terça-feira, 23 de maio de 2023

O som do rugido da onça - Micheliny Verunschk

Por: Carlos Guido S Azevedo

A Autora

Micheliny Verunschk (Recife - PE, 1972) é uma escritora e historiadora brasileira. Em 2004 foi indicada ao Prêmio Portugal Telecom de Literatura, com o livro de poesia Geografia íntima do deserto, sendo a única mulher estreante e, também, a mais jovem a ficar entre os dez finalistas. Com o romance Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, de 2015, na categoria de melhor romance escrito por autor estreante no gênero acima de 40 anos. É autora também de O observador e O nada (2003, poemas), A cartografia da noite (2010, poemas), B de Bruxa: Bonnus bonnificarum (2014, poemas), Aqui no coração do inferno (2016, romance), O peso do coração de um homem (2017, romance), Maravilhas banais (2017, poemas). Tem trabalhos publicados na França, Portugal, Espanha, Canadá e Estados Unidos. (Internet apresentação).

Seu livro mais recente é esse romance: O som do rugido da onça, lançado em 2021 e vencedor do Prêmio Jabuti e do Prêmio Oceanos no ano seguinte.

No meu entender Micheliny além de ser mulher pernambucana, toma as lições das mulheres de Tejucupaco - PE que ajudaram os brasileiros a expulsar os holandeses com uma guerra inusitada de abóboras quentes e água fervente com pimenta, nas estreitas ruas do distrito de e Tejucupapo, atual Goiania. Onde hoje opera a fábrica de automóveis Jeep.

A batalha de Tejucupapo, ou batalha do Monte das Trincheiras, em 24 de abril de 1646 se deu no contexto da segunda das Invasões holandesas do Brasil, graças ao empenho das mulheres da povoação cerca de 600 holandeses foram derrotados e bateram em retirada. Nesta que é considerada a primeira batalha em território brasileiro.

Essa é apenas um a introdução para ilustrar o sentimento de coragem para a luta de Micheliny.

 O Livro

Conta história de uma menina indígena da tribo miranha que é levada para a Baviera por dois cientistas alemães que vieram explorar e conhecer a flora e a fauna brasileira. Eram o Zoológo Johann Baptist Spix   e o botânico Carl Friedrich Phillipp Martius que vieram inspirados pelas viagens, no início do século, de Humboldt pela América do Sul, que gozava de amplo prestígio no meio intelectual da época.

Martius, ficou mais conhecido porque descreveu suas aventuras num livro Relato de Viagens ao Brasil – Expedição do botânico alemão Martius 1817 - 1820, fazendo um inventário da natureza do Brasil. Eles dividiram o território do Brasil em cinco biomas que usamos até hoje (cerrado, caatinga, Mata Atlântica, Floresta Amazônica e Pampa).

O sequestro dos índios realmente aconteceu e era comum que barcos europeus levassem muitos índios para aculturação, comércio humano ou exibições públicas, desde Cabral, pouco contada na história oficial, sempre que aportava uma nau em margens brasileiras, logo apareciam tribos para oferecerem seus inimigos e até seus parentes, em troca de bens de interesses.

A segunda parte do livro incorpora o álter ego da escritora na personagem Josefa que a partir do conhecimento das fotos dos dois índios levados para a Baviera e retratados por artistas, esculpidos em bronze e enterrados em cemitério real, com a presença da rainha, foi disseminado no mundo e estava disponível na exposição que surpreende Josefa.

Trazendo para a amarga realidade atual, a violência contra os índios e nossos problemas sociais. Eles são introduzidos por um discurso de defesa das terras indígenas na época da construção da barragem Belo Monte, do cacique Raoní Metuktire, muito conhecido no mundo por sua luta em defesa dos povos originários e que atraiu a ira de bruto governante do passado que chegou a mencioná-lo em discurso na ONU que: “A era do Raoní, teria ficado para trás”.

A terceira parte do livro é de muito bom gosto e descreve a vivência da autora no meio dos povos originários, tentando compreender seus mundos e costumes, chegando a participar de celebrações e experiências transcendentais que muito a influenciou na descrição dos sentimentos e pensamentos da Iñe-e.

