terça-feira, 17 de setembro de 2024

A cidade inexistente – José Rezende Jr.




Por Maria Albeti

Sobre o autor

José Rezende é jornalista e escritor, nasceu em Aimorés (MG), em 1959, e vive em Brasília, desde 1987. Trabalhou como repórter especial do Jornal do Brasil, Isto é, O Globo e Correio Brasiliense. Esteve presente em diversas áreas, produzindo reportagens sobre cidades, política, mundo e cultura. Escreveu na revista Traços e conduziu diversas oficinas de texto literário e jornalístico.

A Revista Traços nasceu em 2015, em Brasília, visando a geração de renda para pessoas em situação de vulnerabilidade. Essas revistas são vendidas em locais de grande circulação pelas ruas da cidade. O objetivo é permitir que essas pessoas possam reestruturar suas vidas e, posteriormente, reingressar no mercado de trabalho. 

Estreou na literatura, em 2005, com o livro A mulher-gorila e outros demônios, uma coletânea de contos. Posteriormente, publicou os seguintes livros: Eu perguntei pro velho se ele queria morrer e outras histórias de amor (contos), em 2009; Estórias mínimas, em 2011; Os vivos e os mortos, em 2016; e A cidade inexistente (primeiro romance), em 2019, todos pela Editora 7 Letras. 

Começou na literatura infantil com o livro Fábula Urbana, em parceria com o ilustrador Rogerio Coelho, publicado pela Edições de Janeiro. Esse livro tem como inspiração o encontro real do autor com um menino pobre que pedia livro em vez de esmola. Publicou, também, o livro O sapo que não queria ser príncipe, com ilustrações de Catarina Bessel, em 2023, pela editora Gato Leitor.

Conquistou o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Nacional, de 2009, com o livro de contos Eu perguntei pro velho se ele queria morrer e outras histórias de amor e ganhou o prêmio Jabuti de 2010, na categoria "Contos e crônicas" com esse mesmo livro.  O livro A cidade inexistente foi finalista do Prêmio Oceanos e do Prêmio São Paulo, em 2020 e o livro O tempo de parar o tempo, foi finalista do prêmio do Prêmio literário Barco a Vapor, em 2021.

Sobre o livro

A estrutura do romance A Cidade inexistente se diferencia da configuração tradicional, é formada por pequenos contos, talvez pela experiência do autor nesse gênero. O autor utiliza linguagem simples, o que permite uma leitura fácil, e muitas vezes usa o recurso de aglutinação de palavras para formar novos termos, por exemplo, sei-lá-qual-ésima, desistidas, desengolindo, desamuado, desofendido, 

Rezende apresenta diversos aspectos das pequenas cidades, tais como: o circo, com trapezista, palhaço, mágico e um leão; o doido, o padre e figuras lendárias, como: a noiva fantasma, os caboclos d’água e a cabra cabriola. Existe uma mistura do real com o surreal, aproximando-se do realismo fantástico, a realidade é transfigurada, mostrando o irreal ou estranho como algo cotidiano e comum. O tempo é percebido de forma cíclica, ao invés de linear.

Os contos têm início com a remoção dos habitantes, em embarques pacíficos e ordeiros (p. 11), de uma pequena cidade, “onde autoridade nenhuma do estado jamais sujou a sola do sapato (p. 11), que será inundada pelas águas de uma hidrelétrica. Tragédia anunciada pelo “doido da cidade”, que ouviu um telefonema do “homem do governo”, mas ninguém acreditou, “O doido então bateu de porta em porta, mas de casa em casa lhe bateram a porta na cara” (p. 15).  Até que chega o dia, os moradores são levados em caminhões pau-de-arara, para a cidade nova, menos as autoridades que foram em camionetes cabine-dupla do governo. 

