Por Maria Albeti
Tudo é Rio, livro de estreia da jornalista e publicitária mineira Carla Madeira, foi lançado, em 2014, pela editora independente Quixote+Do, de Belo Horizonte. Posteriormente, em fevereiro de 2022, ganhou nova edição pelo Grupo Editorial Record. De acordo com a Lista Nielsen-PublishNews, que elabora a relação dos livros de ficção, de autores nacionais, mais vendidos, nas livrarias em todo o país, o livro Tudo é rio tem obtido excelentes colocações. Em março de 2022, ficou na nona colocação e em setembro último alcançou a segunda colocação.
Carla Madeira entrou na literatura por meio da música, mais especificamente da Música Popular Brasileira (MPB). Começou a escrever para experimentar a musicalidade das palavras. Depois de uma pausa de 14 anos, após escrever o capítulo que foi colocado no início do livro (capítulo 3), escreveu durante oito meses, praticamente todos os dias.
O livro tem capítulos curtos e linguagem simples que permitem uma leitura rápida. Principalmente nos capítulos em que aparece a prostituta Lucy, a autora não faz concessões, usa linguagem direta, sem subterfúgios, para descrever as cenas de sedução e sexo. Os diálogos são apresentados sem identificação específica, mesclando a voz da autora com a fala dos personagens. Não existe a forma tradicional de utilização do travessão (−), nem aspas (“”) como ocorre na maioria dos livros e/ou contos. Destaca-se um capítulo com uma única palavra “dor”, um recurso bastante interessante que possibilita ao leitor dar “asas” à imaginação.
O romance concentra-se em três personagens, que vivem em uma pequena cidade, localizada em qualquer lugar deste país: a puta Lucy, como ela prefere se identificar, e o casal formado por Dalva e Venâncio. Existem outras narrativas, secundárias, que se entrelaçam com a vida dos personagens centrais, mostrando acontecimentos que deixaram marcas na personalidade de cada um deles, influenciaram o comportamento e definiram seus destinos.
Assim, a autora caracteriza os personagens a partir daquelas narrativas, do ambiente familiar em que cada um deles foi criado, com suas alegrias, tristezas, rejeições e violência. Todos esses aspectos moldaram a forma de sentir e agir desses personagens e maneira como se relacionam com as demais pessoas.
Lucy é uma prostituta que se destaca pelo comportamento atrevido, despudorado e arrogante. Filha única, teve uma infância feliz, até perder pai e mãe, ao mesmo tempo. Passa a ser criada pela tia, que tem duas filhas, e em relação às quais se sente preterida. Nesse ambiente, nasce e cresce o sentimento de raiva e o rancor por tudo em que a tia acredita e, em consequência, o desejo de vingança. Descobre que pode usar seu corpo para executar sua vingança, a começar pela conquista do marido da tia.
Segura do que quer e pode fazer com seu corpo, planeja sua despedida com o tio, quando são descobertos pela própria tia. É expulsa de casa e vai residir em outra pequena cidade, onde sua fama já é conhecida. Assim consegue obter todas as regalias na Casa de Manu, onde vai morar e trabalhar. Decide se tornar prostituta, não por necessidade, mas por prazer, quer ser uma “puta feliz”.
Lucy se orgulhava de gostar de ser puta, mas acima de tudo ela gostava de exercer o poder sobre os homens, muitos dos quais ela tripudiava, e sobre as mulheres, que ela humilhava. Esse comportamento deve estar relacionado ao sentimento de rejeição que sofria na casa da tia.
Venâncio, também, filho único, vive em uma família marcada pela tirania e violência do pai, sente medo, vergonha, revolta e raiva. A mãe temendo que algo possa acontecer, entre pai e filho, prefere afastá-lo desse ambiente familiar conturbado. Fica morando com uma tia e retorna para a cidade, quando seu pai já se encontra moribundo. Mostra-se um rapaz trabalhador e responsável, mas sempre calado, distante e dono de uma tristeza profunda.
Dalva vive em uma família alegre, com vários irmãos e irmãs, onde a música está sempre presente. Tem uma mãe compreensiva, acolhedora que consegue compreender os dilemas e as dificuldades não só da família, mas das pessoas que vivem ao seu redor. Dalva e Venâncio se apaixonam, se casam e passam a viver um em função do outro, em um clima de plena entrega e felicidade. Porém, sobre eles “Paira, monstruosa, a sombra do ciúme” (Caetano Veloso)
Esse sentimento começou a se tornar mais forte quando Dalva engravidou e Venâncio viu, pela primeira vez, ela amamentar a criança. Sentiu-se roubado, traído e num rasgo de loucura pega a criança, joga longe e espanca Dalva. A partir desse momento, começa o inferno para os dois. Com a perda do filho e a violência de Venâncio se estabelece um muro entre eles. Continuam na mesma casa, mas nem ao menos se olham, não se acusam, impera o silêncio e o desprezo por parte de Dalva. A autora explica o comportamento violento de Venâncio como resultado do seu relacionamento com o pai. Assinala que “[...] no fundo estamos presos à incapacidade de ser outra coisa diferente do que somos, do que a história da gente tramou” (p. 156)
Com o passar dos anos, Venâncio começa a frequentar a Casa de Manu e torna-se um enigma e, também, um desafio para Lucy, que não consegue tê-lo na cama. Acaba se apaixonando por ele, que depois de muitas negativas acaba cedendo e se torna seu parceiro por alguns dias. Lucy, apaixonada e grávida, começa a fazer planos de vida em comum com Venâncio. Porém, tudo acabou, também, com violência, sendo salva por Dalva, a quem ela muitas vezes tinha agredido, inclusive fisicamente.
Nasce o filho de Venâncio e Lucy que ela entrega para Dalva criar. Essa criança traz vida nova para Dalva e para Venâncio, que, ainda de maneira tímida, começam a quebrar a barreira que existe entre eles. E nesse momento de renascimento, eis que surge a grande surpresa do livro, Vicente, o filho que Venâncio “jogou fora” está vivo. Dalva soube disso algumas semanas depois do que aconteceu, mas preferiu manter o filho com uma amiga de sua mãe, indo visitá-lo todos os dias.
E nesse momento, surge a questão: Dalva é a única entre os personagens centrais que teve uma família ajustada, foi criada em um ambiente amoroso e leve. Então, por que manteve esta situação? Por que não foi embora, morar com seus pais, levando a criança? Para castigar Venâncio? Por que se martirizava dessa maneira?
Parece que “Viver a ressureição do filho não foi suficiente para cancelar o que tinha sido posto em andamento. Dalva não sabia interromper a morte que se apossou dela. Continuou arrastando a corrente pesada e infeliz que prendia Venâncio e ela naquele inferno” (p.197).
O livro aborda questões como ciúme, abandono, violência doméstica, entre outros. A autora pretende mostrar que somos todos capazes do bem e do mal. Carla Madeira mostra talento, nesse seu primeiro livro, com possibilidade de se tornar uma escritora de sucesso na cena contemporânea.
Algumas frases que merecem destaque:
“Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar. Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo” (p. 19)
“A loucura começa como a doença, miúda. Vai se alastrando célula a célula, ocupando tudo, destruindo a saúde, acabando com a vida de quem não encontra recurso para deter os pensamentos ruins, fazedores dos mais profundos infernos” (p. 20)
“[...] o ciúme pode destruir qualquer amor. Dá muito trabalho não deixar ele devorar a alegria de ficar junto” (p. 103)