terça-feira, 12 de abril de 2022

A filha perdida - Elena Ferrante


por Christiane Girard

O meu resumo será simples porque penso que há resumos muito bem escritos à disposição dos futuros leitores, na capa do livro. Entretanto para os amigos (as) do nosso grupo que hoje ainda não os teriam lidos, a história é construída a partir de uma narradora que conta momentos de vida que pode se passar no presente, mas que a remete a lembranças recalcadas, conflituais e dolorosas. Leda, a narradora é o personagem central. Ela é mãe de duas filhas, jovens adultas que moram no Canada, país onde vive o pai delas.

Leda é professora universitária, passa as férias num balneário no sul da Itália onde está relendo um trabalho para publicação. Quando chegou foi recebida por um empregado afável, do tipo que se coloca à disposição por mais que seu trabalho o obrigue. É alguém que se torna protagonista na história. Alguns dias depois de sua instalação no hotel chega uma família napolitana (segundo o resumo da capa do livro, barulhenta, grosseira no estilo da família de origem da Leda e da qual ela fugiu).

Leda rapidamente adota costumes de turistas, rituais de ocupar tal lugar na praia e, também, percebe que tem afinidades com uns Clientes ou empregados e não com outros. O jovem que cuida das cadeiras de praia, por exemplo, passa a ser um companheiro das férias. Essas pequenas práticas não são verbalizadas, mas os olhares de aprovações ou desaprovações constituem a melodia silenciosa das práticas de férias.

O olhar de Leda sobre a família napolitana mostra um olhar de discriminação, ela condena o sul barulhento, mas rapidamente percebemos que ela rejeita uma classe social e seus valores culturais que eram também de sua própria família.

A família napolitana passa a ocupar o palco no hotel. Os homens trabalham numa outra cidade e voltam passar os fins de semana com a família. Eles são machistas e as mulheres pouco solidárias entre elas. A regra parece mais de defender quem é do clã. Mas na família, Nina, uma moça muito jovem mãe de Helena, pequena criancinha, chama muito a atenção de Leda. Há uma identificação entre elas. Nina parece presente e ausente ao mesmo tempo. Ela é casada com um dos irmãos poderosos. Saberemos que a bela e jovem moça tem um affaire com o jovem empregado do hotel que cuida das cadeiras na praia e é simpático aos olhos de Leda. A família observa Leda com certa suspeição, uma mulher sozinha que não aceitou mudar de lugar na praia quando solicitada para permitir que a família seja instalada junta. Eles a olham como estranha, fora dos valores deles.

Acontece que uns instantes de distração ou de desatenção da família fazem com que a pequena Nina suma da vista dos adultos na praia. Houve Instantes de pânico, depois de muito a procurar quem a encontra é Leda. A pequena tinha se perdido e perdeu sua boneca. O evento se torna central nessas férias, talvez por cada um e por razões diferentes. Por exemplo, eles vão confirmar o esquisitíssimo de Leda, sentindo pelo grupo da família sentimento negativo que vai explodir quando eles vão perceber que ela guardou a boneca da menina com ela, apesar do choro desesperado da Helena.    

Parece que há um mistério latente, uma suspeição, sobre a moral de Leda, que se tornará mais forte quando descobrirão que Leda devolveu Helena à mãe, mas ficou com a boneca. E não a devolveu apesar do desespero da menina. Até Nina que pareceu se identificar com Leda não pode mais se reconhecer nela. O que pareceu mais impactante foi a revelação de Leda para Nina e a cunhada dela:  em certo momento da pequena infância de suas filhas ela se escolheu e deixou as filhas com o pai. 

Quais são as lembranças que Leda tem que acabam a mobilizando sem permitir um distanciamento? Leda depois de ter deixado a família de origem para trás e fugir para FIRENSE para estudar, casa-se, tem duas filhas um marido diríamos padrão estudante classe média dos anos 60/70, da Itália do norte, mas sobretudo ela conta para elas do frio na alma percebendo que não dá conta do que é esperado dela. Ser mãe, esposa profissional. Ela, espera dela, se jogar na criação, publicar sobretudo depois do reconhecimento de um de seu artigo por um professor valorizado na área dela. (Ele se tornará seu companheiro por três anos)

Ela então se separa da sua família para viver o que lhe pareceu possível. Realizar o que ela acha que é. Só que o que ela é contém muito mais configurações, contradições, conciliações, interdições. E é a meu ver o essencial da história. Há diferentes personagens secundários que dão mais densidade à história, mas há uma questão central, ter filhos nos tornam mãe?