A cidade nova foi construída idêntica - “cuspida e escarrada” - à cidade antiga, é “a mesma igreja, o mesmo sino, o mesmo relógio parado no mesmo meio-dia de sempre, a mesma falta do que fazer, a mesma pobreza, o mesmo abandono” (p. 22).  Todos os moradores são retirados, por ordens superiores, mas um velho decide “daqui não arredo o pé” e o cachorro da família, em solidariedade, também, toma a decisão “eu daqui não arredo as patas”, [...] restam um velho e um cachorro, únicas testemunhas do fim do mundo, e os dois não arredam nem os pés nem as patas. (p.79). Essa resistência do velho e do cachorro transforma a casinha simples em “Área de Relevante Interesse Nacional” (p.12), com pedido de reforço para a desocupação, até que o advogado dos direitos humanos, para alívio dos soldados, impetra um habeas-corpus. 

Cada conto contém estórias com começo, meio e fim, que se conectam com as demais por meio de algum acontecimento, dos personagens e/ou do cenário, muitas vezes os fatos são apresentados de forma invertida.  São muitos os personagens, alguns aparecem em mais de um conto, outros apenas uma vez. Os principais personagens são:  o velho, o cachorro e o menino, mas outros se destacam, como:  o padre, a moça da boate, a trapezista Ludimila; o advogado do prefeito, o homenzinho triste e a noiva fantasma. 

A vida continua na cidade nova, mas com o passar do tempo, os moradores percebem que, apesar de ser cópia fiel da cidade velha, com os mesmos pés de manga, o mesmo descascado das casas, o mesmo relógio da praça parado no mesmo meio-dia de sempre, apenas parece ser igual. As mangueiras não dão frutos, os passarinhos foram embora, as pipas não voam como deviam, faltam as marcas feitas nos troncos das mangueiras, a noiva fantasma não volta a aparecer, o doido foi embora, depois de avisar a toda a cidade que “o mundo vai acabar em água” e até o beijo tem sabor diferente, “E por não reconhecendo o cenário, quase não se reconhecem personagens da própria história [...] (p.50). Um morador enlouqueceu, muito rápido, e pulou da torre da igreja, até que poderia voltar batendo asas inexistentes, perfazendo a santíssima trindade doido-fantasma-passarinho. 

No último conto, a hidrelétrica está vazia, por causa da longa seca, as pessoas começam a retornar para  a “cidade velha” e tudo volta ao começo, com poucas diferenças. O “menino” agora está velho, o cachorro, que de tanto ficar debaixo d’água, só consegue beber água e com “as patas desaprendidas do em terra do firma pisar-se” (p.77). O  menino é o narrador dos fatos, desde a remoção por ordens das autoridades, até o retorno à cidade velha, anos e anos depois, de forma voluntária, quando acaba toda a água da hidrelétrica e ele é “o mais velho entre os velhos” (p.75). 

Em entrevista a L&PM Editores, o autor fala que o ponto de partida do livro foi um conto, com base na lembrança de uma pequena cidade, Itueta, que foi inundada para a construção de uma usina, situação corriqueira no Brasil. Porém, a obra não é uma narrativa baseada em situações reais, nem é autobiográfico, como escritor tem liberdade para inventar, contar mentiras, sem compromisso com a verdade. Tal situação não ocorre com o jornalismo, onde existe a obrigação de narrar fatos tal como aconteceram; atividade que lhe proporcionou criar um grande repositório de histórias, realidades que ele não conheceria se não fosse jornalista.  https://www.facebook.com/LePMEditores/videos/1041265293298277.

O livro tem uma prosa leve, com traços de humor, embora contenha uma crítica bastante contundente, que permite a reflexão sobre questões ambientais, políticas e sociais. Retrata a forma como as pessoas são deslocadas, abandonando suas histórias, e suas memórias, sem deixar transparecer tristeza e revolta. Apenas o velho e o cachorro decidem resistir, mas de forma pacífica. Porém, a estória seria outra se os moradores tivessem reagido, entrado em confronto com polícia e serem assassinados, mas assim não aconteceu, se não essa estória não teria sido contada.

Gostei muito do livro, recomendo a leitura.