quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

VIDA QUERIDA

de Alice Munro


por Ana Studart

Alice Munro é canadense, nasceu em Wingham, Ontario, em 1931. Casou-se aos 20 anos e teve três filhas. Durante muitos anos, foi apenas mãe e dona de casa. Já lançou 14 coletâneas de contos. Recebeu o Nobel de Literatura em  2013, e foi a primeira vez que um  contista mereceu esse premio.  Viveu no período da 2a Grande Guerra, e um de seus contos, Trem,  trata do tema, um soldado que volta do combate ao encontro da noiva.
A escritora norte- americana Cynthia Ozick considera Alice Munro a “Tchekhov da América”.
Certa vez Munro disse que seus contos seriam “tentativas”, ensaios preparatórios para escrever um romance, mas agora percebe que o conto é sua forma de expressão.  Me pergunto se essa constatação tem alguma relação com  a frase do conto Trem,  onde o personagem Jackson pensa no livro do pai de Belle, intrigado, e se pergunta “por que alguém ia sentar e fazer outro livro, no presente. Hoje”.

Em Vida  Querida, seu último livro, Alice Munro apresenta 14 contos – alguns deles, mini-romances. Os quatro últimos são relatos autobiográficos, classificados como Finale – porque, palavras dela,  são “as primeiras e as últimas – e as mais íntimas – coisas que eu tenho a dizer sobre a minha vida”.

Seus personagens: Munro cria nesses contos mulheres que vivem situações típicas do universo feminino, como Greta, casada,  que se sente atraída por Greg e Harris em detrimento da filha que a acompanha em viagem; Vivien que trabalha  como professora numa instituição para tuberculosos, e vai se deixando dominar e envolver pelo chefe, que foge no dia do casamento; Belle, que é abandonada pelo parceiro no momento em que enfrenta um câncer; Corrie, uma deficiente física que se envolve com um homem casado e são chantageados por uma ex-empregada de Corrie.
Mas Alice Munro não se considera feminista e não aceita o rótulo. “Nunca penso se sou ou não” , E justifica dizendo que as mulheres que descreve não são vítimas - a despeito de personagens como Vivien e Belle.

Seu  estilo é simples e singular.  Simples porque Alice Munro fala de coisas do cotidiano, da vida comum, e singular porque  não desvenda seus enredos com nitidez: eles vão evoluindo e vamos tentando adivinhar onde aquela história vai desembocar.  São pedaços, momentos da vida, onde os  desfechos, quando existem, quase sempre ficam subentendidos. 

Sua narrativa não é sempre linear:  Munro brincou certa vez, dizendo que um conto não é uma estrada pela qual se segue, mas um casa desconhecida onde se entra e se descobre quartos e corredores, quase um labirinto em que o narrador busca o sentido do núcleo familiar. 

O PDV é por vezes do narrador, onisciente, por vezes de algum dos personagens.

O acaso ( ou seria o destino?) parece guiar seus contos e seus personagens – e esse, para mim, é o traço maior do livro. Seria ele a determinar o rumo de nossas vidas?

No primeiro conto, “Que Chegue ao Japão”, (PDV onisciente), há um trem que não se sabe o destino, com  Peter carregando uma mala para a viagem de duas passageiras, Katy e Greta - e de início nem fica claro qual é a filha e qual é a esposa dele. Vai se percebendo com o desenrolar da história, que segue envolvendo desejos e conflitos, e idas e vindas: numa festa de escritores, Greta bebe demais e volta para o hotel de carona com Harris. No trem para Toronto casualmente se envolve com Greg,  e na  chegada à estação Harris, a quem avisara da chegada por  correspondência, a recebe com um beijo.

O melhor exemplo do acaso que conduz os contos de Munro é o  “Trem”, ( PDV do narrador) onde se tem um personagem que salta de um vagão em movimento antes do seu destino final e é acolhido por uma noite em troca de serviço por uma desconhecida. Os consertos na casa se sucedem e o tempo passa até que Belle enfrenta um câncer, ele ouve no hospital a longa história sobre o pai  de Belle que pedia repetidos perdões não se entende porque e depois morre se deixando atropelar por um trem. Alice Munro sugere dois motivos para os pedidos de perdão e o suicídio: com a esposa doente, ele freqüentava prostitutas; e encarou Belle nua no banheiro, o que teria mudado a relação entre pai e filha. O impacto desse relato de Belle destrói o laço que  a une Jackson e ele a abandona no hospital com um “A gente se vê amanhã”. 
Jackson vaga ao acaso pelas ruas, ajuda o proprietário de um prédio que lhe pede que cuide por instantes da portaria, e mais uma vez vai ficando. E então a história nos surpreende com uma volta ao começo,  quando Ileane, a noiva que ele ia encontrar se não tivesse pulado do trem,  por acaso chega  ao prédio onde Jackson trabalha. Ele a reconhece só pela voz e aí vem o feedback: eles tentaram fazer sexo antes dele seguir para a guerra, mas Jackson não se sai bem. Em posterior relação, o desastre se repete. Fica subentendido que sexualidade seria uma explicação para a vida errante de Jackson. Ele pensa no final em procurar a antiga noiva, mas acaba  pegando  um trem para  procurar trabalho numa cidade madeireira.

