domingo, 12 de março de 2023

Soldados de Salamina - Javier Cercas (2001)

 por Daniela Lopes

Guernica, Pablo Picasso (1937)

Javier Cercas Mena é um escritor e tradutor espanhol nascido em 1962, na cidade de Ibahernando, província de Cáceres. Doutor em Filologia Hispânica pela Universidade Autônoma de Barcelona, é colaborador do jornal El País desde 1999, e atuou como professor nas universidades de Illinois nos Estados Unidos e de Girona na Cataluña. Soldados de Salamina foi publicado em 2001, seu quarto romance, e foi o que o tornou conhecido, premiado e traduzido em mais de 30 países. Entre 2001 e 2005 o livro vendeu mais de 1 milhão de cópias, tendo recebido elogios de escritores como Mario Vargas Llosa (https://elpais.com/diario/2001/09/03/opinion/999468046_850215.html#?prm=copy_link), J. M. Coetzee e Susan Sontag. Desde então, Cercas se dedica exclusivamente à escrita literária e à produção de artigos para a imprensa sobre os debates culturais e políticos na Espanha.

Em 2003, Soldados de Salamina foi adaptado, com o mesmo título, para o cinema pelo cineasta espanhol David Trueba, o que rendeu também um outro livro-ensaio, “Diálogos de Salamina”, em que Cercas e Trueba passeiam pelos cruzamentos de linguagens do cinema e literatura na experiência de transpor o livro para a tela.

Nesses ‘Diálogos’, Cercas-autor pontua que a narrativa não é sobre a Guerra Civil Espanhola:

La novela, básicamente, habla de los héroes, de la posibilidad del heroísmo; habla de los muertos, y del hecho de que los muertos no están muertos del todo mientras haya alguien que los recuerde; habla de la búsqueda del padre, de Telémaco buscando a Ulises; habla de la inutilidad de la virtud y de la literatura como única forma de salvación personal...

Javier Cercas, Diálogos de Salamina (2003)

Mas é inegável que a Guerra Civil (1936-1939) e os 37 anos do reinado franquista são mais do que pano de fundo na obra de Javier Cercas, que é filho de pai e mãe simpatizantes do falangismo. Vários de seus outros romances (como Anatomia de um Instante e Rei das Sombras) desfiam e desafiam a narrativa oficial (institucional e familiar) da história espanhola no século XX e as cicatrizes do fascismo que marcam aquela sociedade até hoje, propondo a ficção literária como única mentira que nos leva à verdade. (https://www.youtube.com/watch?v=8_PnzSMl2bA&t=276s)

Javier Cercas é autor e narrador-personagem de Soldados de Salamina, nesse livro classificado por uns como faction (fact + fiction) ou narrativa híbrida e também visto como uma metaficção historiográfica. Cercas-personagem persegue uma narrativa real, um relato real com base em atividade investigativa, que no entanto só se completa, quando o Cercas-autor preenche as lacunas com a ficção e heróis desconhecidos e esquecidos.

A obra é dividida em três partes. A primeira parte, ‘Amigos do Bosque’, versa sobre como o Cercas-narrador, um escritor frustrado que não se acha mais escritor, se aproxima e fica curioso sobre a trajetória de vida de Rafael Sanchez Mazas, ideólogo falangista e ‘também em relação à Guerra Civil, da qual até aquele momento não sabia mais do que sabia sobre a batalha de Salamina ou sobre o uso exato da plaina...”. O título do livro deriva dessa batalha no estreito de Salamina, batalha naval crítica em que os gregos venceram os persas. Sanchez Maza tinha um interesse particular nessa batalha e pretendia escrever um livro sobre ela. Mas aparentemente a escolha de Cercas pelo título é uma forma sutil de abordar um assunto, o da Guerra Civil, que ficou por muito tempo abafado na sociedade espanhola e só começou a ser revisitado após a morte de Franco.

