***
O Alegre Canto da Perdiz conta a história de gerações de
mulheres dominadas no período da colonização portuguesa em Moçambique. Além do
conflito geracional, a obra aborda questões raciais, sociais, políticas,
econômicas e, em particular, as estratégias de sobrevivência de mulheres negras
na África colonizada.
As protagonistas são quatro mulheres: a avó Serafina, a mãe
Delfina e as filhas, a negra Maria das Dores e a mulata Maria Jacinta. A
escolha dos nomes dessas mulheres não é mera coincidência e reflete importante
questão política para a mulher colonizada e sua perda de identidade, pois geralmente
adotava um nome português iniciado por “Maria”. De acordo com a autora, “Toda a
Maria tem outro nome, porque Maria não é nome, é sinónimo de mulher”.
Os capítulos iniciais mostram Maria das Dores perdida na
região dos Montes Namuli, afrontando os moradores com sua nudez e seu silêncio. Seu
desvario “[...] começou no dia em que o pai negro partiu para não mais voltar.
Tudo começou quando o pai branco amou a sua mãe. Tudo começou quando a sua mãe vendeu a sua virgindade
para melhorar o negócio de pão”. Maria das Dores estava ali à procura dos três filhos
que havia perdido durante a fuga do marido que a dopava e maltratava, o
feiticeiro Simba, também amante de sua mãe Delfina.
Delfina foi uma mulher poderosa. Uma bela negra que encantava
os homens e causava inveja às mulheres. Teve todos os homens do mundo. Dois
maridos, muitos amantes, quatro filhos, um prostíbulo e muito dinheiro. O primeiro
marido foi o negro José dos Montes, por quem verdadeiramente se apaixonou e com
quem veio a se casar na Igreja. O segundo marido, o branco Soares, foi sua instituição
financeira. Além desses, Simba, o belo negro feiticeiro, foi sua instituição
sexual.
Assim como fez com Maria das Dores, Delfina teve sua iniciação
sexual vendida pela mãe em troca de comida e vinho. Chiziane mostra com a
brutalidade desses acontecimentos a questão da inferioridade da raça, que é
introjetada nas mentes e corações das meninas negras desde o seu nascimento, e
como isso auxilia o processo de submissão e colonização das nações africanas. Chiziane
menciona: “O estigma da raça deixou sementes cancerígenas, que se multiplicam
como a raiz de um cancro, e matarão gerações, mesmo depois da partida dos
marinheiros”.
O estigma da raça se reflete nas palavras de Maria das Dores,
ao dizer que seu sofrimento era “culpa da minha mãe que me fez preta e me
educou a aceitar a tirania como destino de pobres e a olhar com desprezo a
minha própria raça”. Nas palavras de Delfina, “A culpa de tudo foi do meu pai
que disse não à assimilação e não me quis libertar desta humilhação. A culpa é da
minha mãe que me iniciou nos segredos do travesseiro quando eu ainda sonhava em
conquistar o meu diploma de professora”.
Paralelamente à questão do estigma da raça, a obra de
Chiziane mostra que a concepção da ascensão social em regiões colonizadas está relacionada
ao “melhoramento da raça”. Assim, tudo começa no ventre da mãe, e a autora problematiza
essa condição nas passagens que refletem o inconformismo de Serafina ao saber
que a bela e promissora filha, Delfina, não se casaria com um branco, mas com
um negro, pobre, e que teriam, então, filhos negros. “Melhora a tua raça, minha
Delfina! Repete inconscientemente o que ouvia da boca de tantas mães negras. E dos
brancos. Casar com um preto? [...] O que é o amor para a mulher negra, Delfina?
Diz-me: o que é o amor na nossa terra onde as mulheres se casam por encomenda e
na adolescência? Diz-me o que é o amor para a mulher violada a caminho da fonte
por um soldado, um marinheiro ou um condenado? As histórias de paixão são para
quem pode sonhar. A mulher negra não brinca com bonecas, mas com bebés de
verdade, a partir dos doze anos. A conversa de amor e virgindade é para as
mulheres brancas e não para as pretas. [...] É por isso que para nós, negras e
pobres, o amor e a paixão deviam ser proibidos. [...] Felizes as mulheres que
geram filhos de peles claras porque jamais serão deportados”.
Outra questão amplamente abordada e diretamente relacionada à
colonização africana na obra é a da assimilação. Assimilar significa aceitar,
perante juramento, os modos, costumes, hábitos, crenças e, acima de tudo, o
domínio do colonizador. Tudo em troca de ascensão social, dinheiro e falsa
sensação de liberdade. Nas palavras de Chiziane: “A assimilação era o único
caminho para a sobrevivência. Quem não se ajoelha perante o poder do império
não poderá ascender ao estatuto de cidadão”.
