quarta-feira, 9 de março de 2022

Amsterdam - Ian McEwan

 por Ana Studart


A frase de Auden W.H Auden, que Ian McEwan coloca na abertura do livro, já é um prenúncio ao leitor do que estará por vir: “Os amigos que aqui se encontraram e se abraçaram já partiram, cada qual rumo ao seu próprio erro”.

O romance Amsterdan, que se passa no tempo atual, tem como personagens principais quatro homens vivos e uma mulher morta- um jornalista, um compositor de música erudita, um político influente e o viúvo da única mulher do livro, que já aparece sendo cremada no primeiro capítulo, e em torno da qual giram esses quatro homens. Lembranças de Molly, inspiradora de grandes paixões, permeiam o romance inteiro, sendo citada, inclusive, no último parágrafo da obra.

O Título: Como o romance se passa na Inglaterra, a pergunta que o leitor se faz desde o início é: por que Amsterdan? A explicação começa a ser evidenciada a partir da metade do livro, e só se revela inteira nos últimos capítulos. Esse artificio mantem o tempo todo a curiosidade no leitor.

PDV: O Ponto de Vista do romance é o narrador omnisciente..

A Estrutura

Tomo I- Dividido em dois capítulos que tratam do encontro social de pessoas em torno da cremação da prestigiada jornalista Molly e onde o autor apresenta os personagens principais. Especialmente o músico Clive Linley, dono de ouvido absoluto, que sofre de um bloqueio criativo e tem por compromisso compor a Sinfonia do Milênio.

Tomo II- Dividido em cinco capítulos. Neles McEwan apresenta com mais detalhes o abastado e ambicioso Julian Garmony, Ministro das Relações Internacionais do governo, uma caricatura do que há de pior nos políticos; descreve o jornalista Vernon Hallyday, editor do decadente jornal Judge que cai vertiginosamente em sua circulação. Vernon recebe do viúvo George fotos feitas por Molly que, se expostas, desmoralizariam a imagem do Ministro Garmony. Nesse capítulo, Clive, impressionado com algumas dormências no corpo, pede ao amigo Vernon que o ajude numa eutanásia caso sua saúde mental e física se degrade, como aconteceu com Molly. Ele concorda com esse pacto sinistro, desde que haja reciprocidade.

Tomo III- Tem três capítulos, onde nos aprofundamos nas dificuldades de Clive para concluir a Sinfonia do Milênio e sua rápida viagem a Lake District, local onde imaginava acabar com o seu bloqueio para criar o grand finale da sua música. Nesse passeio, Clive presencia ao longe uma mulher sendo agredida por um homem, mas não intervém, receoso de perder a sequência de notas musicais que o caminho lhe inspirara. McEwan apresenta também uma acalorada discussão sobre ética entre Clive e Vernon sobre a publicação das fotos do Ministro Garmony.

Tomo IV- Dividido em seis capítulos. Nele, Vernon, que já estava conseguindo elevar a circulação do Judge, convence o jornal a publicar as fotos de Garmony e, envaidecido, se prepara para iniciar a publicação no dia seguinte, ao passo que Rose Garmony, a esposa do Ministro, médica conceituada, se antecipa e defende, numa coletiva de imprensa o marido. A partir daqui se inicia o grand finale do romance, onde as expectativas de Vernon e Clide se frustram (sinfonia fracassa e Vernon é levado a pedir demissão). Me abstenho de dar maiores detalhes sobre o final surpreendente, para não dar spoiler àqueles que ainda não leram Amsterdan,

O Texto: O texto de Ian McEwan flui com facilidade durante toda a leitura, sendo as descrições, tanto dos personagens como dos ambientes, bastante detalhada, dando ao leitor a possibilidade de quase visualizar momentos do romance. É preciso destacar a primorosa tradução do Embaixador Jorio Dauster, que, inclusive, foi secretário na Embaixada Brasileira Londres. (Ele se especializou em traduzir obras da literatura inglesa - inclusive outras de McEwan- e conta com mais de 40 obras em seu currículo, incluindo o livro O Apanhador no Campo de Centeio).

Personagens- Em Amsterdan,, os quatro personagens masculinos -o convencido músico Clive Linley; o oportunista editor do Judge, Vernon Halliday;  a raposa política do ministro Julian Garmony; e o poderoso e obeso dono de editora e um dos sócios do jornal Judge, George Lane, com quem Molly se casou perto do fim da vida,  mostram  o pior de si. O narrador onisciente descortina um vaivém de ambições, mágoas, competições, invejas, narcisismo, mesquinhez, vaidades, ciúmes, traições, queixas, desprezo e contradições entre os quatro personagens de maneira impiedosa (como a de Vernon na juventude defender a revolução sexual e o homossexualismo e no jornal condenar um transformer(?). McEwan narra essas fraquezas masculinas usando de um sarcasmo velado e algum humor negro. Afinal, não é à toa que ele foi apelidado pela imprensa de Ian McAbro.

