terça-feira, 18 de abril de 2023

O leopardo - Giuseppe Tomasi di Lampedusa


Resenha de Lenita Turchi

O leopardo, considerado um dos romances mais importantes da Itália, publicado em 1958, após ter sido rejeitado duas vezes, é ainda fonte de debates e controvérsias. As recusas vieram do autor Elio Vitorino, conhecido como profeta do neorrealismo italiano, que o apontavam como “antiquado e desequilibrado” ou antiquado e reacionário.  E foi graças a uma análise da mulher do conde Lampedusa, a psicanalista Licy, que uma cópia do manuscrito chega às mãos da agente literária Elena Croce que o romance é publicado. Segundo Jorge Bacena, escritor que aprovou a publicação: “Desde a primeira página me dei conta que estava frente a obra de um grande escritor e ao avançar estava convencido que o verdadeiro escritor era também poeta”.

O autor

Guiseppi Tomasi de Lampedusa, duque de Parma e príncipe de Lampeduza, nascido em 1896, passou sua infância e adolescência nos palácios dos pais e avós na Sicília. É convocado para lutar na Primeira Guerra e ao término desta vai viver em Londres com um tio nobre e diplomata. Casou se com a aristocrata russa Alessandra Wolff-Stormersee, psicanalista, que introduziu Lampeduza nos estudos freudianos e juntos estudavam literatura russa.  Na vida londrina dedicou-se à literatura e história e dava aulas de literatura francesa e inglesa para círculos literários. Leitor compulsivo lia tanto a literatura clássica como a contemporânea, tendo como referência autores como Tolstoi, Sthendal, Shakespeare, Dicknes, Jaime Joyce e Elliot. Segundo seu biógrafo, (David Gilmor) o desejo do escritor era escrever sobre a vida do Principe de Salina, mas desistiu por achar que não tinha capacidade de escrever como Jayme Joyce.

Depois resolveu ser mais “modesto” e o projeto inicial era de escrever um romance histórico, ambientado na Sicília no tempo do desembarque de Garibaldi em Marsala, inspirado na vida de seu bisavô, o astrônomo príncipe de Lampedusa.  Este projeto planejado por 25 anos foi iniciado em 1954 e concluído 30 meses depois, de fato transcendeu em muito o propósito de escrever o memorial da família Lampedusa. O Gatopardo é uma análise primorosa da história política e social da Sicília, no período das guerras de unificação e da transição do regime monárquico e do surgimento da burguesia italiana.  É também uma refinada descrição da cultura siciliana com seus valores, normas, rituais, padrões de comportamento e a percepção do tempo pelos habitantes da ilha.  É sobretudo uma discussão existencial sobre os prazeres da vida e sua finitude.

O gatopardo: personagens

O romance tem como personagem central Don Fabricio, príncipe de Salinas, que assim como o bisavô do autor, era astrônomo e um homem refinado e ciente da sua condição de classe.  Em torno dele, gravitam sua família constituída pela mulher Stella, 3 filhas e 4 filhos, o sobrinho Trancredi e o cão Bendico.  Aqui a descrição do autor sobre o príncipe

“Primeiro (e último) de uma linhagem que, durante séculos, fora incapaz de fazer sequer as somas das próprias despesas e a subtração das próprias dívidas, possuía reais e fortes inclinações para astronomia, delas obtendo suficiente reconhecimento público e gratas alegrias privadas. Basta dizer que o orgulho e a análise matemática associavam-se nele a ponto de lhe dar a ilusão de que os astros obedeciam a seus cálculos ....” (p. 48).

Tancredi Falconieri, protegido e preferido do príncipe Salinas, é visto e tratado como o filho que gostaria de ter. Jovem, encantador, de vida social intensa e fortuna dilapidada pelo pai, Tancredi se alia aos grupos combatentes da monarquia com o seguinte argumento.

“Se nós não estivermos presentes, eles aprontam a república. Se queremos que tudo continue como está é preciso que tudo mude” (p. 69). 

Após a vitória de Garibaldi, Tancredi vai visitar o tio com amigos e este se surpreende ao ver o sobrinho e os amigos trajando uniformes de oficiais ao invés das camisas vermelhas que antes vestiam. O diálogo que se segue ilustra bem a personalidade do sobrinho e dos jovens de sua classe.