Ë possível escapar de sua cultura sem pagar um preço elevado demais? A separação das filhas é particularmente sofrida. Ela não vai aguentar mais de três anos. Voltará a viver com as filhas numa preciosa dedicação. Sentimos que é uma dedicação para ninguém colocar defeito, uma dedicação que se quer reparadora. A equação me parece ser: ela não mudou de ideias, nem de concepção de mundo, mas é quase impossível viver sem os filhos por decisão própria. Culpabilidade, amor, os dois sentimentos e muitos outros existem, para tornar essa escolha impossível. Clara que aos olhos da família napolitana ela parece uma bruxa, uma mãe desnaturada, mas mesmo na família há Ninas que parecem Ledas!

Eu não li nada dessa autora além desse livro, apenas tinha visto o filme financiado pela Netflix a partir do livro. O filme me deixou uma impressão muito envolvente. As coisas acontecem num universo esfumaçado, são impressões, sensações mais que conversas claras. Lembrei das imagens de Goddard, onde o personagem está num barco, em Veneza na aurora. A luz é cinza e azul, parece haver um véu delicado que toca o personagem e o torna menos visível, possibilitando projetar nos pensamentos, sem dúvida.

Escondemos nossos motivos nas diferentes luzes. No filme algo havia me fisgado.   Algo às vezes bem desconfortável, ao redor do qual pensamentos rondam. Algo de eterno:  sobre a filha que fomos, a mãe que fomos e as filhas que temos. E assim com essas cores e uma frase consigo a desenhar um vago esboço dessa emoção.

O que me fisgou é que é pouco dito na vida (na arte um pouco mais) sobre as diferentes construções possíveis de figura de mãe. (Santa ou P...) Há um monte de frases “mães só mudam de endereços”. A Leda deixa os filhos com o marido para viver, realizar o que a mobiliza intelectualmente, ter reconhecimento na área dela...As filhas não são razões para diferir ou renunciar às suas necessidades. Quando ela descreve o toque corporal parece que ela se sente devorada, ignorada no que ela é além de mãe.

Uma hipótese que faria sem pretensão de verdade é que há uma angústia muito grande de não corresponder ao que é enaltecido na função de mãe. Parece que somos mãe não estamos sendo. Quem precisa dessas representações o filho ou a filha em nós que sonha ser amada pela mãe e com a qual compete pelo amor do pai. Ou a eterna rivalidade entre os irmãos. Somos nós essa filha que quer uma mãe para amar e devorar? Será que é o pai que precisa dessa mãe porque o filho que foi não deixa de sonhar com essa mulher para quem é um rei?

Colocar em dúvida a concepção que haveria uma “natureza” do amor de mãe (diferença entre natura e cultura) ameaça as comunidades e quem tem dúvida cala-se..

Não posso dizer que o livro me fascinou, mas pensei nas jovens mães atualmente que sofrem de depressões pós-parto e me perguntei sobre essa geração que teme não estar a altura do cargo. Por isso achei o livro bem conduzido. Entretanto, e é muito raro achei que o filme é melhor que o texto. Uma arte pode ser reinterpretada, pela luz, pelos gestos dados nos relacionamentos. E por mais que seja um tema sempre difícil o fato de poder vir à tona é muito importante. Porque não se trata de mães vistas como problemáticas (Bergman...).

O desaparecimento da boneca e sua apropriação por Leda me parece ser uma menção à filha que Leda foi e a maneira como a filha dela tratou da boneca que Leda deu a ela. Simbolicamente a filha não pode conhecer a sua mãe como filha. É a solidão que cada uma carrega.  Pudicamente falamos em depressão pós-parto sem saber muito dos tormentos da mãe, fiquei pensando sobre o sistema paradoxal ser mãe é se confrontar com um paradoxo: é impossível a conciliar. Esses desejos e necessidades migram no inconsciente e às vezes reaparecem....criando desejos que às vezes reaparecem.