terça-feira, 9 de agosto de 2022

A senhoria - Fiódor Dostoievski

Por Lenita Turchi


Em 1857, Dostoievski escreve ao seu editor, após o sucesso “Gente pobre “, para solicitar mais tempo e recursos para terminar “A senhoria” usando a seguinte justificativa:

Para manter minha palavra e entregar o texto no prazo, eu me violentava e escrevia coisas tão ruins como “A senhoria”, o que me levou a mergulhar na perplexidade e na auto difamação a ponto de que, por muito tempo, não escrever nada bom e adequado. Cada um dos meus fracassos desencadeava em mim uma doença.”[1]

De fato, Gente pobre, foi considerado o primeiro romance social russo que entusiasmou desde a primeira leitura Bielinski, um dos críticos mais severos da literatura russa da época. Nasceu um novo Gogol dizem os amigos que de madrugada levam a visão do crítico para Dostoievski. Afinal, quem é esse escritor que foi capaz de aos 25 anos, escrever uma novela com tamanha compreensão da vida e do sofrimento?

Dostoievski; origem e contexto histórico

Fiódor Dostoievski é de origem nobre russa, uma nobreza sem recursos, mas que teve acesso à educação.  Dostoievski era filho de médico, alcoólatra e de uma mãe culta que amava livros, gostava de poesia e cantava. Segundo o historiador Virgil Tanasse. analisando cartas de Dostoievski para seu irmão Andrei, os pais são descritos pelo autor como “a frente do seu tempo “essa ideia de querer estar sempre entre os melhores (no sentido literal o mais elevado do tempo) foi o princípio fundamental do nosso pai e nossa mãe apesar de todos os desvios”.

A noite os pais se revezam na leitura dos grandes autores da época: Derzhavin, Jukokvi, Púnchin e Karamzin / História da Rússia, autores que fazem apologia da mãe Rússia e da aristocracia imperial. É alfabetizado pela mãe usando a Bíblia e essa religiosidade perpassa toda sua obra literária. Ao mesmo tempo é fascinado pelos contos populares que as servas da casa contavam e que mais tarde usará para construção de personagens e ambientes em seus escritos.

Desde a infância o autor é exposto a diversidade social cultural da Rússia, convive com pais letrados e servos que contam estórias místicas e lendas das diferentes regiões da Rússia. Na juventude já escritor, na condição de preso exilado, Dostoievski conhece a miséria a que era submetida o povo russo, assim como a repressão czarista aos movimentos populares que buscavam mudanças econômico socais.

Aos 18 anos ainda cursando engenharia militar escreve para seu irmão “O homem é um mistério que precisa ser elucidado. Mesmo que passemos a vida inteira isso, não devemos dizer que perdemos tempo. Estou ocupado com esse mistério porque quero ser um homem.”[2]

Em 1843 termina os estudos, promovido a subtenente e nomeado para o Departamento de Plantas da Direção de Engenharia de São Petersburgo. Trabalha, lê escreve, esbanja, é generoso e em 1844 escreve seu primeiro romance/ novela. O sucesso o introduz no mundo literário e na roda viva de festas, dívidas e promessas aos editores. Frequenta reuniões literárias e políticas e participa de sociedades secretas para discutir sobre literatura e arte. Numa destas reuniões, declama o poema de Púchin, “O campo”, que termina com a pergunta retorica “Quando ó vou ver meus amigos, o povo libertado da opressão”

A abolição da monarquia na França e a contestação dos regimes autocráticos de outros países europeus são a fonte de inspiração dos movimentos de oposição na Rússia tzarista. Os movimentos libertários, da Rússia tzarista, no período da juventude de Dostoievski, são liderados por pessoas dos segmentos médios e pobres que tiveram oportunidade de estudar e seguir carreiras administrativas. Dado a necessidade de uma elite administrativa capaz de gerir o vasto império o tzar Nicolau I, permitiu e mesmo incentivou que jovens oriundos de camadas pobres e médias a estudarem e seguir carreiras que eram exclusivas da nobreza. Os movimentos revolucionários deste período são apoiados e mesmo, em alguns casos, liderados por esses jovens educados para defender uma classe a que não pertencem.