“Mas que garibaldinos coisa nenhuma, tiozão! Já fomos; agora chega. Cavriaghi e eu somos oficiais do exército regular de Sua Majestade o rei da Sardenha, ainda por uns meses, e da Itália em breve.  Quando o exército de Garibaldi se dissolveu podíamos escolher: ir para casa ou ficar no exército do Rei. Ele e eu, como todos os homens de bem, entramos para o exército “verdadeiro”. Com aqueles outros não dava pra fica. Meu Deus, que gentalha”. 

O padre Pirrone, que aparece quase como membro da família, representa o pensamento conservador da Igreja e, mais especificamente, dos jesuítas. Este personagem é apresentado como um conselheiro, protetor das virtudes da família e um colega de trabalho do príncipe em seus estudos de astronomia. Um equilibrista entre as vontades humanas do príncipe e os princípios da igreja. Um sabedor de sua posição, enquanto aquele que não deve manifestar sua opinião sem antes sondar as intenções daqueles que a solicitam.

D. Calojeno Sedara, comerciante e proprietário rural, e sua filha Angelica, representam a burguesia ascendente, que enriquecia com as mudanças econômicas e políticas gestadas durante as guerras para a união dos reinos da Sicília, sob o reinado do Rei da Sardenha e da futura Itália. D. Calogeno é descrito como inteligente, astuto que soube tirar proveito comercial do seu apoio ao exército libertador, mas sem p refinamento necessário para ascender socialmente. Na sua perspicácia, envia a bela filha para estudar em Florença e esconde a mulher, uma camponesa de rara beleza, porém rude e de pouca inteligência. Angelica bela e sedutora aprende com facilidade os rituais e convenções da nobreza.  

Cenário ou outro personagem?

A Sicília é a maior das ilhas do mar Mediterrâneo e, devido a sua posição geográfica, ocupou lugar de destaque nos eventos históricos e políticos dos povos da região mediterrânea. Cultura diversificada, fruto de ocupações, que remontam aos IIIº e IIº milênio a.C,, dos povos sicanos e fenícios. Nos séculos seguintes, a ilha foi disputada e ocupada por gregos, romanos, ostrogodos, árabes, aragoneses, judeus e normandos que constituíram um tecido social denso de camadas culturais que se sobrepõem. Essa é a beleza, a riqueza e, ao mesmo tempo, a sina “mudar para continuar como está”, conforme a definição do príncipe de Salinas. “Na Sicília não importa fazer certo ou errado, o pecado que nós sicilianos não perdoamos nunca é simplesmente o “fazer”. Somos velhos, Chevalley, velhíssimos. Há vinte e cinco séculos pelo menos nós carregamos nos ombros o peso de magnificas civilizações heterogêneas ... os sicilianos não querem melhorar pela simples razão que se consideram perfeitos; sua vaidade é mais forte que sua miséria. (p. 223)

A novela / trama   

O romance se desenvolve em oito partes, como se fosse um diário. Segue uma periodização que tem início em maio de 1860, que marca o desembarque de Garibaldi em Marsala e a tomada de Palermo.  E concluído em maio de 1910 com a decadência da fortuna e prestígio da família, representados pelas moderadas inovações do Papa Pio X.

Na primeira parte, a família do príncipe Salina, após a oração diária, é surpreendida com a notícia de um soldado encontrado morto nos jardins do palácio em Palermo. Essa é a forma que o autor utiliza para falar da guerra para depor a monarquia dos Bourbons e unir os dois reinos da Sicília.  Daí em diante os temas morte, conflitos e razões para existência perpassam toda estória.

Tancredi vai visitar a tio em Donnafugatta, castelo de verão dos Salinas, e lá conhece Angelica num jantar, que por tradição o nobre deve oferecer às personalidades do local, o principal deles D. Calogeno.  O encontro da bela Angelica com a família do príncipe Salinas é narrado pelo autor como um sucesso, ou seja, todos representaram bem os devidos papeis “impecável direção cênica”.

O romance entre Tancredi e Angelica prossegue sob olhares benevolentes do príncipe e de D. Calogeno. O príncipe que vê em Angelica e em seu patrimônio a possibilidade de alavancar a carreira do astucioso Trancredi e o pai de Angelica a oportunidade de fazer parte da nobreza ainda que falida. Angelica e Trancredi representam aqui a união dos novos ricos com a nobreza falida. Um jogo que todos ganham se agirem de acordo as regras do teatro da época. Ou seja, o príncipe, ignora a atração que sua filha Concetta sente pelo primo e pensa o que seria melhor para a sobrevivência da família. O pai de Angelica na sua astucia sabe das vantagens da união de sua fortuna com a nobreza ainda no poder.    