A quarta parte do livro tem como fonte suas pesquisas na Alemanha sobre a vida da época dos acontecimentos, o próprio livro do cientista Marcus e os registros cartoriais da época.

Parte considerável do romance é a narrativa da história do ponto de vista de Iñe-e, a índia que que foi levada pelos cientistas, juntamente com uma dezena de outras crianças e adultos e documentados no livro de Martius. A autora, meio que ignora os demais transpostos, para buscar na voz de Iñe-e uma forma de desacreditar os cientistas, ou pelo menos tirar-lhes a pecha de heróis.

Frustrando minhas expectativas, Iñe-e acabou sendo descrita como uma menina muito xucra, sem interação com a realidade e com as pessoas, sem empatia, triste e apática, ao contrário do seu companheiro e antigo inimigo o menino Juri, que conseguiu até se divertir e interagir com os brancos, evidentemente dentro dos seus conceitos, muito embora todos estivessem condenados à morte rápida pela ausência de defesa e inabilidade corpórea para a convivência em ambiente tão contaminado como o das cidades.

A construção do personagem onça e sua formação no imaginário das tribos e na representação na vingadora, capaz de proteger a quem consegue incorporá-la e obedecer a seus chamados, foi muito criativa e, sem dúvida, é a parte do livro, mais bem fundamentada em pesquisas literárias e de campo, sob exploração do imaginário do povo miranha e de outros povos originários, além de ter sido escrito em uma prosa Roseana de muito bom gosto.

O texto deixa pouco claro que os miranha eram uma tribo de guerreiros que consideravam inimigos todos aqueles que não falassem a língua Bora. Se eles não entendessem ou não fossem entendidos era sinal de inimigo a ser capturado para ser vendido como escravo ou se fosse um guerreiro famoso de outra tribo seria morto e devorado em um ritual antropofágico, de muito significado para eles, que assim conseguiriam assimilar qualidades desse herói e conviveriam com seu espírito daí em diante. 

De livros didáticos na Internet: “Os miranha eram considerados brutos, antropófagos e seus chefes costumavam vender seus prisioneiros e seus inimigos como escravos e até mesmo os seus parentes”. “Os miranha em 2014 eram 21.459 no Amazonas e 445 na Colômbia, na época do ocorrido, não se tem estatística de quantidade, mas deveriam ser muitos e fortes na região. Tiveram suas terras demarcadas no século XX em 1929 TI Méria (Médio Solimões); em 1991 a Ti Miratu no município de Urini; 1998 Ti Cuiú-Cuiú no município de Maraã, homologada em 2003.”

Noutra frente, o livro é um libelo muito interessante de reforço dos valores morais, sociais e religiosos atuais com incorporação de todas as lutas baseadas no conceito atual do “politicamente correto”, forma de pensar que abandona toda e qualquer contextualização das eras passadas e de seus conhecimentos, costumes e valores, para fazer uma análise de qualquer ação do passado sob os valores atuais e assim, exercer um julgamento do passado segundo os padrões atuais, condenando e execrando todas as justificativas, não científicas ou não igualitárias contemporâneas.

A arquitetura

A estrutura arquitetônica do livro de Micheliny é explicada por ela como semelhante à construção de uma oca indígena: Primeiro se fincam as troncas ou estroncas que segurarão o teto, depois as varas que seguram as paredes e só então se trabalha galhos e folhas que irão ser entrelaçadas para construírem paredes e teto.

Seu primeiro lance é a apresentação da cosmovisão dos índios  miranha. Na verdade, o alicerce da Oca imaginária, porque sem esse contexto muitas partes da história não fariam sentido.

 “Quando Niimúe criou o mundo....o mundo é esse gigante que mal distinguimos se estamos distraídos...” na verdade é um mundo em constante peleja e se auto devorando. Mas, principalmente devorando aqueles que não lhe ouvem e o destroem etc.

A segunda estaca é a apresentação de Iñe-e no navio com todas as novidades do mar e da própria embarcação atulhada de espécies de animais, vegetais e gente... já com o ponto de vista de Iñe-e e começando a dar vida a sua personagem com uma versão descolonizadora, apresentando o sentimento e a visão do mundo dos espíritos, na crença indígena, que os cientistas tiravam seus espíritos quando os pintavam e fotografavam, tanto das pessoas como dos animais e plantas e avança na percepção de que os animais mumificados continuavam vivos só que congelados e para sempre em alerta permanente.