Em abril de 1849, Dostoievski é julgado e condenado a ser fuzilado. No último momento a pena é comutada e o autor passará 10 anos na Sibéria, sendo que destes, quatro anos esteve preso e isolado tendo com possiblidade de leitura apenas a Bíblia. Segundo Virgil Tanase [3] a vida e obra do Dostoievski se confundem a tal ponto que:

“Se tivesse escrito a própria biografia, a obra poderia passar, aos olhos de quem desconhece a história de sua vida como por de seus romances. A tal ponto o herói, paradoxal e de atitudes tão surpreendentes, encontra-se as voltas com histórias tão inverossímeis que parecem inventadas. Não são. Essas histórias vão submeter o escritor a provações terríveis: para sobreviver será obrigado a visitar recantos obscuros da alma, que escondem mecanismos do comportamento humano. Uma vez ali, Dostoievski aproveita para revelá-los, conduzindo os personagens, não causa espanto que as criaturas se pareçam com o criador, tão surpreendente profundas quando roçam os mistérios da existência, tão banais no dia a dia, em que são como ele, iguais a qualquer um”.[4]

A senhoria

O conto, A senhoria, se desenvolve em torno de 3 personagens centrais sendo 2 jovens, Vassili Ordínov, Katierina, e um velho, Muri, que não se sabe se é marido protetor ou carcereiro da bela Katierina.  O conto narra a estória do jovem Vassíli Ordínov, que após a morte da mãe, se isola num quarto alugado para se dedicar aos estudos e a busca de conhecimento. Quando a casa é vendida Vassíli, sai pela cidade a esmo buscado um novo lugar para morar e nestas andanças, já nos arredores da cidade, entra numa igreja e se depara com uma bela jovem rezando de forma mística e perturbadora. 

Vassili a segue em várias ocasiões, imaginado quem seria a jovem e o velho que a acompanha, e acaba alugando um quarto no pequeno cômodo do casal.  A trama se desenvolve neste local com foco na paixão do jovem Vassili por Katierina e a aura mística e fantasiosa que a jovem Katierina traz para a relação. O autor nos deixa em suspenso sobre quem é a senhoria e as relações dela com o marido, que as vezes é visto como protetor, outras como carcereiro e finalmente como uma vítima das alucinações de Katierina. Ou seria a senhoria uma síntese do misticismo, costumes e lendas do povo russo, que nos envolve em suas visões dantescas e mantem os leitores presos as suas teias?

Embora inicialmente o conto tenha sido recebido de forma pouco entusiasta pela crítica literária da época e mesmo Dostoievski o tenha considerado pouco relevante, o conto releva a capacidade do autor de captar a natureza humana na sua complexidade e contradições assim como explorar o rico universo das crenças e tradições russas.

Recomendo com entusiasmo a leitura do conto A senhoria.



[1] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270

[2] Correspondência de Dostoievski para seu irmão Andrei In Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270, p26

[3] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270.

[4] Idem. p106

 

A senhoria - Fiódor Dostoievski

Por Lenita Turchi



Em 1857, Dostoievski escreve ao seu editor, após o sucesso “Gente pobre “, para solicitar mais tempo e recursos para terminar “A senhoria” usando a seguinte justificativa:

Para manter minha palavra e entregar o texto no prazo, eu me violentava e escrevia coisas tão ruins como “A senhoria”, o que me levou a mergulhar na perplexidade e na auto difamação a ponto de que, por muito tempo, não escrever nada bom e adequado. Cada um dos meus fracassos desencadeava em mim uma doença.”[1]

De fato, Gente pobre, foi considerado o primeiro romance social russo que entusiasmou desde a primeira leitura Bielinski, um dos críticos mais severos da literatura russa da época. Nasceu um novo Gogol dizem os amigos que de madrugada levam a visão do crítico para Dostoievski. Afinal, quem é esse escritor que foi capaz de aos 25 anos, escrever uma novela com tamanha compreensão da vida e do sofrimento?

Dostoievski; origem e contexto histórico

Fiódor Dostoievski é de origem nobre russa, uma nobreza sem recursos, mas que teve acesso à educação.  Dostoievski era filho de médico, alcoólatra e de uma mãe culta que amava livros, gostava de poesia e cantava. Segundo o historiador Virgil Tanasse. analisando cartas de Dostoievski para seu irmão Andrei, os pais são descritos pelo autor como “a frente do seu tempo “essa ideia de querer estar sempre entre os melhores (no sentido literal o mais elevado do tempo) foi o princípio fundamental do nosso pai e nossa mãe apesar de todos os desvios”.

A noite os pais se revezam na leitura dos grandes autores da época: Derzhavin, Jukokvi, Púnchin e Karamzin / História da Rússia, autores que fazem apologia da mãe Rússia e da aristocracia imperial. É alfabetizado pela mãe usando a Bíblia e essa religiosidade perpassa toda sua obra literária. Ao mesmo tempo é fascinado pelos contos populares que as servas da casa contavam e que mais tarde usará para construção de personagens e ambientes em seus escritos.

Desde a infância o autor é exposto a diversidade social cultural da Rússia, convive com pais letrados e servos que contam estórias místicas e lendas das diferentes regiões da Rússia. Na juventude já escritor, na condição de preso exilado, Dostoievski conhece a miséria a que era submetida o povo russo, assim como a repressão czarista aos movimentos populares que buscavam mudanças econômico socais.