O baile de apresentação de Angelica à sociedade é um dos pontos fortes do livro. Neste capítulo, o autor narra com ironia e riqueza de detalhes o comportamento da nobreza assim como o caráter fugaz da beleza e da vida. Os mínimos detalhes, como chegar na hora marcada, considerado prova de refinamento, passando pela barba, o corte e tecido da vestimenta de D Calogeno, assim como as falas dos mesmos são cuidadosamente programados e supervisionados por Trancredi e seu tio para que a noiva seja aceita e não envergonhe a família. Na festa, já cansado e sem poder se retirar, era de bom tom ficar até as 6 da manhã, o príncipe lança seu olhar crítico a todas as futilidades e superficialidade da sua classe e da própria existência.  Trancredi e Angelica o encontram na biblioteca comtemplando uma cópia do quadro a “Morte do Justo,” de Creuze. Para desviar sua atenção deste tema, Angelica pede que o príncipe a acompanhe para dançar uma valsa. No início uma recusa, mas difícil negar o pedido “súplicas” da sedutora Angelica. Reanimado pela deferência e pela admiração que os dançarinos causavam no salão, o príncipe se rejuvenesce e “por um instante naquela noite, a morte foi aos seus olhos coisa dos outros”.

Neste livro, a obra da uma vida, Lampedusa mostra sua genialidade não só na narrativa, refinada e irônica, mas também na construção dos personagens.  O romance tem a influência dos autores russos e franceses em que que o autor é especialista, mas é ao mesmo tempo original. As descrições dos cenários, lembram Stenhal e Tostoi, nos detalhes e nuances. A descrição do jardim do palácio onde é encontrado o soldado morto, no início do conflito, é poderosa e traz consigo a visão da Sicília.

“Era um jardim para cegos:  olhar era constantemente ofendido, mas o olfato podia extrair dele um prazer forte embora nada delicado. As rosas, Paul Neyron, cujas mudas ele próprio havia trazido de Paris, haviam degenerado:  excitadas a princípio e logo enlanguescidas pelos sucos vigorosos e indolentes da terra siciliana queimados pelos verões apocalípticos, haviam se transformado numa espécie de repolhos cor de carne, obscenos e que destilavam um aroma denso quase torpe que nenhum criador francês teria ousado esperar. O príncipe colocou uma delas debaixo do nariz e pareceu lhe cheirar a coxa de uma bailarina da ópera. Benicó,  a quem, também a ofereceu, retraiu-se nauseado e apressou se buscar sensações mais salutares entre adubo”

Outros dos muitos aspectos que fazem do romance uma obra prima são os diálogos do príncipe com padre Pirrone e com o organista companheiro de caça. Quando padre Pirrone ao saber das inclinações políticas do príncipe de apoiar a união da Sicília afirma indignado “Em poucas palavras então os senhores vão se mancomunar com os liberais! ... até mesmo com os maçons à custa da igreja. .... O senhor sarava os cegos do corpo; mas onde vão parar os cegos de espírito?”

“Não somos cegos, caro padre, somos somente homens. Vivemos uma realidade móvel a qual tentamos nos adaptar assim como as algas se dobram ao impulso do mar. À Santa madre Igreja foi explicitamente prometida a imortalidade; a nós como classe social não. Para nós um paliativo que promete durar cem anos equivale a eternidade” (p. 80).

Belo e triste, o romance exige dedicação na leitura pois cada situação tem vários significados e, por isso mesmo, fonte de debates. A beleza da narrativa se expressa nos sutis jogos de palavras e ironia das situações. Não nos admira que o romance ainda seja fruto de interpretações e polêmicas. O príncipe é mordaz e irônico com todos, inclusive consigo mesmo. Assim desagradou a nobreza, a igreja, os novos ricos, os “revolucionários”, e os sicilianos.

Visão muito cética da humanidade “tudo deve mudar para ficar como está”.

O Leopardo foi filmado por Luchino Visconti e considerado um dos melhores filmes do diretor. Príncipe de Salinas, interpretado por Burt Lancaster, Angelica por Claudia Cardinale e Trancredi  por Alan Delon.