quarta-feira, 16 de abril de 2014

Mar de Papoulas



de Amitav Ghosh

Editora Alfaguara, 2011

 Em 1838, as margens do Rio Ganges estão tomadas por plantações de papoulas, que abastecem as fábricas de ópio comandadas pelos ingleses e deixam a população rural da região com pouco o que comer. O destino do ópio é a China e estamos às vésperas da Primeira Guerra do Ópio, declarada pelo Império britânico para forçar o governo chinês a abrir seus portos para os produtos europeus. Este é o cenário geo-político do sexto livro do antropólogo e historiador Amitav Ghosh, primeiro da trilogia da embarcação Ibis, lançado em 2008. Construído para ser um navio de transporte de escravos e degredados, o Ibis veio de Baltimore a Calcutá, passando pela Ilhas Maurício e durante o livro vai empreender uma parte da viagem de volta às ilhas para descarregar mão-de-obra migrante e condenados. O segundo livro da trilogia, Rio de Fumaça, já foi lançado, em 2011.

  
   O Ibis é o palco em que o autor desfila sua rica e diversa fauna de personagens e uma infinidade torturante de termos náuticos e palavras híbridas do inglês com os dialetos hindus (bhojpuri, bengali, laskari, hindustani).  Nas três partes em que o livro está estruturado (I – Terra, II – Rio e III – Oceano), assistimos os personagens (suas histórias, suas premonições, seus destinos) sendo arrastados em direção ao Ibis, atracado em Calcutá, para nele se encontrarem para uma viagem incerta e graficamente dolorosa, e que não acaba neste livro (para nosso desespero e deleite). O autor dá vida e voz a personagens sem lugar na história oficial, sempre feita pelos poderosos.


   Xinguei o tradutor várias vezes durante a jornada, já decidi que o Rio de Fumaça vou ler em inglês. A notinha do tradutor na página 23, após várias passagens de termos incompreensíveis, me pareceu completamente insuficiente para preparar o leitor para a viagem: “Pedimos ao leitor que não se deixe intimidar pela estranheza do pidgin lascar, que beira o incompreensível também no original em inglês. No transcorrer do livro, ele se torna menos frequente, assim como a leitura ocasionará maior familiaridade. Algumas expressões podem ser elucidadas na Crestomatia, ao final do livro, que no entanto não deve ser tomada por um mero glossário.” O livro merecia uma nota mais caprichada do tradutor ou um prefácio que nos introduzisse com mais suavidade na estratégia do autor.


   Somente ao final do livro, quando fui dar maior atenção a este léxico de termos, a Crestomatia do Ibis, foi que compreendi a profunda pesquisa que o autor empreendeu e que as passagens incompreensíveis (e não passíveis de tradução) foram o recurso que ele empregou para imergir o leitor nesta babel, o que me levou a  Riobaldo e suas palavras inventadas. Na Crestomatia, ficamos sabendo que esse registro de certas palavras migrantes (‘...que zarparam de águas orientais rumo às geladas costas da língua inglesa’) era a obsessão do avô da avó do autor (Neel Halder, o ex-raja de Raskhali), que se entregou a prática, por anos a fio, de vaticinar sobre os destino destas palavras e pretendeu colaborar com a construção do que ele denominava ‘Oráculo’ (Oxford English Dictionary), que estava sendo elaborado no final do século XIX.  Mais que o negócio do ópio, a palavras utilizadas na interface de culturas tão diferentes e essa obsessão de Neel por seus usos e destinos, são a inspiração maior do livro, sendo Amitav  Ghosh  agora o guardador da tradição familiar.


   A narrativa é, na maior parte do tempo, linear, vai avançando no tempo e no espaço, com alguns resgates de passado e alguns vislumbres de futuro, tudo muito bem costurado pelo ponto de vista de um narrador onisciente. Os personagens principais (Deeti, Kalua, Zachary, Paulette e Neel) são bem construídos, com brilho próprio, e os personagens secundários (Jodu, Babboo Nob Kissin, Ah Fatt), terciários e o próprio coletivo do Ibis  são também essenciais e dão vida ao tecido que vai sendo composto pelas fibras da história de cada um.


   É uma escrita muito gráfica, com passagens muito intensas em sensações: tive náuseas nas cenas em que Deeti caminha pelo fábrica de ópio a procura de seu marido moribundo (p.96-97); senti os fedores indescritíveis dos ambientes sufocantes do Ibis, nas várias vezes que o autor os descreve com maestria (ver página 180, quando Jodu se deita em um dos jhulis, no dormitório dos lascares); nojo e compaixão no banho que Neel dá em Ah Fatt na prisão (p. 310-311).


   O autor semeia, aqui e ali, pistas dos próximos capítulos (referências ao santuário de Deeti, ou aos descendentes de Kalua ou Maddow Colver, p.272 – “Mais tarde, dentro da dinastia que reinvidicou sua ascendência, muitas histórias seriam inventadas sobre o sobrenome do ancestral fundador e os motivos pelos quais ‘Maddow’ ocorria com tanta frequência entre seus descendentes. Embora muitos decidissem remodelar suas origens, inventando linhagens importantes e fantasiosas para si mesmos, sempre haveria uns poucos que se agarrariam com unhas e dentes à verdade: qual seja, a de que aqueles nomes sagrados eram resultado da língua atrapalhada de um gomusta aflito e da audição imperfeita de um piloto inglês que estava um pouquinho mais do que ressacado”). Dá a entender que a trilogia está toda mapeada, como uma carta náutica, e nos deixa, pasmos e parados naquele convés do Ibis vendo alguns dos personagens principais se afastarem no longboat, com seus destinos em suspenso.