No conto “Corrie”,  (PDV onisciente) a personagem teve pólio e se relaciona com um homem casado. Chantageada, Corrie paga mensalmente para não ter o romance desvendado. Quando a chantageadora morre, a narrativa fica reticente: “Ela (Corrie) sabe de alguma coisa. Descobriu enquanto dormia. Não existe notícia alguma para dar a ele. Não existe, porque nunca existiu”.  O que ela descobriu?  Que quem recebia o dinheiro era o amante? Ou seria o amante que teria matado a chantageadora? O que Munro quis dizer com a mensagem de Corrie: ”Lílian morreu. Enterrada ontem”. E a resposta: “Tudo bem agora, fique feliz. Breve.” Fique feliz porque o problema acabou ou porque não se verão mais? E esse breve,  significa que eles se encontrarão em breve?

Em “Com Vista para o Lago” ( PDV onisciente) Nancy, que está perdendo a memória, tenta pegar uma receita, mas a médica estava de folga e lhe indicaram esse especialista numa cidade próxima.... Ela esquece o nome do médico e depois de vagar ao acaso  pelas ruas da cidade, acaba trancada dentro  de uma Casa de Repouso, onde vira paciente.

No conto Dolly, ( PDV de Dolly) é o cotidiano que prevalece - junto com o acaso.  Uma história banal, clássica, de ciúmes. Um casal idoso e bem ajustado planeja a morte, quando é sacudido pela chegada de uma vendedora de  cosméticos que se revela  antiga namorada de Franklin.  Ironicamente ela é introduzida na vida do casal pelas mãos de Dolly que, enciumada, sai de casa,  escreve e destrói varias cartas, envia uma, depois se arrepende e volta para o marido. O final é quase feliz, não fosse o medo de Dolly de que Franklin recebesse a carta que ela  finalmente havia postado.

No Finale, Munro fala de suas desventuras. São narrativas autobiográficas, onde ela confessa seus pecados, como o desejo infantil de matar a irmã em Noite:
“A idéia estava ali e balançava na minha cabeça. A idéia de que eu podia estrangular a minha irmã mais nova, que dormia na cama embaixo da minha e que eu amava mais do que qualquer pessoa no mundo.”  Com sono intranqüilo, encontra o pai também insone, e conta seu medo. O pai a tranqüiliza-  a gente as vezes tem esses pensamentos. “Naquela manhã que nascia ele me deu exatamente o que eu precisava ouvir e o que eu logo esqueceria”.

Em O Olho, com 5anos, relata o trauma de ser obrigada pela mãe a ir ao funeral de uma empregada da casa, a quem era muito ligada. A mãe a força a se aproximar do ataúde, e ela acredita que a morta piscou para ela.

Em Vozes, Munro retrata a mãe como uma mulher ambiciosa e rigorosa que “não era estimada” e para quem a vida que vivia “não era o bastante, não tinha lhe dado a posição de que gostaria.”. Nesse conto Munro também confessa sua carência afetiva aos dez anos e o desejo de ser amada como a Peggy da festa seria pelos rapazes que a consolavam. Em suas fantasias, “As mãos deles abençoavam minhas próprias coxas magrelas e as vozes deles me garantiam que eu também era digna de amor”.

Em Vida Querida,  que dá nome ao livro, Munro jovem descreve a vida dura de casada com dois filhos no momento em que a mãe ficou doente e morreu. Ela não foi ao sepultamento e não dramatizou o episódio, embora admita que se sentiu culpada. Mas se perdoa, e conclui:  "Perdoamos o tempo todo".