Aos 18 anos ainda cursando engenharia militar escreve para seu irmão “O homem é um mistério que precisa ser elucidado. Mesmo que passemos a vida inteira isso, não devemos dizer que perdemos tempo. Estou ocupado com esse mistério porque quero ser um homem.”[2]

Em 1843 termina os estudos, promovido a subtenente e nomeado para o Departamento de Plantas da Direção de Engenharia de São Petersburgo. Trabalha, lê escreve, esbanja, é generoso e em 1844 escreve seu primeiro romance/ novela. O sucesso o introduz no mundo literário e na roda viva de festas, dívidas e promessas aos editores. Frequenta reuniões literárias e políticas e participa de sociedades secretas para discutir sobre literatura e arte. Numa destas reuniões, declama o poema de Púchin, “O campo”, que termina com a pergunta retorica “Quando ó vou ver meus amigos, o povo libertado da opressão”

A abolição da monarquia na França e a contestação dos regimes autocráticos de outros países europeus são a fonte de inspiração dos movimentos de oposição na Rússia tzarista. Os movimentos libertários, da Rússia tzarista, no período da juventude de Dostoievski, são liderados por pessoas dos segmentos médios e pobres que tiveram oportunidade de estudar e seguir carreiras administrativas. Dado a necessidade de uma elite administrativa capaz de gerir o vasto império o tzar Nicolau I, permitiu e mesmo incentivou que jovens oriundos de camadas pobres e médias a estudarem e seguir carreiras que eram exclusivas da nobreza. Os movimentos revolucionários deste período são apoiados e mesmo, em alguns casos, liderados por esses jovens educados para defender uma classe a que não pertencem.

Em abril de 1849, Dostoievski é julgado e condenado a ser fuzilado. No último momento a pena é comutada e o autor passará 10 anos na Sibéria, sendo que destes, quatro anos esteve preso e isolado tendo com possiblidade de leitura apenas a Bíblia. Segundo Virgil Tanase [3] a vida e obra do Dostoievski se confundem a tal ponto que:

“Se tivesse escrito a própria biografia, a obra poderia passar, aos olhos de quem desconhece a história de sua vida como por de seus romances. A tal ponto o herói, paradoxal e de atitudes tão surpreendentes, encontra-se as voltas com histórias tão inverossímeis que parecem inventadas. Não são. Essas histórias vão submeter o escritor a provações terríveis: para sobreviver será obrigado a visitar recantos obscuros da alma, que escondem mecanismos do comportamento humano. Uma vez ali, Dostoievski aproveita para revelá-los, conduzindo os personagens, não causa espanto que as criaturas se pareçam com o criador, tão surpreendente profundas quando roçam os mistérios da existência, tão banais no dia a dia, em que são como ele, iguais a qualquer um”[4].

A senhoria

O conto, A Senhoria, se desenvolve em torno de 3 personagens centrais sendo 2 jovens, Vassili Ordínov, Katierina, e um velho, Muri, que não se sabe se é marido protetor ou carcereiro da bela Katierina.  O conto narra a estória do jovem Vassíli Ordínov, que após a morte da mãe, se isola num quarto alugado para se dedicar aos estudos e a busca de conhecimento. Quando a casa é vendida Vassíli, sai pela cidade a esmo buscado um novo lugar para morar e nestas andanças, já nos arredores da cidade, entra numa igreja e se depara com uma bela jovem rezando de forma mística e perturbadora. 

Vassili a segue em várias ocasiões, imaginado quem seria a jovem e o velho que a acompanha, e acaba alugando um quarto no pequeno cômodo do casal.  A trama se desenvolve neste local com foco na paixão do jovem Vassili por Katierina e a aura mística e fantasiosa que a jovem Katierina traz para a relação. O autor nos deixa em suspenso sobre quem é a senhoria e as relações dela com o marido, que as vezes é visto como protetor, outras como carcereiro e finalmente como uma vítima das alucinações de Katierina. Ou seria a senhoria uma síntese do misticismo, costumes e lendas do povo russo, que nos envolve em suas visões dantescas e mantem os leitores presos as suas teias?

Embora inicialmente o conto tenha sido recebido de forma pouco entusiasta pela crítica literária da época e mesmo Dostoievski o tenha considerado pouco relevante, o conto releva a capacidade do autor de captar a natureza humana na sua complexidade e contradições assim como explorar o rico universo das crenças e tradições russas.

Recomendo com entusiasmo a leitura do conto A senhoria.



[1] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270

 [2] Correspondência de Dostoievski para seu irmão Andrei In Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270, p26

[3] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270.

[4] Idem. p106