sexta-feira, 15 de setembro de 2023

Tudo pode ser roubado - Giovana Madalosso

                                

                                                                                                               Resenha: Maria Albeti Vitoriano

A autora

Giovana Madalosso nasceu em Curitiba, em 1975, e atualmente mora em São Paulo.  Formada em jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), atuou como redatora publicitária por quinze anos e, atualmente, escreve roteiros para televisão. 

Estreou como escritora com a coletânea de contos “A teta racional”, finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional. Em 2018 publicou “Tudo pode ser roubado”, seu primeiro romance e, em 2019, Suíte Tóquio, finalista do 63º Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário e traduzido para espanhol e inglês.  

Em 2020, foi uma das organizadoras do Memorial Inumeráveis, projeto que homenageia as vítimas da pandemia de Covid-19 no Brasil, por meio da divulgação de suas histórias. Desde janeiro de 2023 é colunista do jornal Folha de São Paulo.

Giovana foi garçonete em restaurantes da família e, também, em Nova Iorque, quando estudava roteiro de cinema, o que lhe trouxe a percepção de que toda noite é decadente e subterrânea. 

A narrativa

A personagem central do livro “Tudo pode ser roubado” é uma garçonete que trabalha em um restaurante bastante conhecido, localizado na região da Avenida Paulista. Não sabemos seu nome, durante toda a narrativa é chamada de “rabuda” e, principalmente, de “rabudinha” pelo seu parceiro no roubo de uma preciosidade. Durante alguns anos “era apenas uma mocinha honesta ganhando a vida como garçonete” (p. 18), que aproveitava as horas de folga para encontros sexuais, com homens ou mulheres.

O primeiro roubo foi por acaso, aproveitando a saída do seu acompanhante, entra no closet e encontra uma pele de raposa, que começa a examinar. O homem retorna e, com medo de ser descoberta, esconde o objeto na bolsa, leva com ela e resolve vendê-lo. É quando conhece a dona de um brechó, a transgênero Tiana (Sebastiana), que compra os objetos “surrupiados” e começa a orientá-la sobre produtos que tem valor no mercado. 

Os encontros, a escolha dos parceiros ou parceiras, passam a ser oportunidades para roubar objetos que possam ser vendidos por um bom preço e, assim, conseguir dinheiro para dar entrada na compra do apartamento onde mora, “É por isso que de vez em quando eu passo a mão numa coisa ou outra. Por uma questão previdenciária” (p. 13). Fazia parte do regulamento, por ela criado, sempre passar para frente o objeto roubado, nunca usar. Ela se intitula uma “sonhadora mequetrefe” (p. 38). 

Certa noite, é procurada por um homem, Biel, um “picareta municipal”, segundo a garçonete, que lhe faz uma proposta tentadora, roubar um exemplar raríssimo do livro O guarani, de José de Alencar, de 1857, que havia sido comprado, em um leilão, por um professor. Esse livro era o objeto de desejo de um colecionador, J., que estava disposto a pagar 50 mil para cada um deles. Trata-se de um herdeiro de banqueiros, esquisitão, que a garçonete chama de “um vagabundo internacional (p.45), pois vive buscando objetos para suas coleções, promovendo festas e cheirando pó. Ele agora quer conseguir o Guarani, “Até conseguir e querer outra coisa” (p.45). 

A partir desse momento, a protagonista mergulha cada vez mais em um estranho submundo que mistura um milionário excêntrico, drogas e sexo. Passa a circular pelo mundo dos ricaços, mas sempre criticando a futilidade desse mundo. 

A protagonista tem um olhar perspicaz sobre o ser humano, talvez pelo seu trabalho como garçonete, mas principalmente pela outra segunda profissão, de procurar pessoas que possam ser vítimas dos seus roubos, que ela considera uma atividade sagrada (p. 149). Ao observar os frequentadores do restaurante onde trabalha, ela faz uma reflexão sobre as pessoas que estão naquelas mesas: “Pessoas comendo para matar a fome, comendo para sentir prazer, comendo para se acalmar, comendo para se esconder. Impressionante como um gesto tão rudimentar pode adquirir tantas variações quando filtrado pelo emocional estropiado do ser humano” (p. 50).

Como o objetivo de conseguir roubar o livro e, assim, conseguir o dinheiro, a “rabudinha”, começa a tarefa de conquistar o professor, Cícero, para conseguir ir à casa dele e surrupiar o tal livro, uma preciosidade. A tarefa que ela julgava fácil e rápida, tornou-se difícil e demorada pelo temperamento arredio do professor. 

Mas finalmente, ele se apaixona pela garçonete, que faz o papel de uma aluna ouvinte, com o desejo de aprender a escrever artigos para defender, principalmente, a causa dos transgêneros. Depois de várias tentativas, ela consegue que o professor a convide para casa dele. 

O encontro, tão adiado pelo professor, começa com ótimas perspectivas, principalmente, para ele, mas se transforma em um fracasso, em virtude de problemas psicológicos do professor.   Para se acalmar e tentar voltar ao estado de excitação, ele exagera na dose de um remédio e acaba dormindo. 

A “rabudinha” aproveita para revistar o apartamento e ao examinar a biblioteca reflete “Sempre pensei que o conhecimento servisse para libertar as pessoas, mas agora também percebia que, aliado à vaidade ou à insegurança, também servia para construir belíssimas gaiolas” (p.158).

Finalmente, encontra o livro e, nesse momento, fica em dúvida se deve levar essa preciosidade, retirando de quem ama a literatura, para quem apenas deseja um objeto a mais para sua coleção, “Uma vez adquirido um certo item, o colecionador sai à procura de outro” (p. 174). Ela se dá “conta de que está tratando com duas figuras distintas, um colecionador e um amante de literatura” (p. 173). 

