por Claudine Duarte
“E sabia, também, que viria talvez o dia em
que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e
os mandaria morrer numa cidade feliz.”
A OBRA
Em primeiro lugar, recomendo o livro. Sem restrições.
Albert Camus publicou o livro A Peste, em 1947, reforçando sua luta de jornalista para que as lições da guerra não fossem esquecidas. Lutava contra a indiferença nas páginas do jornal francês Combat.
Escreveu uma alegoria: uma epidemia assola uma cidade da mesma forma que a ocupação nazista assolara a França. E como no final da guerra, a epidemia cessa, a ocupação termina e as pessoas retomam suas vidas apáticas.
Camus foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1957 e, no seu discurso à Academia Sueca, cabe destacar um trecho:
"Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer. Ante um mundo ameaçado pela desintegração, onde nossos grandes inquisidores tentam estabelecer definitivamente o reinado da morte, ela sabe que devem numa espécie de corrida maluca contra o relógio, restaurar entre as nações uma paz (que não é aquela da servidão), conciliar novamente o trabalho e a cultura, e recriar entre todos os homens uma Arca da Aliança. Não há garantias de que ela possa cumprir essa tarefa imensa, mas é certo de que, em qualquer lugar do mundo, ela já tem o desafio duplo da verdade e da liberdade, e, ocasionalmente, sabe morrer por ele sem ódio."Essa aliança citada em seu discurso pode ser representada no decorrer da história d'A Peste, onde a cidade de Oran, na Argélia, e seus habitantes sofrem com uma epidemia que não entendem de onde veio e nem mesmo como irá embora. Junto ao médico, Dr. Rieux, uma confraria de outros homens, é criada com intuito de lutar, resistir e debelar o inimigo comum: a peste. A aliança de Oran é formada por Tarroux, escritor; Cottard, contrabandista; Paneloux, padre jesuíta; Grand, funcionário público; Rambert, jornalista; Castel, cientista; e Othon, juiz. Todos eles, ligados de alguma forma ao Dr. Rieux, médico e narrador da história, tornam-se solidários e participam com suas limitações e conhecimentos dos episódios em que a cidade vive e morre durante a epidemia.
A cidade de Oran, construida de costas para o mar, tem uma vida tranquila e cheia de hábitos. Diz o autor, no primeiro capítulo: 'a vida não é muito emocionante, ao menos desconhece-se a desordem.' As pessoas vivem para o trabalho, acumulando riquezas e, com rotina meticulosa, mal tem tempo para as coisas do coração: 'Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.' E é nessa cidade que a palavra Peste é pronunciada, com muito espanto, após algumas mortes de cidadãos e de ratos agonizantes.
"Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contundo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (...) Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. (...) Números flutuavam na sua memória e ele dizia a si mesmo que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história esfumaçam-se na imaginação."Com a identidade do inimigo reconhecida - a peste bubônica - foi aberto o caminho para que sentimentos anestesiados pela rotina fossem resgatados. Os homens que integram a aliança em torno do Dr. Rieux descobrem, dentro de cada um, a capacidade para redefinir valores e crenças, reestabelecendo relações humanas, com solidariedade e compaixão. O jornalista Rampert, mesmo com chance de fugir ao cerco imposto pela doença, decide ficar e ajudar os demais.
Assim sendo, o livro permite interpretações tanto pela ótica política como por um olhar filosófico-existencial. São produzidas reflexões sobre nossa finitude, nosso amor à vida e, principalmente, sobre nossa capacidade de transformação. São 300 páginas extremamente bem escritas que nos apresentam pensamentos profundos sobre nossa dor, medo e solidão gerados por uma doença ou por algo que nos ameaça e que não podemos controlar.
Com o advento da epidemia, os habitantes de Oran redescobrem a vida, transformam a forma com que se relacionam, laços entre casais são fortalecidos e vários amadurecem ao experimentar a dor da separação de seus entes queridos, seja pela morte ou pelo isolamento. Destaco a cena de amizade entre Rieux e Tarroux:
"É ainda por isso que essa epidemia não me ensina nada senão que é preciso combatê-la a seu lado. Sei, de ciência certa (sim, Rieux, sei tudo da vida como vê), que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está isento dela. (...) E como é preciso ter vontade e atenção para nunca se ficar distraído! (...) É por isso que todos parecem cansados (...) Foi assim que decidi por-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os prejuízos. No meio delas, posso ao menos procurar saber como se chega à paz.
(...)Depois de um silêncio, o médico soergueu-se um pouco e perguntou-lhe se tinha alguma ideia sobre o caminho que era preciso seguir para se chegar à paz.
- Tenho. A simpatia. (...) Sabe o que devíamos fazer em prol da amizade? (...) Tomar um banho de mar.
(...) Durante alguns minutos, avançaram com a mesma cadência e o mesmo vigor, solitários, longe do mundo, libertos enfim da cidade e da peste. (...) Sem nada dizerem, ambos aceleraram os movimentos, fustigados por essa surpresa do mar. (...) Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarroux dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava por esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar. Sim, era preciso recomeçar e a peste não esquecia ninguém por muito tempo."No último capítulo, o narrador explica o motivo pelo qual decidiu redigir a crônica sobre Oran e sua peste, reafirmando a crença humanista de Camus:
"O velho tinha razão, os homens eram sempre os mesmos. Mas essa era sua força e a sua inocência, e era aqui que Rieux, acima de toda a dor, sentia que se juntava a eles. (...) Decidiu, então, redigir esta narrativa, que termina aqui, para não ser daqueles que se calam, para depor a favor das vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar."
O HOMEM
Segundo Otto Lara Rezende: Aqui está um homem. Um grande homem. Um grande escritor. Um escritor torturado pelos problemas e pelas indagações que o acompanham por toda parte. (...) Jornalista combativo e combatente, Camus tomou parte da Resistência. Nascido em Argel, transferiu-se em 1940 para a França e seu nome de lá se irradiou por toda parte. Ex-militante político, tendo sido membro do Partido Comunista, Camus viveu inflamado pela paixão da Justiça. Espírito polêmico e independente, de certo modo foi um solitário.
Ficcionista, publicou, entre outras obras: O Estrangeiro, A Peste e A Queda. Ensaísta, é autor de O Mito de Sísifo. Dramaturgo, cabe ressaltar peças de sua autoria: Calígula, O Mal-entendido e Estado de Sítio, quase como uma adaptação de A Peste para o teatro. Também produziu uma adaptação do livro Os Possessos, de Dostoiévski, em peça homônima desenvolvida em 3 atos.
Morreu em janeiro de 1960, num acidente de carro, ironicamente com o bilhete do trem no bolso... num trecho de A Peste, Rieux anota "Apostavam no acaso, e o acaso não pertence a ninguém".