Foi assim que Delfina convenceu José dos Montes a se tornar
um assimilado, e, no dia de seu juramento, acaba tornando-se também um sipaio: negros
assimilados responsáveis por perseguir, torturar, escravizar e deportar sua
própria gente. “O que José não sabia é que os seus actos se tornariam um marco,
história, mito, lenda. Mudariam o mundo. Sem a cumplicidade dos assimilados e
seus sipaios a terra jamais seria colonizada”.
A autora também retrata a predileção, em terras colonizadas, pelo
gênero feminino no nascimento dos filhos. Tudo isso porque o destino dos
meninos negros é cruel. Talhado à trabalho forçado e chibatada. Prematuramente
apartados do seio de suas mães. Vendidos e deportados ao estrangeiro. Em dada
passagem, José dos Montes conclama a sua mãe: “Querida mãe, eu te odeio, sim,
por teres violado o meu direito de não existir. Odeio-te por me teres gerado homem
e não mulher. Por me fazeres preto e não branco. Minha mãe amada, minha mãe
culpada”. Dos Montes sofre à espera do nascimento de seu primeiro filho e clama:
“Que seja uma menina, sim. Prostituta, borboleta do cais, carne dos
marinheiros. Que seja sexo à venda, ao grama, ao quilo. Que durma com qualquer
branco por causa do sal e do açúcar”. No mundo colonizado, quando se é negro,
melhor a prostituição do que a escravidão.
Também melhor é a vida da mulher negra mãe de filhos mulatos.
Após dois filhos negros com José dos Montes, Delfina se torna mãe de uma
mulata, Maria Jacinta, filha do branco Soares, para a desilusão do marido, que
foge para não mais voltar. A partir do feito, Delfina muda de vida: “O meu
estatuto é maior a partir de agora! Mãe de mulata. Concubina de um branco. Não
mais morrerei à míngua, com esta filha que é a minha segurança. Erguerei esta
criatura como uma bandeira branca, a acenar aos marinheiros e a gritar: sou
vossa! Juntei o meu sangue ao vosso na construção da nova raça”.
Após o nascimento de seus filhos mulatos, Delfina procura
Simba para realizar a magia que tirará a esposa do lar de Soares e a levará
definitivamente a se amasiar com um branco. Viveram, então, muitos anos juntos,
fazendo mais filhos, cuidando dos filhos de José dos Montes, os filhos negros,
com eterna diferença em relação aos mulatos, até que Soares decide voltar a
Lisboa, deixando Delfina desamparada. “Sem emprego, nem marido, nem amante”.
À beira da loucura, Delfina pede novamente ajuda a Simba para
que, por feitiço, consiga ser bem-sucedida num novo empreendimento. Sem
dinheiro, oferece a própria primogênita como pagamento pelo feitiço. “No seu entendimento vale mais a pena uma
vítima em casa do que vitimar a família inteira. Não se arrepende. Ela também
foi usada pela própria mãe, na infância distante. Entregue aos brancos das
lojas a troco de comida”. E assim foi. Delfina levou a menina à casa do mago.
Ficou à espreita, ouvindo tudo, calada. “Maria das Dores estava a ser violada.
Extraviada. Roubada. Uma menina submetida à sádica obsessão daqueles que a
deviam amar”.
A menina se torna, então, refém de Simba durante longos anos,
três filhos, muita pobreza, pouca limpeza e dependência de álcool e drogas que
Simba usava para aprisioná-la. Enquanto isso, por medida judicial baseada na
emissão de um certificado de insanidade moral, Delfina perdia a guarda dos
outros filhos, que tiveram mais sorte que das Dores. “Mãe, por que me deixaste
aqui? Chove neste tecto, o chão é de barro, não tenho cama, durmo na esteira,
na humidade, presa às grilhetas como os escravos antigos. O Simba sai de manhã
e me amarra, vem ao anoitecer e me desata”.
Após cinco anos de cativeiro, das Dores foge com suas três
crianças à procura do pai no sagrado solo dos montes. A partir de então a obra entra
numa sequência de reencontros, coincidências, perdão e reconciliação que destoa
do contexto denso e politicamente crítico dos capítulos anteriores.
O Alegre Canto da Perdiz é uma obra bruta, ao mesmo tempo em
que é poética e profunda. Nos faz refletir sobre a condição e as mazelas do povo
negro colonizado, a partir dos diferentes personagens, seus papéis, visões,
vivências e interrelações. Nesta obra não há herói ou heroína. Todos são
algozes e vítimas. Nas palavras certeiras de Chiziane: “Não há gente boa neste
mundo. Nem má. A vida é um permanente risco em busca de oportunidade”. E de
sobrevivência.
Recomendo.
Registros do (excelente!) encontro do grupo: