terça-feira, 15 de abril de 2025

Tese sobre uma domesticação de Camila Sosa Villada - “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, Anna Karenina, Tolstói.


"Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho. Este é o mundo, amigo, agonia, agonia" Federico Garcia Lorca



Camila Sosa Villada, nasceu em La Falda, Argentina é uma atriz, escritora e dramaturga argentina. Sua primeira novela, Las malas foi traduzida para o português como O parque das irmãs magníficas em 2019. Esta obra tornou-se um sucesso de crítica e de público e a estabeleceu como uma das escritoras mais originais da literatura argentina contemporânea e da literatura LGBT da Argentina. 

Além disso, o texto obteve numerosos prêmios, entre eles, o Sor Juana Inés da Cruz e foi traduzido para diversos idiomas.

Formação

Villada estudou Comunicação Social e Teatro na Universidade Nacional de Córdoba durante quatro anos. Nesse período, ela se encontrava em situação de prostituição, era empregada doméstica e vendedora ambulante. 

Em 2009 estreou a peça Carnes tolendas, retrato escenico de una travesti, onde “encontrou a síntese entre a atuação, a poesia de Frederico Garcia Lorca, sua condição de travesti e os textos de seu blog La novia de Sandro”, e contou sua vida em formato de biodrama. 

A peça foi dirigida por María Palacios, recebeu assessoria de Paco Giménez e, em 2010, foi selecionada para o Festival Nacional de Teatro da cidade de La Plata.

Durante sua infância viveu em vários povoados da mesma província: Los Sauces, Mina Clavero e Córdoba.

Sobre a infância, lembrou ter imaginado que “ia atuar, que faria teatro, cinema”, e que começou a se travestir “aos 13 anos, numa cidade de 5 mil habitantes”.


Em 2015, Villada publicou seu primeiro livro, a coletânea de poemas La Novia de Sandro traduzido para o português como A namorada de Sandro). Em 2018, publicou o ensaio autobiográfico El viaje inutil . Em 2019 publicou seus dois primeiros romances, Las malas e Tesis sobre una domesticación .

Em 2022, publicou seu primeiro livro de contos, Soy uma tonta por quererte. Em 2023, reeditou Tesis sobre una domesticación, tendo reescrito parte da novela. ( Fonte Wikipedia)


Sobre a reedição de suas obras em entrevista a regista Quatro Cinco Um reflete :


"Quando foi reeditado, em 2020, eu o retomei — assim como fiz com Tese sobre uma domesticação — e limpei o que poderia causar pena. O parque das irmãs magníficas provocou comiseração e uma espécie de piedade. Nessa arena de gladiadores em que estamos, brigando por vender livros, por ser publicados, quero ser considerada uma igual. Voltei a esses livros para tirar o sentimentalismo e a autopiedade"


Sobre a Obra


A obra Tese sobre uma domesticação, publicada em 2023,  aborda temas como identidade, marginalidade, amor, desejo, corpos rebeldes e novas configurações familiares contemporâneas , explorando os limites e possibilidades do amor e os desafios das convenções sociais e da moral burguesa. Quais são os desafios ao se constituir uma família `a sombra de uma sociedade cis -heteronormativa ? 


A narrativa, em terceira pessoa,  é marcada por uma prosa que não se adequa aos padrões e que conduz o leitor a um estudo da sociologia da família, questionando os papéis impostos e o peso que cada indivíduo carrega, para tanto não apresenta um divisão tradicional em capítulos numerados ou intitulados, há uma corrente contínua de pensamentos, memórias que nos permitem habitar os personagens, seus desconfortos, suas dores, misturando memória, reflexão e delírio. A narrativa flui de maneira contínua, com mudanças de cena e tempo marcadas por transições sutis, apresentando-nos uma narrativa poética e fragmentada, que nos transmite as emoções e experiências dos personagens de forma sutil e orgânica.   


Tese sobre a domesticação narra história de uma família burguesa fora dos padrões convencionais, constituída por personagens que são identificados como a atriz, seu marido advogado e o filho de seis anos do casal. A Atriz é uma mulher travesti, atriz de sucesso e reconhecimento em seu país. O advogado é um homem gay, também muito bem sucedido em sua profissão. A criança é o filho adotado do casal, uma criança soropositiva, de personalidade delicada e traumatizada por sua infância de abandono e tragédia. 

 

Importante destacar aqui que a autora valoriza a utilização do termo travesti em detrimento de trans, uma vez  que segunda ela o termo trans lhe parece "anti- literário, travesti, por outro lado, está dizendo muitas mais coisas, imagina-se a noite, as roupas, os decotes a violência, o sangue o sexo, a rebeldia, a solidão e um história comum".


A obra questiona todos os contornos do amor, da normatividade imposta e dos valores das instituições sociais, especialmente a família e o casamento. Este universo familiar desconstruído aborda temas como adoção, maternidade e amor desafiando o tradicional. A obra constantemente indaga os leitores sobre o significado de família ? Quem exerce o poder ? Quem manipula ? Quem está em perigo dentro da célula familiar? Qual o lugar mais perigoso para ser uma mulher ? Quem tem o monopólio da violência nessa célula? 


Acompanhamos a vida atriz travesti navegando pelo seu presente e seu pelo passado e também pela vida pregressa e presentes de seu companheiro, um advogado gay e de seu filho adotado, um menino soropositivo de seis anos transitando entre um narrador em terceira pessoal que nos permite visitar os pensamentos desse três personagem nos conduzindo no que  parece ser um caminho relativamente previsível de uma nova configuração familiar, mas aos poucos o caldo narrativo se aquece e percebe-se que a verdadeira intenção da autora é questionar a extensão da domesticação de uma pessoa, o que significa ser domesticado dentro de uma sociedade que exige previsibilidade e contenção?


A adoção da criança, que a primeira vista se apresenta como um gesto de amor e acolhimento, apresenta-se ao longo da narrativa como um campo de discussão das dinâmicas de poder relacionada ao ambiente familiar.


Aos poucos há uma desconstrução do ideal romântico de uma família acolhedora. A atriz, protagonista da história, vive a balança diária que pende constantemente entre o desejo de amar e cuidar e o anseio de se libertar das imposições e responsabilidades impostas por esse amor.


A maternidade no livro não reflete nenhuma redenção, nem no exercício da maternidade da atriz nem na sua experiência como filha: a mãe da atriz, ao mesmo tempo que parece ser seu primeiro modelo de feminilidade e encantamento, também infligiu a menina violência e dor. O afeto aqui é um campo de batalha que as vezes salva, outras destrói. Essa ambivalência da maternidade se destaca constantemente pela oposição entre os sentimentos de cuidado e o controle, entre a ternura e a imposição, o desejo e a culpa, entre o anseio por liberdade e as obrigações inerente ao exercício materno.  


A obra se distingue por sua grande intensidade sexual e narrativa crua.  Há um critica feroz à domesticação simbólica imposta aos pensamento e corpos dissidentes, não somente na esfera social mas principalmente na esfera intima. 

Em resposta aos tabus e controle da conformidade doméstica a protagonista responde com rebeldia sexual e submissão ao desejo, confrontando-nos constantemente sobre a violência do ambiente familiar. 


Os personagens 


A ATRIZ, UMA MULHER REBELDE

A atriz representa a rebeldia, a luta, a inconformidade em todas as suas instâncias. A partir do momento em que descobre sua sexualidade feminina e a assume na cidade do interior mesmo quando isso pode significar sua própria morte,  quando sai do interior e prospera na vida, na arte. É  transgressora na arte quando impõe e arrisca atuar na peça que lhe satisfaz artistica e intelectualmente. Também é rebelde quando acredita no amor e na familia e quando assume a maternidade. Toda essa potência, no entanto, em algum momento esmorece diante das pressões e dos valores burgueses, explodindo em uma poça de sangue real e metafórico  a um so tempo 

 

O TEATRO

Espaço de seu sucesso material e pessoal o teatro é a matéria prima da atriz. é nesse palco que encontra o homem que a deseja da maneira que ela quer se deseja e nele que concretiza seu projeto de vida : encenar a peça A voz humana de Jean Cocteau.



O MARIDO, UM HOMEM BURGUÊS

O marido gay da atriz encarna não somente a possibilidade do amor e dualidade entre esse sentimento e o desejo, mas também os valores burgueses. Seu apreço pelo bom gosto, pela postura, belo comedimento são notados como fraqueza e por vezes geram descontentamento por aqueles que nasceram na brutalidade, especialmente verbalizada na impaciência do filho com sua inclinação conciliatória bem como pela provocações de sua esposa quando opta pelo vulgar ou violento. 

O marido também é o agente de domesticação mais doméstico da trama. Dentro do seio familiar, ele exerce a liberdade sexual e o desejo com outros parceiros mas ao mesmo tempo exige comprometimento familiar e emocional da atriz para o que ele considera ser o importante.



O FILHO ADOTIVO UMA CRIANÇA COMO CONCRETIZAÇÃO DO IDEAL DE FAMÍLIA 


A criança representa tanto a culminação da vida burguesa como também um limite ao hedonismo e a liberdade da vida conjugal sem filhos. Cuidar é, também, em alguma medida  se abnegar do desejo. É ter responsabilidades, horários, limites e preocupações como no momento em que se atenta ao cheiro da urina da criança.

é também em virtude da criança que se tem a abertura de seu idílio de conforto e sucesso para a mediocridade social. Por meio da assistente social envolvida na adoção da criança,  somos confrontados com a pergunta : o que é um travesti? 

O menino também se apresenta como um rebelde é um artista, com inclinações para o desenho, e também um sobrevivente da doença que lhe afeta a imunidade transmitida por sua mãe bem como da doença da violência familiar. 


AS AMIZADES A ENERGIA E A CENSURA 


As amizades simbolizam ao mesmo tempo a consciência do sucesso da atriz bem como a censura por acreditar no amor. Há um misto de inveja e orgulho. 


A MÃE 

A mãe aqui é uma referência de emancipação, também é um refúgio de aceitação para atriz. Mas como todos os personagens, também abriga violência e ambiguidade.

O PAI

O pai simboliza uma certa incomunicabilidade masculina. Uma impossibilidade de expressar o amor. Também representa o masculino e a violência doméstica os controles e por fim a aniquilação das companheiras que tentam o acompanhar. Sobreviver é estar longe de sua virulência e brutalidade.

O IRMÃO

O irmão é o representante do erro doméstico que forja e passa como um elemento a violência e indiferença insidiosa dos homens contra as mulheres


A CIDADE DO INTERIOR COMO O RETORNO À DOR

Há cidade do interior representa o retorno não somente ao lar paterno e materno, mas também a um ambiente no qual não se reconhece mais ou no qual esforça-se por se relembrar. é nela que conhecemos a experiência de violëncia sofrida pela atriz quando jovem e a motor e a necesside vital de sua partida.

A CIDADE GRANDE COMO O LAR POSSÍVEL

A cidade embora seja vista pela atriz como um lugar sujo e sem árvores é o palco e lar torto dessa mulher que fez da sua vida um desafio às convenções. 


Recomendo a obra para àqueles que questionam ou estão dispostos a questionar as certezas impostas relacionadas aos paradigmas fundadores da sociedade e da família, da maternidade e da redenção através do amor. Sosa é, sem condescendências, uma força literária e política contemporânea.


“Meu primeiro ato de travestismo foi pela escrita”. Camila Sosa Villada