Cercas-narrador se pergunta como um escritor, homem culto e bem-educado se dedica a construir uma estética e moral fascista; depois fica intrigado com o relato do filho de Sanchez Mazas sobre como o pai escapou do fuzilamento no Collel. Como um detetive, através de conversas com estudiosos, parentes e outros personagens ainda vivos, o narrador vai, de uma forma quase obsessiva, montando os pedaços do episódio do fuzilamento no Collel, quando os republicanos, já quase no final da guerra, reúnem em uma clareira expoentes importantes dos falangistas nacionalistas e os fuzilam. Sanchez Mazas escapa para dentro do bosque e é achado por um jovem soldado republicano, que o vê mas não o mata ou denuncia. O escritor então vaga pelo bosque e recebe ajuda de uma família da comunidade local e de soldados republicanos desertores, ‘os amigos do bosque’.

Na segunda parte, que tem o mesmo título do livro, é desenvolvida a narrativa sobre Sanchez Mazas, com os detalhes de sua vida, carreira literária e política antes e depois do episódio do Collel, os relatos dos amigos do bosque, seu apoio ao Generalíssimo Franco e seu ofuscamento depois, nos seus últimos 20 anos de vida. É o livro dentro do livro, como uma crônica que deixa transparecer o espírito do tempo, como forma de trazer à superfície as circunstâncias e barbaridade da guerra por meio de um episódio obscuro da vida de um dos personagens do falangismo.

Na terceira parte, ‘Encontro marcado em Stockton’, encontramos Cercas-personagem já tendo desistido do livro sobre Sanchez Mazas, entrevistando o escritor chileno Roberto Bolaño, que lhe conta sobre um homem extraordinário que conheceu quando jovem em um camping em que trabalhava de vigia no interior da França. Miralles tinha sido soldado na Guerra Civil, lutado ao lado general republicano Lister, e depois em batalhas da Segunda Guerra pelas tropas francesas na África e na França. Detalhes contados por Bolaño nessa ocasião levam o narrador a acreditar que Miralles poderia ser o soldado que poupou a vida de Sanchez-Maza. Movido pela questão do que pensou esse soldado naquela hora em que poderia ter eliminado um dos mais importantes arquitetos do fascismo espanhol, Cercas vai encontrar Miralles em uma casa de repouso em Dijon para lhe fazer essa pergunta e entender-se de novo como escritor.

Nomes, lugares, pessoas e acontecimentos reais fazem parte da narrativa oficial da história, em tempos de guerra ou em tempos de paz. Mas não é toda a história. Em geral deixa para trás, sem reconhecimento e invisíveis, as inúmeras memórias individuais ou familiares, versões, e feitos heróicos dos que não foram os vencedores e dos que nem estavam interessados na guerra. “Desde que a guerra terminou não se passou um só dia sem que eu pensasse neles. Eram tão jovens... Morreram todos. Todos mortos. Mortos. Mortos. Nenhum provou as coisas boas da vida: nenhum teve uma mulher só para ele. Nenhum conheceu a maravilha de ter um filho nem viveu a maravilha de ter esse filho, com três ou quatro anos, se enfiando em sua cama, entre sua mulher e ele, num domingo de manhã, num quarto com muito sol.” O Miralles ficcional de Cercas não se via como herói, era ‘um homem acabado que teve a coragem e o instinto da verdade e por isso não errou nunca ou não errou no único momento em que de fato importava não errar’.

_____________

Há bons recursos para quem se sentir curioso sobre a obra de Javier Cercas:

Victor Lemus. Un secreto esencial: Literatura y memoria histórica en Soldados de Salamina, de Javier Cercas. UFRJ Ipotesi – Revista de Estudos Literários, vol 11 (2), 2007.

https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/view/19349

 Aurelio Ramos Caballero. THE SPANISH CIVIL WAR IN CONTEMPORARY SPANISH FICTION: SOLDADOS DE SALAMINA, LA MULA AND LOS GIRASOLES CIEGOS. University of Birmingham. M.Phil. 2010. https://etheses.bham.ac.uk/id/eprint/417/

 Vinicius Gonçalves Mazzini. O EX-CÊNTRICO COMO HERÓI: UMA COMPARAÇÃO ENTRE JOÃO TORDO E JAVIER CERCAS. UFGD, 2021.

https://repositorio.ufgd.edu.br/jspui/bitstream/prefix/5278/1/ViniciusGon%C3%A7alvesMazzini.pdf