Por Lenita Turchi
Em
1857, Dostoievski escreve ao seu editor, após o sucesso “Gente pobre “, para
solicitar mais tempo e recursos para terminar “A senhoria” usando a seguinte
justificativa:
“Para
manter minha palavra e entregar o texto no prazo, eu me violentava e escrevia
coisas tão ruins como “A senhoria”, o que me levou a mergulhar na perplexidade
e na auto difamação a ponto de que, por muito tempo, não escrever nada bom e
adequado. Cada um dos meus fracassos desencadeava em mim uma doença.”[1]
De
fato, Gente pobre, foi considerado o primeiro romance social russo que
entusiasmou desde a primeira leitura Bielinski, um dos críticos mais severos da
literatura russa da época. Nasceu um novo Gogol dizem os amigos que de
madrugada levam a visão do crítico para Dostoievski. Afinal, quem é esse
escritor que foi capaz de aos 25 anos, escrever uma novela com tamanha
compreensão da vida e do sofrimento?
Dostoievski;
origem e contexto histórico
Fiódor
Dostoievski é de origem nobre russa, uma nobreza sem recursos, mas que teve
acesso à educação. Dostoievski era filho
de médico, alcoólatra e de uma mãe culta que amava livros, gostava de poesia e
cantava. Segundo o historiador Virgil Tanasse. analisando cartas de Dostoievski
para seu irmão Andrei, os pais são descritos pelo autor como “a frente do seu
tempo “essa ideia de querer estar sempre entre os melhores (no sentido literal
o mais elevado do tempo) foi o princípio fundamental do nosso pai e nossa mãe
apesar de todos os desvios”.
A
noite os pais se revezam na leitura dos grandes autores da época: Derzhavin,
Jukokvi, Púnchin e Karamzin / História da Rússia, autores que fazem apologia da
mãe Rússia e da aristocracia imperial. É alfabetizado pela mãe usando a Bíblia
e essa religiosidade perpassa toda sua obra literária. Ao mesmo tempo é
fascinado pelos contos populares que as servas da casa contavam e que mais
tarde usará para construção de personagens e ambientes em seus escritos.
Desde
a infância o autor é exposto a diversidade social cultural da Rússia, convive
com pais letrados e servos que contam estórias místicas e lendas das diferentes
regiões da Rússia. Na juventude já escritor, na condição de preso exilado, Dostoievski
conhece a miséria a que era submetida o povo russo, assim como a repressão
czarista aos movimentos populares que buscavam mudanças econômico socais.
Aos
18 anos ainda cursando engenharia militar escreve para seu irmão “O homem é um
mistério que precisa ser elucidado. Mesmo que passemos a vida inteira isso, não
devemos dizer que perdemos tempo. Estou ocupado com esse mistério porque quero
ser um homem.”[2]
Em
1843 termina os estudos, promovido a subtenente e nomeado para o Departamento
de Plantas da Direção de Engenharia de São Petersburgo. Trabalha, lê escreve,
esbanja, é generoso e em 1844 escreve seu primeiro romance/ novela. O sucesso o
introduz no mundo literário e na roda viva de festas, dívidas e promessas aos
editores. Frequenta reuniões literárias e políticas e participa de sociedades
secretas para discutir sobre literatura e arte. Numa destas reuniões, declama o
poema de Púchin, “O campo”, que termina com a pergunta retorica “Quando ó vou
ver meus amigos, o povo libertado da opressão”
A
abolição da monarquia na França e a contestação dos regimes autocráticos de
outros países europeus são a fonte de inspiração dos movimentos de oposição na
Rússia tzarista. Os movimentos libertários, da Rússia tzarista, no período da
juventude de Dostoievski, são liderados por pessoas dos segmentos médios e
pobres que tiveram oportunidade de estudar e seguir carreiras administrativas.
Dado a necessidade de uma elite administrativa capaz de gerir o vasto império o tzar Nicolau I, permitiu e mesmo incentivou que
jovens oriundos de camadas pobres e médias a estudarem e seguir carreiras que
eram exclusivas da nobreza. Os movimentos revolucionários deste período são
apoiados e mesmo, em alguns casos, liderados por esses jovens educados para
defender uma classe a que não pertencem.
Em
abril de 1849, Dostoievski é julgado e condenado a ser fuzilado. No último
momento a pena é comutada e o autor passará 10 anos na Sibéria, sendo que
destes, quatro anos esteve preso e isolado tendo com possiblidade de leitura
apenas a Bíblia. Segundo Virgil Tanase [3] a vida e obra do
Dostoievski se confundem a tal ponto que:
“Se
tivesse escrito a própria biografia, a obra poderia passar, aos olhos de quem
desconhece a história de sua vida como por de seus romances. A tal ponto o herói,
paradoxal e de atitudes tão surpreendentes, encontra-se as voltas com histórias
tão inverossímeis que parecem inventadas. Não são. Essas histórias vão submeter
o escritor a provações terríveis: para sobreviver será obrigado a visitar
recantos obscuros da alma, que escondem mecanismos do comportamento humano. Uma
vez ali, Dostoievski aproveita para revelá-los, conduzindo os personagens, não
causa espanto que as criaturas se pareçam com o criador, tão surpreendente
profundas quando roçam os mistérios da existência, tão banais no dia a dia, em
que são como ele, iguais a qualquer um”.[4]
A
senhoria
O
conto, A senhoria, se desenvolve em torno de 3 personagens centrais sendo 2
jovens, Vassili Ordínov, Katierina, e um velho, Muri, que não se sabe se é
marido protetor ou carcereiro da bela Katierina. O conto narra a estória do jovem Vassíli Ordínov, que após a morte da mãe, se isola num quarto alugado
para se dedicar aos estudos e a busca de conhecimento. Quando a casa é vendida
Vassíli, sai pela cidade a esmo buscado um novo lugar para morar e nestas
andanças, já nos arredores da cidade, entra numa igreja e se depara com uma bela
jovem rezando de forma mística e perturbadora.
Vassili a segue em várias ocasiões, imaginado quem seria a jovem e o
velho que a acompanha, e acaba alugando um quarto no pequeno cômodo do
casal. A trama se desenvolve neste local
com foco na paixão do jovem Vassili por Katierina e a aura mística e fantasiosa
que a jovem Katierina traz para a relação. O autor nos deixa em
suspenso sobre quem é a senhoria e as relações dela com o marido, que as vezes
é visto como protetor, outras como carcereiro e finalmente como uma vítima das
alucinações de Katierina. Ou seria a senhoria uma síntese do misticismo, costumes
e lendas do povo russo, que nos envolve em suas visões dantescas e mantem os
leitores presos as suas teias?
Embora
inicialmente o conto tenha sido recebido de forma pouco entusiasta pela crítica
literária da época e mesmo Dostoievski o tenha considerado pouco relevante, o
conto releva a capacidade do autor de captar a natureza humana na sua
complexidade e contradições assim como explorar o rico universo das crenças e
tradições russas.
Recomendo
com entusiasmo a leitura do conto A senhoria.
[1]
Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM
POCKET vol 1270
[2] Correspondência de Dostoievski para seu irmão Andrei In Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270, p26
[3] Tanase, Virgil (1945). Dostoievski Biografia, 1ª edição, Editora L& PM POCKET vol 1270.
[4]
Idem. p106