A surpresa desse lance é a entrega de que essa é a estória da morte de Iñe-e e de como ela perdeu seu nome, sua casa e sua voz. A voz é colocada como a identidade de todo ser, animado ou inanimado, “quando se perde a voz, se perde a vida”, fazendo jus à cosmovisão maranha.

Em seguida, a autora, se coloca no texto como a personagem Josefa que emprestará a Iñe-e a sua voz e sua língua e mesmo as letras arrumadas como “colar de formigas no chão”.

Descreve muito poeticamente o nascimento de Iñe-e e seu irmão gêmeo, seu crescimento no meio da comunidade, seu desaparecimento temporário quando criança e seu encontro com uma onça que não lhe feriu, fato que gerou desconfiança do seu pai de que ela seria uma inimiga por ter convivido pacificamente com o animal mais perigoso e inimigo de todos.

O Trançado

Deste ponto em diante começa a fazer o trançado já falado dos galhos e das árvores para a construção da oca, ou seja, do texto.

Conta a chegada dos cientistas na tribo, já acompanhado de índios de outras tribos trazendo missangas, chitas e metais que agradavam aos chefes e foram recebidos com muita alegria e reconhecimento e são alimentados e tratados em suas feridas pelas mulheres, fazendo um dia de festa, danças e interessados em fazerem negócios lucrativos.

O pai de Iñe-e se embrenha na mata para buscar escravos para o homem e na volta trouxe alguns poucos homens, muitas mulheres e várias crianças.

Antes era costume que seu povo trocasse com os brancos apenas os inimigos e os órfãos dos inimigos por mercadorias variadas e ferramentas de trabalho.  Mas o pai de Iñe-e já estava se aculturando usando roupa comprida o tempo todo e até dizia palavras da língua dos brancos e exigia ser chamado de João Manoel, porque fora batizado em uma de suas viagens.

São muitos os momentos poéticos de sua descrição: (22) “Uma manhã em que o sol se levanta do mesmo jeito que sempre se levanta, e em que a mata fala sua língua de mesmo modo com que sempre falava nada denunciava o que estava para acontecer”.   Este fez parte da introdução do momento chave do livro, aquele em que o pai de Iñe-e a dá de presente ao estrangeiro Martius como agradecimento pelo acordo sobre a venda das sete crianças inimigas.

Aí a história toma outro rumo. Josefa o álter ego da escritora que já havia se identificado com um desenho da índia Iñe-e numa exposição, vê Raoni com um sêr quase mítico, o que desperta nela uma estranheza em relação à sua pessoa, ao mundo em que vive como se tivesse uma ligação umbilical como aquela gente ou um sentimento de busca pessoal por esse mundo da inocência perdida que precisaria ser resgatada para voltar à sua inteireza no mundo.

Vai em busca do resgate da história de Iñe-e  e assume a missão de reescrever a história retirando daqueles cientistas a imagem de bons e competentes, porque na avaliação contemporânea de Josefa, Homens bons não sequestram crianças.

Josefa busca no Google retratos da menina e começa a se identificar com ela, “se sua tia pudesse em algum momento representar a menina que ela fora, seria algo muito diferente daquele retrato xambouqueiro da menina do povo miranha?... Ela olha a menina e é seu próprio rosto que vê”.

Foi a Munique em busca de elementos para sua história e recebe a informação do assassinato de Mariele Franco, mais uma vez a história adquire novo colorido, mais atual e integrado à luta social no Brasil e no mundo, que parece só continuar a luta antiga por um reconhecimento mútuo da diversidade entre os homens. 

Seguem-se as aventuras de Iñe-e junto com os cientistas, a entrega dos outros índios a pessoas de confiança de Marcus, a entrega de Iñe-e à rainha e a surpresa e tentativa de diálogo e seus usos como brinquedos das filhas da rainha.

A morte do menino Juri é detalhada e sua consternação é geral. Ele respondera com valentia tudo o que passou, conseguindo alguma interação com as crianças e os adultos, até se divertindo com os costumes estranhos dos brancos, mas poucos meses depois não resiste à doença do inverno europeu e falece com problemas pulmonares.

