Kramp: Memórias de uma infância, nostalgia e reflexão nos tempos de chumbo do Chile.
Imagem do filme Lua de Papel de 1973
A autora
María José Ferrada (Temuco, Chile, 1977). Jornalista e escritora. Conta com uma extensa obra para o público infantil reconhecida com o Prémio Iberoamericano SM de Literatura Infantil e Juvenil 2021. A sua primeira novela para adultos, Kramp (Emecé, 2017), foi traduzida para onze idiomas, e recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte, o Prémio Melhores Obras Literárias do Ministério das Culturas, das Artes e do Património e o Prémio Municipal de Literatura de Santiago. A sua segunda novela, El hombre del cartel (Alquimia, 2021) recebeu o Prémio do Círculo de Críticos de Arte. (Fonte : https://www.wook.pt/autor/maria-jose-ferrada/3593257).
A autora chilena já escreveu mais de trinta livros e começou a escrever livros infantis quando pequena para seu irmão menor. Essa inspiração se converteu em oficio.
Ferrada se interessa em dar visibilidade para temáticas que afetam e deixam vulneráveis as crianças pequenas (e também as grandes!) como rompimentos democráticos e processos migratórios.
A obra da autora se propõe a permitir um espaço de liberdade de pensamento para as crianças, dando lugar para a capacidade reflexiva dos pequenos e os reconhecendo como protagonistas, sujeitos de suas histórias.
Kramp é uma obra que insere nesse contexto ao narrar a vida de uma garota de seus 7 ou 8 anos durante a ditadura chilena, em romance autobiográfico com pitadas ficcionais.
É o primeiro romance da escritora para adultos
A obra
Kramp narra a história de uma menina entre 7 e 8 anos e seu pai, um caixeiro viajante, durante os anos 70 no interior do Chile. O que os une, a principio, é um catálogo de produtos da marca Kramp (produtos de serralheria e construção) vendidos pelo pai da garota.
A história se desenvolve entre os anos 70 e 80 em um contexto politico de ditadura militar e perseguição de opositores no Chile, esse contexto é apresentado de forma sutil e vai sendo revelado para o leitor tal qual seria para uma criança, não o compreendemos diretamente, mas a medida que o romance se desenvolve os silêncios, os sussurros, as palavras cifradas, vão ficando mais audíveis para a menina e para o leitor.
A estrutura
O livro possui 96 páginas e é dividido em 16 capítulos curtos.
Todos os personagens são identificados apenas pelas iniciais de seus nomes, dos quais se destaca a protagonista M, seu pai D , sua mãe “uma bela mulher”, o fotógrafo de fantasmas, vendedores do quais se destaca, o vendedor amigo de seu pai S, e uma única exceção : um estudante chileno morto pela ditadura que em meio aos “fantasmas da ditadura” é identificado com seu nome completo Jaime André Suarez Moncada.
A trama se desenvolve a partir do acordo estabelecido entre pai e filha, na ausência do conhecimento da mãe, por meio do qual a garota passa a acompanhar o pai em suas viagens de venda de produtos Kramp por diversos vilarejos do interior do Chile. Nessas viagens, que duram apenas alguns meses, a garota aprende sobre as artimanhas dos vendedores, assiste filmes ao ar livre, bebe uísque e fuma com o pai e aprende também a negociar usando de sua posição de criança para auxiliar o pai nas vendas.
A narrativa
A novela trata da relação entre pai e filha em um mundo não mais existente, o dos caixeiros viajantes. É também um exercício de recuperar ou de narrar a infância na vida adulta.
A narradora é uma mulher que relembra sua vida aos 7 anos de idade, fazendo toda uma trajetória emocional, desde a idealização da figura paterna, até sua desilusão no começo da adolescência e por fim uma certa compreensão de seu contexto e limitações por meio da reflexão já na vida adulta.
A tecitura da obra se dá nas vozes da garota e da mulher que se confundem, fundindo de forma muitas vezes poética e outras vezes engraçada uma parte da história da vida de M.
Em momento algum o livro incorre no erro de trazer uma “voz infantilizada” ao contrário disso, a garota é verossímil, e sua narrativa explora o desconhecimento típico dessa faixa etária como uma ferramenta para se construir e interpretar a realidade de forma criativa, terna e cativante. Por vezes a inocência esbarra no que é genuíno de uma criança : sua capacidade de nos fazer rir e chorar em um mesma frase.
O paradoxo entre a inocência da criança diante das situações do mundo adulto e a consciência do leitor de que os limites da moral estão sendo quebrados é explorado de forma habilidosa pela autora.
O ritmo do livro é quase um balanço entre a reflexão da adulta e as falas e percepções de sua criança, é um jogo que mantem uma cadência agradável e confere ao livro uma leveza, mesmo quando passa pela densidade do período da ditadura, das agruras das doenças mentais, da fragilidade do exercício paterno e dos vacilos morais da profissão de vendedor.
M vê os pais quando pequena com os olhos de uma criança, sem julgamentos, mas com a percepção curiosa visando interpretá-los com as ferramentas que dispõe.
Sua relação com o pai é narrada em milímetros e ele ocupa a posição de patrão e pai.
A mãe fraturada pela ditadura é descrita como uma mulher distante, como uma astronauta que só está pela metade.
Os vendedores colegas de seu pai são vistos sem maiores censuras com suas mentiras e artimanhas para sobreviver e trapacear.
M. passa a compreender esses mecanismos e os incorpora em sua relação com o mundo: sabe a fisionomia que deve fazer em momentos de apuro, sabe o deve falar e como deve agir no mundo dos caixeiros viajantes. Divide a mesa e o cigarro com seu pai, muitas vezes mais patrão do que pai.
A roadtrip com o pai é somente abalada por um evento trágico que convoca a presença da mãe, tirando-a se de seu torpor depressivo e coloca M. novamente na trilha comum de sua infância.
A morte do fotógrafo é o ponto inflexão na história e é o ponto mais eloquente da trama para nos apresentar o momento histórico no qual o livro se desenrola. É nesse momento que período histórico sombrio no qual a narrativa está inserida derrama sua sombra sobre a compreensão em retrospecto de M.
Como todo idílio de infância, este também é impossível de reviver. Adolescente, a pequena M tenta novo contato com o pai e procura, em vão, recuperar a sensação de aventura que tinha quando pequena a fazer as viagem com seu “patrão”.
Ocorre que nada é o mesmo. Ela, o pai, o mundo são vistos agora pela lente de uma adolescente e, como esperado, todas as fragilidades são expostas, de modo que, esse parece ser o último contato da garota com aquele mundo em ocaso.
E a transição da infância de M para adolescência, é acompanhada também pelo ocaso de uma profissão, o modelo de vendo dos caixeiros viajantes é ofuscado pela ascensão das grandes lojas de rede.
Comentários Adicionais
A estrutura de capítulos curtos, somada ao repertório possível de uma criança em um ambiente hostil, a busca por validação emocional e afeto encontra no livro uma forma impar de ser representado. A ditatura passa a falar mais alto no livro, mas essa superposição de camadas, eventos e períodos é feita com maestria e simplicidade pela autora. O ocaso de uma profissão e o amor do jeito possível, expostos na fragilidade da relação paterna, são também muito bem traçados na obra.
Leitura recomendada para todos!