terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A Lebre com Olhos de Âmbar

de Edmund De Waal

 por Maria Albeti Vitorino

Edmund De Waal nasceu na Inglaterra, além de escritor é um ceramista famoso mundialmente, trabalhou como curador, conferencista, crítico e historiador de arte, é professor de cerâmica da Universidade de Westminster, coleciona vários prêmios e homenagens por seu trabalho. Estudou cerâmica e tornou-se pesquisador do artesanato popular japonês. Seu trabalho, como ceramista, manteve-se praticamente dentro da tradição anglo-oriental.

No livro,  o autor resgata a história de sua família, ao longo de cinco gerações,  tendo como fio condutor uma coleção de 264 miniaturas japonesas (netsuquês) herdadas do seu tio-avó Ignácio (Iggy). 

Ao lado da história de sua família, o autor menciona alguns dos principais momentos da história dos séculos XIX e XX, tais como a Terceira República Francesa, o assassinato do arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do império Habsburgo, a eclosão da 1ª. Guerra Mundial, a derrocada do Império Austro-Húngaro e a segunda Guerra Mundial.

Tudo começa no poder ascendente, em Odessa, da família Ephrussi (antes Efrussi), passa pela capital francesa do final do século XIX,  Viena na época do império Austro-Húngaro e depois sob o jugo do Nazismo.

Narra a separação da família, na fuga da perseguição nazista, como de resto ocorreu com muitas famílias judias, que vão preferencialmente para Suiça, Inglaterra e Estados Unidos. Finalmente, fala do reencontro de alguns membros da família Ephrussi, depois da guerra, alguns na Espanha, outros no Japão e na Inglaterra, com diferentes nacionalidades.

Na primeira parte do livro, o personagem principal é Charles, filho do patriarca Joachim Ephrussi, que mantém um império financista em Odessa, na Rússia Imperial,  e pretende se expandir para o restante da Europa, instalando seus herdeiros nas cidades de Paris e Viena.

Sendo o terceiro filho, Charles Ephrussi pode usufruir da vida mundana em Paris, enquanto os irmãos mais velhos se dedicam aos negócios. Historiador de artes, crítico e colecionador, vive intensamente a era Impressionista e, a partir de 1870, começa a montar sua coleção de miniaturas japonesas. Em 1899, a coleção é enviada para Viena, como presente de casamento ao seu primo Viktor (pai de Ignacio, bisavô de Edmund).

A partir desse momento o livro tem como cenário o Palácio Ephrussi, em Viena, onde agora estão os netsuquês. Nessa cidade, como em Paris, existe um forte sentimento anti-semita, que se manifesta de forma velada.

Com a queda do Império Austro-Húngaro, fica claro o antisemitismo e começa a perseguição aos judeus, que se intensifica com a ocupação nazista, de 1938 a 1945. A família Ephrussi se separa parte vai para Inglaterra, outra parte para os Estados Unidos,  perdem todos seus bens, inclusive os netsuquês, que ficam no palácio de Viena.

No entanto, essas pequenas peças são resgatadas pela governanta Anna,  que não é judia e,  sob o pretexto de auxiliar no acondicionamento dos móveis e obras de arte, consegue dia após dia, sair com todos eles escondidos na sua roupa.

Finda a Segunda Guerra, Anna devolve os netsuquês para Elizabeth (filha de Viktor e avó de Edmund) que entrega ao seu irmão Ignacio. Daí a coleção é levada para o Japão, onde passa a ser exposta novamente e tem seu valor reconhecido. Ignacio, além de contar a história da família para Edmund, deixa pra ele as miniaturas que são levadas para a Inglaterra, onde devem estar  atualmente.

Enfim, o livro narra a história de uma família que teve poder e riqueza, mas que nunca conseguiu uma total aceitação da sociedade, como todos os demais judeus.  Eram sempre vistos como arrivistas, sem pátria e, portanto, apontados como os principais  responsáveis em épocas de crises econômicas. Em virtude das dificuldades financeiras após derrota da Áustria, na 1ª. Guerra, os judeus passaram a ser mais odiados.

Segundo o autor, os judeus aprendiam várias línguas (russo, francês, latim, grego, alemão e inglês), para que pudessem se  sentir em casa em qualquer lugar do mundo, só não podem ser pegos falando iídiche.

Eles tentavam esconder sua religião, sua língua e ao mesmo tempo procuravam se integrar na alta sociedade por meio do auxílio às artes, da associação à grupos influentes, enfim com uma participação na vida do país em que estavam vivendo. No Palácio em Viena, havia uma única cena bíblica, uma pintura do Livro de Ester, numa área frequentada somente pelos judeus.

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FELICIDADE DEMAIS

de Alice Munro 

Editora: Companhia das Letras- 2010

Too much happiness: stories
Tradução de Alexandre Barbosa de Souza

COMENTÁRIOS por Maria Virginia de Vasconcellos


Embora este livro não pertença à minha categoria predileta, ou seja, não se trata de romance histórico, nem mesmo romance, são dez contos completos que, de fato, valem por dez romances.
Porque completos? Simplesmente eles são lógicos, têm início, meio e um fim normal, geralmente plausível num contexto de país desenvolvido. Cada um deles daria suficiente motivação para conversas em grupo.

Fortes estórias, ou memórias ou o que quer que seja, são de excelente prazer na leitura.
A garra da narrativa de Alice Munro nos coloca em suspense, à espera dos acontecimentos, alegrias e infortúnios, que a vida e a morte podem trazer.