Sua forma vaga de escrever, deixando conclusões subentendidas, torna intrigantes os contos de Munro. Seu texto produz frases de efeito, como a mãe de Belle, que não estava “exatamente muda, porque conseguia formar palavras, mas tinha perdido boa parte delas. Ou elas que a tinham perdido” (pág 185).
Ou quando ela descreve os pés descalços de Neal em Cascalho: “aqueles pezões com cara de indefesos”. ( pág 106)

E depois a mensagem, também em Cascalho ( pág 110): “o negócio é ser feliz, ele disse. Apesar de tudo. Só tente. Você consegue”. Que se completa com a frase final do livro, em Vida Querida: ”Nós dizemos certas coisas que elas não podem ser perdoadas, ou que nunca vamos nos perdoar. Mas perdoamos- perdoamos o tempo todo.” Se perdoar para ser feliz?

Munro declara que esse é seu ultimo livro, mas já disse isso em outras oportunidades e voltou atrás. Ela explicou para a revista New Yorker porque mudava de ideia: apesar do “estranho desejo de ser ‘mais normal’” e “de fazer as coisas com mais calma, logo vem a inspiração”. Mas acrescenta: “No entanto, desta vez creio que é de verdade. Tenho 81 anos (agora 82) e me esqueço de alguns nomes ou palavras comuns…”

Fiz a leitura dos contos de Alice Munro quase sempre com prazer, e admirei a maneira singular como conduz personagens e enredos, mas o livro não me conquistou a ponto de desejar ler outras coletâneas da autora. Recomendo com restrições - apenas a quem gosta de contos.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A vida Querida de Alice Munro


O livro Vida Querida é o mais recente livro de contos da ganhadora do Nobel de Literatura em 2013, Alice Munro. Ele contém 10 contos que são caraterizados por serem ambientados na região Canadense do condado de Huron – Ontário, a pequena cidade de Wingham, onde a autora nasceu e ainda mora até os dias atuais. Neles, ela utiliza o narrador onisciente para dar sentido ao mundo por ela retratado. Seus personagens masculinos tendem a capturar a essência do homem comum, enquanto suas personagens femininos são mais complexas.
Por exemplo, a primeira história começa assim: "Uma vez que Peter tinha trazido a mala a bordo do trem, ele parecia ansioso para obter-se fora do caminho ". Peter é o marido de Greta --- e esta é a última que o veremos. Esta é uma história de uma jovem poeta , viajando com sua filha. Alguma coisa acontece no trem,  é sexy e assustador e não qualquer coisa que você espera --- e então, no final , algo mais acontece , algo que pensei que não era nada provável. Tudo isso acontece rápido, e é forte.
Às vezes me aparecia uma duvida  - São romances ou contos ?  Dada a profundidade emocional de alguns contos. Ela consegue em poucas páginas pintar o quadro profundo de suas personagens e toda a trama na quais estão inseridas. são romances compactados, vidas inteiras contadas em 20 a 30 páginas.
Outra marca comum aos contos é que seus personagens experimentam uma revelação que lança luz sobre suas vidas e lhes dá sentido. Ela chega a ser irônica e séria ao mesmo tempo. Ela retrata com maestria as ambiguidades a vida. O mau gosto ou por vezes a crueldades frente à alegria. A inutilidade versus o “especial”. Creio que ela pode ser definida com gótica (ou literatura gótica, um subgênero romântico), pela forma crua como apresenta seus personagens e a resignação com que estes vivem essa “Vida Querida”.
Talvez a melancólica vida de seus personagens tenha origem na própria autora, que pra escapar da vida na fazenda da família, casou muito jovem e teve filhos cedo.  Tudo isso aconteceu há muito tempo atrás, quando a vida da cidade pequena era um mundo e as mulheres que quebraram as regras eram notórios nesse mundo. Na grande maioria, seus personagens têm um sonho muito desejado, que não têm roteiro ou mentores e têm que descobrir a si mesmos
Vários exemplos demonstram isso, uma jovem vai para ensinar em uma escola remota --- tão remota que ela descreve o céu como um "imenso encantamento". Sua tristexa transpasse ao perceber que mudou de um mundo pequeno para outro menor e distante. Há também a história de mulher com câncer que se resina com a morte inevitável – pelo menos é assim que ela se apresenta.  Mesmo depois do surgimento de um soldado em sua vida, que a ajuda a procurar tratamento. Ela mantem-se resignada com o destino
São vidas de pessoas comuns, a maioria das pessoas, como qualquer um de nós. Encontramo-los na rua, no restaurante, no trabalho e, se estamos curiosos, nós queremos saber sobre suas vidas. Alice Munro faz a lição de casa para nós - ela habita essas vidas. As escolhas de seus personagens podem parecer fáceis, mas na verdade são até difíceis. São escolhas humanas no decorrer de vidas queridas.

Curiosidade: Alice Munro é conhecida por republicar seus livros com versões diferentes das originais. Ela já fez isso em pelo menos outros dois livros.