Comentários: Ana Studart
Salvatierra, de Pedro Mairal, é um livro muito festejado no meio literário.
Segundo Mairal, a ideia de escrever esse livro surgiu ao assistir na televisão um documentário sobre o pintor Jackson Pollock, que um dia não conseguiu mais pintar, ficou paralisado, por excesso de exposição. Então lhe veio a ideia de Salvatierra, um artista plástico autodidata desbloqueado, que pinta todo dia. Um pintor que não almeja sucesso e vai pintando um quadro infinito, sem interrupções, num galpão. E pinta para ele, sem desejar tornar sua obra pública.E logo lhe surgiu o personagem central, que seria mudo, e assim usaria sua arte como meio de expressão. [http://pedromairal.blogspot.com].
Sobre o enredo: Escolhi comentar Salvatierra pelo tema inusitado. Uma criança que, por acidente, fica muda, e vai crescendo como uma pessoa à margem da família, quase um bobo - nas palavras de Mairal, visto quase como um “ freak” Apesar disso, Salvatierra se casa e tem três filhos- Miguel, Luís e Estela, que faleceu prematuramente,
A história acontece num pequeno povoado argentino, Barrancales, na proximidade de um rio que faz fronteira com o Uruguai- o Rio da Prata. O enredo se desenvolve de maneira despretensiosa - o simples contar de uma historia que se desenrola como o curso de um rio, o mesmo rio que povoa as pinturas de Salvatierra.
As pinturas de Salvatierra parecem formar uma biografia, um diário interessante produzido por uma pessoa muda, que só se revela ao mundo após a sua morte, quando os filhos Miguel e Luis encontram num galpão os rolos de tela intermináveis. Eles mostram, em desenhos, ano a ano, os sessenta anos da vida desse homem, uma vida que acaba se revelando surpreendente.
Querendo divulgar a obra do pai, os filhos, depois de várias tentativas, recebem uma oferta do livro de recordes, (seria o quadro mais longo do mundo, com quase 4 kms de extensão),mas optam por vender a obra a um museu em Amsterdã, que a digitaliza e envia para a Holanda, pouco antes de um incêndio em Barrancales transformá-la em cinzas…
O povoado de Barrancales que ambienta o livro, foi criado pelo autor, e apresenta a vida numa cidade interiorana da Argentina, onde a lei nem sempre é respeitada, e a burocracia é um obstáculo difícil de ser superado. É interessante a comparação que Miguel faz de Barrancales cheia de cores nas pinturas do pai, com as vidas cinzentas que ele e Luis vivem em Buenos Aires:
“Como havia sido a vida do meu pai? Por que ele precisou assumir esse trabalho tão imenso? O que tinha acontecido comigo e com Luís para acabarmos assim, vivendo essas vidas tão cinzentas e tão portenhas, como se Salvatierra tivesse monopolizado todas as cores disponíveis? Parecíamos mais vivos na luz da pintura, em alguns retratos que ele fizera de nós aos dez anos, comendo peras verdes, do que agora, na nossa vida de cartórios e contratos. Era como se a pintura tivesse engolido nós dois, Estela e mamãe.”
O livro se concentra no relacionamento entre pais e os filhos, que crescem e vão para longe, para estudar e trabalhar, e se desconectam da vida que tinham anteriormente. Se afastam dos pais, que reencontram apenas em datas festivas. A pergunta de Miguel, “Como havia sido a vida do meu pai? Por que ele precisou assumir esse trabalho tão imenso?” mostra uma realidade, que ele lamenta. E vai conhecendo o pai através das telas, que retratam a fase em que conheceu a esposa, Helena Ramirez, o casamento, o grande incêndio, estudos com plantas e insetos, o rio, a filha Estela morta afogada, descrita assim, em outra primorosa passagem:
“Salvatierra queria pintar a força do rio na sua tela e o rio lhe pedira em troca sua filha de doze anos. O rio a levava devagar, porém implacavelmente, sem que ele pudesse dete-lo E foi assim que a pintou: Estela afogada no remanso dos salgueiros”. Mais adiante, Miguel comenta o efeito dessa morte na mãe; “Com os anos, foi ficando cada vez mais seca e severa. A morte da minha irmã a endureceu para sempre. Nunca mais a vimos sorrir”.
As telas continuam surpreendendo Miguel, e seleciono esse trecho para transcrever- “…nunca tive vontade de pintar. Sempre senti que não havia nada que não estivesse pintado por ele.Lembro-me de ter-lhe mostrado um rabisco que fiz aos dez anos, de submarinos e foguetes. Eu estava orgulhoso de como eles tinham ficado. Uma semana depois entrei no galpão e os encontrei pintados na sua tela, o submarino e o foguete, gigantescos e mais coloridos, e minha sensação não foi de que ele havia me copiado, mas de que eu os copiara dele, sem saber.”
O capitulo 28 é o que mais revela esse descompasso familiar: o desejo de Miguel de se afastar de Barrancales e dos pais, e o amor que Salvatierra sentia pelos filhos.
“ Primeiro Luís tinha ido embora para Buenos Aires, e pouco depois, eu. Supostamente ia para estudar mas eu queria era fugir de Barrancales, da casa, e sobretudo, do quadro, do vórtice do quadro que eu sentia que ia me engolir para sempre… Salvatierra tinha pintado minha fuga como se quisesse me proteger…porque as janelas do trem se transformavam depois nas janelas do prédio da faculdade, e ali estava eu de novo, seu filho caçula… Fiquei impressionado por Salvatierra pensar tanto em mim. Fiquei impressionado por me ver através dos olhos dele, pois dava para notar o quanto sofrera com minha partida. Senti que ele me falava com seu quadro e vencia o silêncio enorme que existira entre nós dois. Agora ele me falava com amor de sua pintura, e me dizia coisas que nunca havia conseguido dizer."
Sobre o autor: Pedro Mairal nasceu em 27 de setembro de 1970, e é escritor, poeta e músico. Publicou mais de uma dúzia de livros, entre eles La Uruguaya, vencedor do premio Juan Tigre em 2017 e já traduzido para vários idiomas. O romance Salvatierra foi escrito em meados de 2000 e lançado na Argentina em 2008. Chegou ao Brasil em 2021. Tanto no romance A Uruguaia quanto no romance Salvatierra, os personagens de Mairal cruzam o Rio da Prata, e,curiosamente, depois deles, cruza o rio o próprio Mairal, que há poucos anos se mudou para o Uruguai com a família. Ele explica assim: “Nos meus livros, cruzar o rio até o Uruguai é quase uma travessia metafísica, como Alice atravessando o espelho.”
Mairal quis ser médico, mas foi derrotado pelas ciências, em suas próprias palavras. Gostava também de escrever, de fazer poesias. Quando a família descobriu que ele matava as aulas da faculdade, Pedro pediu para cursar letras, mais a seu gosto. Pediu aos pais que assistissem ao filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, onde um jovem se mata porque os pais o proíbem de seguir a carreira teatral….Depois de ver o filme os pais, impressionados, concluíram que seria importante o filho estudar o que quisesse. Mas segundo Mairal, ele nunca pensou em se suicidar, "foi apenas uma manipulação que deu certo"…
Nas palavras de Pedro Mairal: “Meu desejo de escrever sempre me levou a superar obstáculos. Sou capaz de mover montanhas para escrever. É minha vocação, meu chamado”.
Sobre o romance: Salvatierra contém 112 páginas e foi publicado Brasil em 2021 pela Editora Todavia. São ao todo 39 capítulos,
O PDV é de Miguel, filho de Juan Salvatierra, e narrador da obra. A capa do livro, de Julia Masagão mostra rolos e rolos de tela para pintura, em vermelho, sobre fundo preto, já apresentando o tema do livro. E o capítulo I, curiosamente, começa contando o seu final:
“O quadro (sua reprodução) está no Museu Roell….descendo as escadas você pensa que chegou a um aquário…por toda a parede …de quase trinta metros, o quadro vai passando como um rio…há um banco em que as pessoas sentam para descansar e olham o quadro passar lentamente…quase 4 quilômetros de imagens.”
Seu texto tem ritmo, suas descrições e reflexões, são, muitas vezes, deliciosas, como essa:”…no quadro não há um único autorretrato. Ele não aparece em sua própria pintura. Nessa espécie de diário pessoal em imagens, ele mesmo não figura. É como escrever uma autobiografia em que você não esteja.”
Seria longo demais pinçar todos os parágrafos líricos, que tornam a leitura tão leve e interessante, então me limito a recomendar a leitura desse livro, que deixa a gente com o desejo de quero mais.
Devo ainda dizer que Salvatierra não é um livro que “pega a gente”, daqueles que não se consegue parar a leitura. Apesar de não ser volumoso, é para ser lido devagar, apreciando seu desenrolar. Mesmo quando os filhos de Salvatierra Miguel e Luís, descobrem que misteriosamente, falta uma parte da obra, um ano de vida do pintor, o de 1961, e começam a investigar o porquê, o suspense é calmo e vai se resolvendo em doses homeopáticas. Posso dizer que os filhos descobrem, depois de inúmeros percalços, o rolo de pintura referente ao ano de 1961 que faltava, mas prefiro não revelar ao leitor o seu conteúdo…porque melhor mesmo é ler o livro.