Apesar dessas faces negativas dos personagens, o romance é de leitura agradável. Contam para a leveza da leitura, as várias páginas em que o autor trata da música erudita e do processo de criação musical,( McEwan é conhecidamente um apaixonado por música clássica) e outras tantas páginas sobre o funcionamento do  jornal sensacionalista Judge, onde descreve, com uma mordacidade que chega a ser engraçada, seus jornalistas, suas reuniões de pauta, as discussões sobre  uso da  linguagem, e propostas de reportagens  assustadoras, como a  briga entre irmãos siameses, de preferência com fotos dando dentadas um no outro…. Segue-se a pergunta de um dos jornalistas presentes: será que “não correríamos o risco de parecermos sensacionalistas?" Pode haver ironia maior?

A falecida jornalista Molly Lane, por sua vez, é apresentada como uma mulher generosa, livre, de vanguarda para seu tempo, disponível para os amigos, alguém que "nunca lavou um prato na vida", e é profundamente admirada pelos quatro homens que com ela viveram em alguma fase das suas vidas.

O Objetivo: alguns críticos da obra de McEwan comentam que o romance seria um "estudo impiedoso dos aspectos mais sombrios da psicologia masculina.”. Mas McEwan também trata de temas atuais, como a igualdade de gênero, a liberdade para se escolher a morte, a ética jornalística, a ambição pelo poder.

Um dos momentos mais interessantes do livro é quando Clive critica a decisão de Vernon de publicar as fotos comprometedoras do Ministro falando em princípios morais e éticos, quando ele mesmo se recusou a socorrer uma mulher em perigo para não esquecer as preciosas notas do final do que seria sua majestosa Sinfonia do Milênio.

Em outro momento, Vernon e Clive, impressionados com a morte de Molly, começaram a sentir sintomas de doenças. Clive com uma dormência na mão esquerda, Vernon achando que o hemisfério direito do seu cérebro tinha morrido. Foram esses sintomas que os levaram a fazer um sinistro pacto de cavalheiros, que suscitou a questão sobre a eutanásia, outro tema controverso.

Outras questões que McEwan levanta:  Até onde deve ser respeitada pela imprensa a privacidade das pessoas?  Será que o fim justifica os meios?A sintaxe de uma matéria jornalística é mais relevante do que a notícia?Até que ponto é legítimo um  jornalista perseguir seu sucesso profissional? Evitar um crime é menos importante do que a inspiração musical de um artista?  McEwan coloca essas questões com clareza em Amsterdan, levando o leitor a avaliar cada uma dessas situações. Por isso tudo recomendo o livro, uma leitura agradável, que também contém uma boa dose de suspense e surpresa em seu final.

SOBRE O AUTOR:

Ian McEwan , nascido em junho de 1948, é um escritor britânico, sendo atualmente um dos mais conhecidos da sua geração. Ele se diz um ateu ativo.

Passou parte da sua infância no Extremo Oriente, na Alemanha e no Norte de África, acompanhando o pai, um oficial do Exército Britânico. Estudou na Universidade de Sussex e na Universidade de East Anglia. Seus livros foram traduzidos para cerca de 30 idiomas

No mês em que completa 70 anos, o escritor decidiu lançar dois contos inéditos reunidos no Meu Livro Violeta onde conta sobre um crime perfeito traçado meticulosamente por um escritor, tema da primeira história. O conto foi publicado em janeiro na revista New Yorker. Já a segunda história, “Por Você”, foi escrita para a ópera de Michael Berkeley. Nela, McEwan (ele é. um apaixonado por música clássica, lembram?) apresenta uma cativante história de amor e traição envolvendo quatro personagens, o compositor, sua mulher, uma admiradora e o médico da família.

Prémio Somerset Maugham (1976) pelo livro First Love, Last Rites, sua primeira coleção de histórias curtas

Prémio Femina estrangeiro (1993)
Prémio Man Booker (1998) pelo livro Amsterdan, causando grande controvérsia

National Book Critics Circle Award (2002)
James Tait Black Memorial Prize (2005)
Prémio Jerusalém (2011)

segunda-feira, 7 de março de 2022

Tempo de celebrar a vida ! Primeira década do Grupo Contemporâneo de Leitura e a despedida de uma amiga.


Estamos fazendo aniversário de dez anos juntos. Um grupo de pessoas apaixonadas por literatura. Gostam de ler, de falar dos livros e de ouvir uns aos outros, sobre os livros e sobre as vidas. Reuniram-se quase por acaso, mas costuraram seus afetos com as linhas das milhares de palavras que leram juntos. 100 livros (e alguns contos) depois,  são um tecido coeso que acolhe, resiste, aquece.

Em 2021, também perdemos uma pessoa querida. Ela foi e ficamos aqui olhando, sem saber o que olhar. Fica a nossa homenagem, em palavras.

Mônica era amiga das palavras. Nos livros, nas terapias, nos estudos, na escuta, na partilha. Antes de entrar no clube de leitura já mantinha um 'paginômetro' onde registrava suas leituras e já era difícil acompanhá-la. Companheira de trabalho, de viagens, de cursos, de vinhos, de cinema... virou também companheira de leituras. Como já disseram,  companheira de embriaguez literária. Acolhida pelo grupo, nos acolheu também. Acolheu encontros, resenhas e partilhas. A ela nossa saudade. A sentimos intensa e para sempre presente.