É assistido com a medicina da época, mas não tem sucesso, seu enterro é, de certa forma, solene com a presença da Rainha. Que manda fazer um busto para lhe identificar o túmulo.

Esquecendo, acho propositalmente, a visão ou cosmovisão da época do colonizador, mesmo a sua necessidade de compreensão do mundo e de pesquisa científica. Afirma, sem rodeios, que tudo começou com Iñe-e. Ou seja, é esse ponto de vista que você vai ler aqui, não se aflija, sou Iñe-e e o resto não vai me interessar. (gostei da franqueza, embora subtendida).

A estratégia clara, típica do movimento “politicamente correto” e, garantia de sucesso dos romances atuais, é aplicado sem dúvida pela autora, trata-se de recolocar no contexto atual aquela visão opressora do modelo colonial e fazer um julgamento com os valores atualmente em voga de modo a gerar um sentimento de repulsa e indignação para os cientistas, a ciência e a ação exploradora e espoliadora dos colonizadores, mesmo que sejam cientistas ou estudiosos bem intencionados, não importa, são os pecados de gerações como a escravidão e a exploração do ser humano em qualquer circunstância. O fato de serem cientistas, só serve como agravante por terem sequestrado crianças e considerando os índios como espécies de estudos como as plantas e animais tirados da terra.

Acredito, que a autora tinha material para realizar um livro épico e magistral, contando uma história interessante, abordada do ponto de vista do silvícola, o que é raro na história moderna, desde a fase da literatura de José de Alencar, Gonçalves Dias, Gonçalves Magalhães com seu I-Juca Pirama.

Mas, foram frustradas minha expectativa, porque seria de grande interesse uma análise do choque de concepção do mundo dos nativos dom a dos cientistas. Contrapondo duas visões de mundo de modo mais equilibrado e consentâneo com o conhecimento de hoje sobre as duas civilizações.

Minha surpresa foi por esperar um livro épico que contava a história de um sequestro de indígenas pelos colonizadores, muito comum na época da colonização ou até da pré-colonização, para uso como estudo científico e demonstração de sucesso das suas viagens ao Brasil.

Encontrei um libelo libertário, feminista e datado, feito dentro da medida e do diapasão da literatura engajada da atualidade com lapsos de temporalidade e sentido, com pouco amálgama de integração entre as duas personagens centrais da trama, Iñe-e e Josefa o álter ego da escritora.

Sem dúvida, duas mulheres tão potentes poderiam ter sido mais exploradas no sentido próprio da exploração dos sentimentos e do crescimento do autoconhecimento.

Da Iñe-e procurei conhecer seus pensamentos próprios, suas surpresas, resignações ou mesmo um tipo qualquer de integração, mas Iñe-e é quase morta. Calada e assustada o tempo todo. O seu companheiro o menino Jari ainda consegue acusar a estranheza diante dos comportamentos do homem branco, mas Iñe-e é muito opaca.

A saída foi típica de Guimarães Rosa, a realidade fantástica, transformá-la em onça e conversar com o rio.  A onça é a dona da história, foi um achado muito bom a de lhe colocar como uma onça, só que não conseguiu lhe dar as suas propriedades.

Mulher onça pega bem e é admirada em sua fortaleza, mesmo que seja derrotada pelas doenças e fragilidades, mas exala algumas características da onça. São onças de Guimarães Rosa, as onças de Ariano, as jaguatiricas, uruajura, tapiraí-auára, tem maria-maria, estão todas lá, no baile das onças.

Experiência transcendental com Ayuasca e muitas histórias da tradição de diferentes tribos, com muita pesquisa e informações, ajudaram a fazer a obra significativa.

Afinal o Som do Rugido da Onça é ouvido por ela na parte final do livro quando se ouve o respirar cansado de Martius com dor na consciência por ter degredado Iñe-e de sua linda terra natal e ter prestado serviços tão relevantes para a ciência e para o Brasil, a ponto de ter como inscrição em sua lápide “Entre as palmeiras me sinto sempre jovem. No meio delas ressuscito”, mas para isso ele teria que ser onça ...findo estava, caça que era”.

Apreciei imensamente, com as devidas observações.

Indico e aconselho, sem restrições.