terça-feira, 16 de maio de 2017

A PESTE

de Albert Camus

por Claudine Duarte

 “E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”

A OBRA
Em primeiro lugar, recomendo o livro. Sem restrições.
Albert Camus publicou o livro A Peste, em 1947, reforçando sua luta de jornalista para que as lições da guerra não fossem esquecidas. Lutava contra a indiferença nas páginas do jornal francês Combat.
Escreveu uma alegoria: uma epidemia assola uma cidade da mesma forma que a ocupação nazista assolara a França. E como no final da guerra, a epidemia cessa, a ocupação termina e as pessoas retomam suas vidas apáticas.
Camus foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1957 e, no seu discurso à Academia Sueca, cabe destacar um trecho:
"Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer. Ante um mundo ameaçado pela desintegração, onde nossos grandes inquisidores tentam estabelecer definitivamente o reinado da morte, ela sabe que devem numa espécie de corrida maluca contra o relógio, restaurar entre as nações uma paz (que não é aquela da servidão), conciliar novamente o trabalho e a cultura, e recriar entre todos os homens uma Arca da Aliança. Não há garantias de que ela possa cumprir essa tarefa imensa, mas é certo de que, em qualquer lugar do mundo, ela já tem o desafio duplo da verdade e da liberdade, e, ocasionalmente, sabe morrer por ele sem ódio."
Essa aliança citada em seu discurso pode ser representada no decorrer da história d'A Peste, onde a cidade de Oran, na Argélia, e seus habitantes sofrem com uma epidemia que não entendem de onde veio e nem mesmo como irá embora. Junto ao médico, Dr. Rieux, uma confraria de outros homens, é criada com intuito de lutar, resistir e debelar o inimigo comum: a peste. A aliança de Oran é formada por Tarroux, escritor; Cottard, contrabandista; Paneloux, padre jesuíta; Grand, funcionário público; Rambert, jornalista; Castel, cientista; e Othon, juiz. Todos eles, ligados de alguma forma ao Dr. Rieux, médico e narrador da história, tornam-se solidários e participam com suas limitações e conhecimentos dos episódios em que a cidade vive e morre durante a epidemia.
A cidade de Oran, construida de costas para o mar, tem uma vida tranquila e cheia de hábitos. Diz o autor, no primeiro capítulo: 'a vida não é muito emocionante, ao menos desconhece-se a desordem.' As pessoas vivem para o trabalho, acumulando riquezas e, com rotina meticulosa, mal tem tempo para as coisas do coração: 'Em Oran, como no resto do mundo, por falta de tempo ou de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.' E é nessa cidade que a palavra Peste é pronunciada, com muito espanto, após algumas mortes de cidadãos e de ratos agonizantes. 
"Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contundo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. (...) Simplesmente, quando se é médico, faz-se uma ideia da dor e tem-se um pouco mais de imaginação. (...) Números flutuavam na sua memória e ele dizia a si mesmo que umas três dezenas de pestes que a história conheceu tinham feito perto de cem milhões de mortos. Mas que são cem milhões de mortos? Quando se fez a guerra, já é muito saber o que é um morto. E visto que um homem morto só tem significado se o vemos morrer, cem milhões de cadáveres semeados ao longo da história esfumaçam-se na imaginação."
Com a identidade do inimigo reconhecida - a peste bubônica - foi aberto o caminho para que sentimentos anestesiados pela rotina fossem resgatados. Os homens que integram a aliança em torno do Dr. Rieux descobrem, dentro de cada um, a capacidade para redefinir valores e crenças, reestabelecendo relações humanas, com solidariedade e compaixão. O jornalista Rampert, mesmo com chance de fugir ao cerco imposto pela doença, decide ficar e ajudar os demais.
Assim sendo, o livro permite interpretações tanto pela ótica política como por um olhar filosófico-existencial. São produzidas reflexões sobre nossa finitude, nosso amor à vida e, principalmente, sobre nossa capacidade de transformação. São 300 páginas extremamente bem escritas que nos apresentam pensamentos profundos sobre nossa dor, medo e solidão gerados por uma doença ou por algo que nos ameaça e que não podemos controlar.
Com o advento da epidemia, os habitantes de Oran redescobrem a vida, transformam a forma com que se relacionam, laços entre casais são fortalecidos e vários amadurecem ao experimentar a dor da separação de seus entes queridos, seja pela morte ou pelo isolamento. Destaco a cena de amizade entre Rieux e Tarroux:
"É ainda por isso que essa epidemia não me ensina nada senão que é preciso combatê-la a seu lado. Sei, de ciência certa (sim, Rieux, sei tudo da vida como vê), que cada um traz em si a peste, porque ninguém, não, ninguém no mundo está isento dela. (...) E como é preciso ter vontade e atenção para nunca se ficar distraído! (...) É por isso que todos parecem cansados (...) Foi assim que decidi por-me do lado das vítimas, em todas as ocasiões, para limitar os prejuízos. No meio delas, posso ao menos procurar saber como se chega à paz.
 (...)Depois de um silêncio, o médico soergueu-se um pouco e perguntou-lhe se tinha alguma ideia sobre o caminho que era preciso seguir para se chegar à paz.
- Tenho. A simpatia. (...) Sabe o que devíamos fazer em prol da amizade? (...) Tomar um banho de mar.
(...) Durante alguns minutos, avançaram com a mesma cadência e o mesmo vigor, solitários, longe do mundo, libertos enfim da cidade e da peste. (...) Sem nada dizerem, ambos aceleraram os movimentos, fustigados por essa surpresa do mar. (...) Quando viram de longe a sentinela da peste, Rieux sabia que Tarroux dizia para si próprio, como ele, que a doença acabava por esquecê-los, que isso era bom, e que agora era preciso recomeçar. Sim, era preciso recomeçar e a peste não esquecia ninguém por muito tempo."
No último capítulo, o narrador explica o motivo pelo qual decidiu redigir a crônica sobre Oran e sua peste, reafirmando a crença humanista de Camus:
"O velho tinha razão, os homens eram sempre os mesmos. Mas essa era sua força e a sua inocência, e era aqui que Rieux, acima de toda a dor, sentia que se juntava a eles. (...) Decidiu, então, redigir esta narrativa, que termina aqui, para não ser daqueles que se calam, para depor a favor das vítimas da peste, para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar."

O HOMEM
Segundo Otto Lara Rezende: Aqui está um homem. Um grande homem. Um grande escritor. Um escritor torturado pelos problemas e pelas indagações que o acompanham por toda parte. (...) Jornalista combativo e combatente, Camus tomou parte da Resistência. Nascido em Argel, transferiu-se em 1940 para a França e seu nome de lá se irradiou por toda parte. Ex-militante político, tendo sido membro do Partido Comunista, Camus viveu inflamado pela paixão da Justiça. Espírito polêmico e independente, de certo modo foi um solitário.
Ficcionista, publicou, entre outras obras: O Estrangeiro, A Peste e A Queda. Ensaísta, é autor de O Mito de Sísifo. Dramaturgo, cabe ressaltar peças de sua autoria: Calígula, O Mal-entendido e Estado de Sítio, quase como uma adaptação de A Peste para o teatro. Também produziu uma adaptação do livro Os Possessos, de Dostoiévski, em peça homônima desenvolvida em 3 atos.
Morreu em janeiro de 1960, num acidente de carro, ironicamente com o bilhete do trem no bolso... num trecho de A Peste, Rieux anota "Apostavam no acaso, e o acaso não pertence a ninguém".

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A PESTE


de Albert Camus
por Carlos Guido Azevedo

Resistente a leitura de qualquer dos livros de Camus e de outros existencialistas, fui induzido por Claudine a superar minha relutância, que tem base na consciência da incapacidade de resistir aos encantos desses escritores que tendem a menosprezar o valor da vida, da fé e do destino do homem. Assim, tenho evitado lê-los, como evito o cigarro e a outras substâncias.
A Peste foi uma grande surpresa, um clássico onde a vida fez sentido e a morte foi tratada com respeito e dignidade. Naturalmente, por instinto, assumo algum personagem durante a leitura, desta vez foi o jornalista Rambert, acho por similaridade, com minha síndrome de “não sou daqui, nem vim pra ficar”, que me invade em cada lugar diferente que tenho morado, nessa minha vida meio nômade.
Conhece Oran? Vai se familiarizar com ela fácil, é a cidade atacada pela epidemia. Qualquer um pode ver, sentir os cheiros, a poeira e os barulhos de Oran descritos por Camus, através de poucos e certeiros traços escritos com sensibilidade. Afinal, para travar conhecimento com uma cidade, “basta saber como se trabalha, como se ama e como se morre nela”. Oran foi fechada, atacada pela peste negra, ninguém podia sair ou entrar na cidade, seus habitantes tiveram que viver a circunstância de “apartados do mundo”.
O sentimento de isolamento é que faz Oran universal ao transformar todos os moradores em “separados”. É aí que o leitor se descobre em Oran, lá, “como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber”.
O cronista, Dr. Bernand Rieux, no olho do furacão não se faz herói ou observador onisciente, economiza personagens, toma emprestado anotações de outros, mas observa os habitantes em grupos com maestria, eles é que demoram a se perceberem no coletivo. Diante do perigo, tentam negá-lo, fugir, transferir a responsabilidade para outros, tentam toda espécie de fuga, até encararem a tragédia de frente e viverem o melhor possível, diante das circunstâncias.
Jean Tarrou, cujas anotações apoiam Rieux, observa os comentários da população e anota em seu caderno, pensamentos tipo: “Pergunta: Como fazer para não se perder tempo? Resposta: Senti-lo em toda a sua extensão. Meios: Passar os dias na sala de espera de um dentista, numa cadeira desconfortável”; e dá outras formas de se prestar atenção ao tempo. Aliás, o tempo é um dos assuntos mais marcantes do livro, como se arrasta, se acelera, passa desapercebido ou toma velocidade de vendaval em função das circunstâncias ditadas pela epidemia, pela natureza e pelo estado de espírito do observador. Tarrou, ajuda Rieux em todas as tarefas e faz uma amizade tão sólida que acaba morando na sua casa e lá falecendo como uma das últimas vítimas da epidemia.
Raymond Rabert o jornalista tomado de surpresa pelo fechamento das portas da cidade enquanto fazia uma reportagem, representa bem os pensamentos do separado, impedido de ir ao encontro marcado com a amada, não se sente minimamente pertencente a cidade e busca fugir de todos os modos legais ou não. A grande questão da peste na cidade, parece ser esmaecida pela problemática humana da apartação, da separação do ser amado, das dúvidas sobre se, se continua sendo amado, dada a distância, a própria vida da amada, as circunstâncias que ela vive longe, se ela ou ele ainda é a mesma ou se transformou em outa pessoa, são questões que vão envolver todos os separados. Sem qualquer julgamento Rieux vai aconselhando Rabert em cada etapa de suas tentativas de fuga, e este acaba se sentindo útil, fazendo amizades e colaborando corajosamente na luta contra a epidemia.
A todo instante vemos demonstrações de amizade entre as pessoas que emocionam e revelam a verdadeira humanidade do texto, as caminhadas em grupo para visitação de doentes, o desprendimento de pessoas simples que se dedicam a apoiar, organizar dispensários, isolamentos e até o própria funcionamento da cidade, lutando para buscar a normalidade, fazer funcionar as repartições, o comércio e a vida afinal, diante de tantas restrições, limitações e agruras. As famílias parecem se unirem mais, os bairros ganham características distintas se harmonizam, dialogam, estão todos dentro do mesmo caldeirão.
Joseph Grand o empregado da Câmara um funcionário dedicado à burocracia, parece o mais comum e sem méritos dos seres, frágil e insignificante, até que aos poucos vai se dando a conhecer e se revela “um dos raros homens que tem a coragem de assumir seus sentimentos”. Um apaixonado pela escrita e pelo dever, centrado em esculpir um único parágrafo do seu futuro livro, para o qual os críticos iriam tirar o chapéu.
Cottard o empresário, suicida frustrado, procurado pela justiça que torce pela doença, a Peste é sua salvação. Com tudo fora de ordem não haverá pressa em lhe mandar prender e acompanha com desenvoltura o crescendo da doença, colaborando em tudo, mas parece torcer para que nunca se acabe, enlouquecendo quando sente que o seu final vai chegando.
Mas, de todos os personagens o mais marcante para mim, por questão de religião, foi o padre Paneloux, tribuno carismático que expressa a busca de compreender a epidemia, primeiramente, interpreta a peste como a ira de Deus contra os pecados da cidade, querendo que todos se penitenciem, peçam perdão, porém, acompanhamos sua transformação depois de assistir ao sofrimento e morte de uma criança, o filho do juiz. Paneloux faz um novo sermão e recoloca os seus pensamentos de incompreensão e dúvidas, quando o fatalismo e o existencialismo se apresentam e levam Paneloux a se entregar a doença não como um mal, mas como um benefício enviado por Deus, já que em seu raciocínio se devia “aceitar tudo ou negar tudo” e ele não queria negar tudo e acaba se contaminando e morrendo com a doença.
Há muito o que se falar e sobretudo o que se pensar a respeito desse instigante livro, desde a sua originalidade, a erudição do autor, os inusitados pontos de vista que clareiam ângulos diferentes de uma mesma estória, o ressalto à amizade entre os homens, como sentimento mais forte de superação de dificuldades, elo de enfrentamento e crescimento da emoção, respeito e coragem para enfrentar a fraqueza coletiva.
Conclui o livro com a síntese: “Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana...” e avança em seu niilismo “e aos outros que buscaram por cima do homem..., não houvera resposta...é justo que, vez por outra a alegria viesse a recompensar os que se contentam com o homem e seu pobre terrível amor”.

Gostei muito e recomendo com louvor.
Mas preciso ter cuidado.