terça-feira, 13 de dezembro de 2022

O Homem que sabia javanês - Lima Barreto


Por Cristiane Vianna Rauen

A escolha desse conto não poderia ser mais oportuna, pois, este ano marca o centenário da morte de Afonso Henriques de Lima Barreto, jornalista e escritor brasileiro, com vasta produção literária no início do século XX.

Nascido em 1881, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, Lima Barreto era neto de escravos de ambos os lados e presenciou, aos 7 anos, a abolição da escravatura com seu pai, no Paço Imperial.

Por ser afilhado de visconde, obteve boas oportunidades de estudo, como o Colégio Pedro II e a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde cursou engenharia. Em 1904, assumiu um posto de trabalho no Ministério da Guerra, onde permaneceu até sua aposentadoria. Em paralelo ao cargo burocrático, exerceu a função de jornalista, e foi nesse meio que deu início a sua produção literária.

Sua obra de estreia, em 1909, foi “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, que, em tom autobiográfico, retrata a vida de um jovem mulato que sofre preconceitos raciais. Em 1915, publicou sua obra mais conhecida “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, que descreve a vida política brasileira após a Proclamação da República, por meio da visão de um funcionário público ultranacionalista.

Barreto sempre se apresentou como escritor negro e sempre escreveu para as massas. Em vários momentos recebeu críticas por eventual descuido com o português culto em sua linguagem escrita, no entanto, essa foi uma reconhecida estratégia do autor para chegar ao público mais amplo. 

Sua obra ganhou maior reconhecimento após sua morte, quando o jornalista Chico Barbosa iniciou, em 1946, um projeto de edição das obras completas de Lima Barreto. A coleção foi lançada pela Editora Brasiliense, sob o comando do historiador Caio Prado Júnior, com prefácios que contaram com nomes influentes à época, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

Nesse período, Lima Barreto foi reconhecido como precursor de grandes obras populares e críticas duras à política e à burguesia brasileira. Muitos analistas o identificavam com um escritor ressentido de sua origem e raça.  

E foi assim que a obra de Lima Barreto passou a ser reconhecida, a partir da edição de suas obras, na década de 1950: “frequentemente associada a uma percepção da realidade social brasileira vista de baixo para cima, ‘julgando os poderosos pela indignação dos injustiçados’, como sugeriu o historiador Nicolau Sevcenko” (Piauí, Ed. 194, nov. 2022).

A tentativa de editar as obras de Barreto não foi tarefa fácil já que muitas editoras do pós-guerra as viam um “mau negócio”, principalmente devido a seu tom anti-americano, muito focado em questões raciais e, por vezes, pró revolução bolchevique.

Lima Barreto foi retratado, durante muitos anos após a reedição de suas obras, como um “mulato ressentido”. No entanto, uma geração de novos escritores buscou, a partir dos anos 1980, reinterpretar as obras de Barreto sob um diferente prisma: não o do mulato ressentido, mas o do “típico brasileiro submetido a fortíssimas pressões raciais” (Piauí, Ed. 194, nov. 2022).

A mais recente biografia dedicada a Lima Barreto, da historiadora Lilia Schwarcz (“Lima Barreto: Triste Visionário”, de 2017) também surge como contraponto à visão dos historiadores de Barreto no pós-guerra. Ao invés de um triste e ressentido escritor, Lima Barreto retratado como um visionário, em particular por seu pioneirismo em inserir a pauta antirracista em textos do começo do século XX e de seu reconhecido diálogo e preferência pelas questões relacionadas ao público não erudito.

Não à toa, Lima Barreto foi o autor homenageado na Flip de 2017 e, neste ano, tivemos como homenageada a primeira autora negra a publicar uma obra no Brasil, Maria Firmina dos Reis, com sua “Úrsula”, de 1859. 

Sobre o conto

Publicado pela primeira vez no jornal “Gazeta da Tarde” do Rio de Janeiro, em 28 de abril de 1911, e posteriormente incluído na coletânea “O homem que sabia javanês e outros contos”, o conto traz a história narrada por Castelo ao amigo Castro do golpe que ele aplicou num barão que queria aprender javanês. O golpe acabou rendendo a Castelo um cargo público diplomático e Castelo narra o feito com grande orgulho.

O Barão em questão era o Barão de Jacuecanga, que herdara do avô um livro em javanês, que, dizia-se, trazia fortuna e prosperidade a quem o lesse. O livro foi sendo passado de pai para filho, até que chegara o momento da velhice do Barão e do seu interesse em lê-lo para não interromper o ciclo de prosperidade da família. O Barão, então, coloca um anúncio no jornal em busca de um professor de javanês que pudesse auxiliá-lo na empreitada.

Eis que Castelo lê o anúncio e, apesar de não saber javanês e diante da suposição de que não haveria grandes concorrentes ao posto, identifica a oportunidade de ganhar algo com isso, já que estava em completa miséria naquele momento.

A história é narrada de maneira divertida, irônica e debochada. Mostra como Castelo consegue, com destreza e um pouco de sorte, convencer todos ao redor do Barão de que sabia javanês de fato, incluindo o seu genro, desembargador muito bem relacionado, que, admirado pelo javanês de Castelo, o recomenda ao Visconde de Caruru para um posto na Secretaria dos Estrangeiros.

A partir daí, o reconhecimento e a fama de Castelo só cresceram, a ponto de escrever colunas em jornais sobre a literatura javanesa antiga e moderna, e ser indicado a representar o Brasil num congresso internacional de linguística. No retorno do congresso, foi recebido no cais do porto com festa pelas massas e convidado a almoçar com o presidente da república.

No diálogo final de Castelo e Castro, Castelo se mostra bastante satisfeito com a posição de Consul em Havana, onde morou por mais de 6 anos, mas indaga ironicamente ao amigo que, caso não estivesse feliz com tudo o que havia conquistado, poderia tentar a carreira de “bacteriologista eminente”. 

Esse divertido conto de Lima Barreto traz uma crítica importante a uma sociedade brasileira supersticiosa e preconceituosa, formada por intelectuais oportunistas, por uma burocracia medíocre e por anti-heróis, que não têm vergonha de se vangloriar da desonestidade. 

Acima de tudo, “O homem que sabia javanês” é uma crítica à elite brasileira e, a partir desse conto, Lima Barreto expressa toda a sua indignação aos inúmeros “professores de javanês” que o Brasil já indicou a representações internacionais. Postos esses aos quais Barreto jamais fora indicado, tendo, fatidicamente, terminado seus dias num manicômio.  

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto”, Rui Barbosa, 1914.