dos homens,
que é pouco explorada, Comandantes, Guardiões da Fé e o povo invisível ou algo
assim, mas podemos ver que apenas os Comandantes “controlam” todas as castas, e
muitos outros são proibidos de casar ou manter qualquer contato com mulheres
Os fatos narrados em primeira pessoa,
a Aia que perdeu seu nome de batismo e é denominada Offred (“de Fred”), pertence
a um Comandante muito importante. Além de ter a vida submetida a regras e
protocolos, ainda sofre a perda da filha e do marido enquanto tentavam fugir
dos Estados Unidos durante a Guerra. Durante algumas passagens da história,
Offred conta como os EUA chegaram até ali:
“Começaram retirando alguns direitos
simples, como a presença de mulheres em capas de revista; depois lhes tiraram
seus empregos; então negam o direito das mulheres de manterem uma conta
bancária (o dinheiro deveria ser administrado pela figura masculina mais
próxima), e foi progredindo até serem divididas e controladas totalmente”.
O romance é escrito numa mais
pura perspectiva feminina, o que o engrandece em muito, mas torna o livro muito
maçante, para o leitor masculina, pelo excesso de detalhes e sentimentos
particulares da Aia. Os homens, mesmo na mais alta hierarquia são personagens
de segunda no contexto geral da história, absolutamente auto centrada.
O sofrimento e as restrições da
Aia, colocada como vítima do contexto machista da sociedade é, de longe, menos
cruel e menos sofrida que a vida atual de grande parte das mulheres submetidas
a regimes autocráticos fundamentalistas.
De um ponto de vista machista,
para fazer contraponto ao excessivo feminismo e, tendo em vista a pouca
informação da vida social em geral, é de se supor que a Republica de Gilead
tenha tido uma vida breve, porque mesmo a mais auto hierarquia, os Comandantes
se achavam presos a regras irreais e não tardavam a transgredi-las. Fora o Paredão que sempre expunha os corpos
das vítimas do sistema como demonstração de força, a vida em geral na república
de Gilead era tão controlada quanto os antigos sistemas comunistas. Porém o nível
de vida, o tratamento e o respeito que eram concedidos às Aias e as tentativas
das Martas de construir uma lógica por trás da brutalidade, faz reconhecer uma
certa preocupação em justificar as barbáries e restrições que o sistema submetia
as mulheres, embora a republica fosse tipicamente feminina e elas consideradas
da elite da sociedade, abaixo apenas das esposas dos Comandantes. A sua memória
da sua vida passada, os elementos de restrições da liberdade e a sua rotina
controlada é que a faziam infeliz, mas o seu Comandante dá sinais de estar se
apaixonando por ela que prefere a aventura com o motorista Nick que a sequestra
e a leva para os subterrâneos da resistência.
Na minha opinião “O Conto da Aia”
é mesmo um livro futurista que compõe um modelo indesejado de sociedade a
partir de comportamentos antigos que estão retornado em pulsões esporádicos e
que ainda não adquiriram caráter sistêmico, por pura resistência social, mas se
essas resistências diminuírem, ou algo de grandeza e imponderabilidade de um
desastre nuclear de grandes proporções ocorrer, estaremos num limiar de uma
realidade factível, o que faria do Conto da Aia uma profecia.
Interessante também é a crônica “Notas
históricas sobre o Conto da Aia”, de um Simpósio Acadêmico para discutir o
achado do Conto da Aia quase 200 anos depois de escrito. Buscando entender a
República Gileadiana, quando ocorre uma discussão entre intelectuais para
reconstruir conceitualmente algum entendimento sociológico dessa sociedade
onde viveu a Aia escritora.
No fundo, uma jocosa crônica para
demonstrar que nem os 200 anos passados, nem as grandes transformações sociais
são capazes de alterar os comportamentos e os protocolos da Academia.
Recomendo com louvor, pelo
conteúdo educativo.