Porém, decide levar o livro e, junto com Biel, passa para o colecionador que entrega o prometido, um envelope com 50 mil para cada um deles. Nesse momento, ela sentiu que estava enterrando o Cícero e o Guarani, mas também, o Biel e a perspectiva de vê-lo novamente. 

Foi exatamente o que aconteceu, marcaram um encontro para comemorar, ele não aparece e depois de uma noite de espera, ao relento, ela vai ao hotel em que ele estava hospedado e descobre que seu verdadeiro nome é Yuri e que tinha, provavelmente, viajado para o exterior. A verdade é que “havíamos nascido um para o outro, dois cães vagabundos no canil que é o mundo” (p. 18),

Triste, decepcionada, procura Tiana, sua única amiga, mas descobre que ela, também, não estava mais em São Paulo. Fugiu da cidade e, principalmente, de um homem por quem ela havia se apaixonado, mas que junto com um parceiro lhe dera uma surra, para não parecer um “maricona” e, mesmo assim, continuava procurando por ela.     

Num dos encontros, com um fotógrafo, a garçonete escuta uma reflexão sobre trabalhar no front de uma guerra: “A gente se acostuma com qualquer coisa, até com a guerra. Nos primeiros dias, você passa correndo na frente do inimigo. Depois, se nada acontece, você passa andando rápido. Um tempo depois, anda normalmente, como se estivesse andando na Paulista” (p. 84). Roubar para a garçonete, pode ser comparado a essa experiência do fotógrafo. 

A atmosfera da narrativa é repleta de melancolia. As diversas pessoas que interagem com a garçonete são solitárias, viveram ou vivem dramas reais, tais como a arquiteta, com câncer, o fotógrafo de zona de conflito. O livro coloca várias reflexões sobre a vida, sobre o consumismo e sobre a violência contra transexuais, são superficiais, mas deixam margem para reflexão. Como por exemplo, “...a gente é a soma das coisas que vimos por aí” (p.85)

Estilo da autora

A autora mostra um humor fino, sutil, às vezes irônico em vários momentos, principalmente, nas reflexões da garçonete. Um certo momento ela olha para um dos parceiros de cama e pensa: “Ele sorri para mim. Coitado, ele sorri para mim” (p.11).

Ela fala em “passarinhos desajustados” (p. 17), para se referir aos pássaros que começam a cantar ainda de madrugada. Sobre os ensinamentos que recebia de Tiana sobre roupas, estilistas e épocas a garçonete pensa “Não é um assunto de que gosto muito, mas, queira o não, eu estava atuando nesse ramo” (p. 25) 

No momento em que uma galerista fala que está cansada da vida em aeroportos, festas, coquetéis, galerias, a garçonete tem vontade de “...sugerir que ela tente um novo circuito festa na laje, hospital público, ponto de ônibus, rodoviária...” (p. 116) 

Alguns capítulos ganham o nome do objeto que a garota subtrai dos seus acompanhantes: “Óculos Tom Ford”, “Blazer de paetê Laurence Kazar”, “Masbaha de madrepérolas” e “Abotoaduras Pierre Cardin”, entre outros. É interessante que a protagonista faça a medição dos sorrisos em percentual, 10%, 20%, 70%, etc.

A autora não usa travessão ou aspas nos diálogos, mas é feito de tal forma que nada fica confuso ou estranho. A narrativa é feita na primeira pessoa, de forma leve e ágil, às vezes com um vocabulário vulgar, sotaque paulista, mas tudo dentro do contexto da trama. 

A autora consegue manter o suspense até o final, ela vai roubar o livro? 

Ambientação

A narrativa está ambientada em São Paulo, basicamente ao redor da Av. Paulista, trata de assuntos polêmicos, mas com leveza. A autora contrapõe as várias São Paulo, mostrando o lado rico e o lado miserável da cidade. A garçonete fala do local onde encontrará o Biel da seguinte forma: “Para lá da Augusta penteada pelo dinheiro, para lá da Augusta monitorada pelas câmaras, para lá da Praça Roosevelt, numa ruazinha escura e suja, mais ou menos no início do intestino da cidade” (p.29). 

E noutro momento, a personagem reflete sobre a cidade e sua população: “Essa era a São Paulo de que eu gostava, a São Paulo depois do expediente, quando as pessoas afrouxavam a gravata e deixavam entrever [...] as marcas de viver numa cidade tão obcecada com a produtividade” (p. 30). Mas há, também, outra São Paulo sobre a qual a garçonete reflete “..que eu renego, de todas as cidades que existem dentro de uma grande cidade a mais desprezível, a dos prédios altos com portarias altas, de mais helipontos do que bancos ou jardins (p.99).

A autora mostra São Paulo, com toda sua opulência, mas também o lado dos desvalidos. A solidão é uma constante na narrativa com por exemplo quando ela diz: “Desses prédios, descem pessoas que não sentam nos bancos, nem contemplam o chafariz, só fumam um cigarro e voltam correndo para dentro..” (p.12). 

Sobre a arquitetura, a garçonete observa: “Na altura dos meus olhos, estava a cidade na sua forma clássica, cinza e vertical, aqui e ali pontuada por uma pichação ou por uma janela [..] com pequenos traços do horizonte escapando como esmolas entre as construções” (p.39). Destaca, também, que no meio de tantas desigualdades, algo se destaca igual para todos: “Lá em cima estava o céu, o mesmo modelo que cobria a Oscar Freire e a Faria Lima, a Vieira Souto e a Quinta Avenida azulão e cravado pelo sol...” (p. 39).

Finalmente, fica a pergunta: tudo pode ser roubado? Essa é a questão sobre a qual a protagonista e Biel discutem em determinado momento.