Carrega muita informação sobre a vida contemporânea, sem, entretanto, utilizar mecanismos de tecnologia. Por meio de enredos e estórias complexas sobre o ser humano, descortinam-se os personagens, muitos deles femininos. 
A autora tem a grande habilidade de desenhar, com rapidez e concisão, os traços precisos das personalidades que cria, sem perder a profundidade e o vigor. (“Faz com que mereça a frequente comparação com o russo Anton Tchekov[1])

Sempre dá vontade de re-iniciar a leitura do conto (com exceção do “Madeira”, onde há uma descrição detalhadas e demorada de árvores, lenhas e matas).

No primeiro relato, Dimensões, Doree volta à prisão para visitar o marido que cometera o mais hediondo dos crimes. É surpreendente não no fato em si, mas no que diz respeito a sentimentos femininos. Impressiona e fascina.

Em Ficção, vemos a delicadeza da transformação de um casamento, o correr da vida, novos enlaces, o fortuito encontro da Joyce, a professora de música, com a ex-aluna e um conto dentro do conto. 
“o que ela tem a ver com isso?” disse Joyce.
E o marido responde: “É que ela se sente ameaçada pela bebida. Ela ainda está muito frágil. É uma coisa que não dá pra a gente entender”.
 Ameaçada. Bebida. Frágil. Que palavras eram essas que meu marido estava usando? Eu devia ter percebido. Ele estava ficando apaixonado..... (pag. 49).
Bastam dois parágrafos para explicar “o golpe fatal que aleija um homem, a brincadeira maldita que transforma olhos claros em pedras cegas”.

Na estória Wenlock Edge uma universitária conta a experiência do relacionamento com a Nina que aparece para morar com ela no quarto alugado. Vai além do esperado a descrição da aventura perversa e das personalidades sórdidas que povoam a existência comum e se utilizam da fragilidade humana. “Pessoas - Em busca de proezas que elas não sabiam trazer dentro de si”. (pag. 108)

Buracos-profundos deixa o leitor perplexo com consequências/impactos que acidentes podem provocar; ou não foi o acidente do Buraco-profundo que trouxe a alteração na vida de um filho? Novamente um casal, agora com filhos, novamente a normalidade transformada drasticamente. Acidentes da vida. Impressionante caracterização dos personagens.

No quinto conto deste volume, Radicais Livres, há relato de depressão, morte, mas o roteiro se transforma numa tensão quase policialesca com a invasão de um inesperado personagem.

Aqui vale um parêntesis para o comentário da Revista Veja – Jerônimo Teixeira – que diz que a autora “exagera no recurso a encontros casuais como motor da ação”, apesar dele reconhecer que ela sabe conduzir a narrativa até momentos tensos.
O fato é que, embora este recurso a encontros casuais seja realmente utilizado de várias formas, discordo inteiramente da conclusão da resenha do Teixeira quando afirma que o mais recente livro da Alice Munro, Vida querida, que parece ter o mesmo estilo deste, “é ficção para ser adotada em cursos de “Estudos Femininos” nas universidades americanas”. Discordo do Teixeira, repito.  A temática não é apenas feminina, mas sim universal.Vale a pena conferir mais este livro.

O sexto conto, Rosto, é um relato marcante sobre relação pais x filho, filho este que tem um defeito físico, uma estranha mancha no rosto que “Parece um pedaço de fígado”. Chega-se ao lirismo ao final, com poesias e sentimentos ternos.

Algumas mulheres, apresenta uma competição sutil e fortíssima entre mulheres, e a consequente solidariedade de uma terceira, digamos, partidária. Tudo na visão de uma menina de 13 anos...

E o Brincadeira de criança? Esta estória, achei até previsível de certa forma, mas  de extrema crueldade. Que crueza na explicitação do mal que pode existir em cada um. Vale uma reflexão, mas não exige julgamentos dos personagens. Será que eles se auto-punem? Qual o grau de consciência de uma criança? É uma confissão? Duas amigas se re-encontram, estando uma no leito de morte.

Mas, o ponto culminante é a estória que dá nome ao livro, ou seja, Felicidade demais.
Aqui sim, há períodos históricos bem delineados: uma russa, brilhante matemática e literata, um ou dois russos exilados, pela Europa, na última década do século XIX.
É a recriação de parte da vida de Sophia Kovalevsky, uma das primeiras mulheres a se tornar professora universitária de matemática, na Suécia. “Ela se consagrou na Alemanha, atuou como jornalista em Petersburgo... e travou contato com grandes personalidades da época”. (contracapa)
Vale a pena mergulhar nesta época com suas contradições e mudanças comportamentais fortes, e quando “feminismo não era nem uma palavra que as pessoas usavam”).

De fato, “tudo podia ter acontecido antes da expulsão de Adão e Eva dos jardins do paraíso”. (pag. 289). E não se deve “provocar o destino a enviar outro golpe”. (pag. 319)

Afinal:
Quando um homem sai de um quarto, ele deixa tudo pra trás
E “quando uma mulher vai embora, ela leva consigo tudo o que aconteceu naquele quarto”.

 Recomendo o livro sem restrições e com enorme entusiasmo.



[1] REVISTA Veja – 11 de dezembro, ALÍVIOS PROGRESSISTAS, Jerônimo Teixeira