quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Dois Irmãos

 

 Autor: Milton Hatoum

Editora: Companhia das Letras, 2000

 


Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos - Em novembro de 2021

Para o Grupo Contemporâneo de Leitura

 

Notas preliminares:

Expor a relação entre irmãos é tema recorrente na literatura universal. A começar pela Bíblia, que nos introduz ao assunto com as histórias sobre Caim e Abel, Esaú e Jacó....

É interessante observar que, em dez anos de existência, nosso Grupo de Leitura já percorreu pelo menos quatro romances que tratam da vida de dois irmãos:

- o autor português, Manuel de Sousa Tavares, se valeu de uma rivalidade fraterna para construir o livro Rio das Flores (Grupo de Leitura, em Julho de 2013);

- em Deus das pequenas coisas, a autora Suzanna Arundhati Roy coloca um casal de gêmeos como personagens principais (Grupo de Leitura, em Abril de 2015);

- em Cicatriz de David, Susan Abulhawa mostra a história de dois irmãos palestinos, criados em culturas diferentes (árabe e judaica), que voltam a se encontrar na vida, em condições conflitivas (Grupo de Leitura, em Outubro de 2015);   

- e, também, em Esaú e Jacó, Machado de Assis apresenta a vida de gêmeos que, apesar de idênticos na aparência, são opostos quanto à personalidade (Grupo de Leitura, em Outubro de 2017).

Podemos ainda incluir:

- o romance da Frances Peeble, A costureira e o cangaceiro, que relata a vida de duas irmãs (Grupo Leitura, em Julho de 2014);

- o livro O Rouxinol, de Kristin Hannal – duas irmãs com destinos diversos durante a 2ª. Guerra mundial (Grupo de Leitura, em Fevereiro de 2020);                      

- e, finalmente, a mais recente leitura do livro Torto Arado, onde Itamar Vieira Junior conta a saga das irmãs Bibiana e Belonísia (Grupo de Leitura, em Outubro de 2021). 

Por casualidade, dois desses livros foram resenhados por mim.

Tendo passeado por essas atraentes estórias, ao vislumbrar o título Dois Irmãos, pensei não ser possível encontrar uma narrativa tão original a ponto de engolir o leitor com novidades.

Pois, a verdade é que atravessar a saga de mais dois irmãos me pareceu, de novo, surpreendente.

O estilo e os personagens construídos por Hatoum têm tudo de especial. Esse autor não apenas imprime ao texto um caráter próprio como nos traz um contexto diferente dos anteriores.

Sobre o Autor:

Descendente de libaneses, nascido em 1952, em Manaus, onde viveu parte de sua vida, Milton Hatoum é considerado um dos grandes escritores vivos no Brasil. É também tradutor, professor de literatura e articulista na Folha de São Paulo. Ensinou literatura na Universidade Federal da Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. (Ver nota 1)

O Contexto:

Esta novela, quarto romance de Hatoum, é ambientada em Manaus, uma cidade repleta de imigrantes de diferentes nacionalidades, adicionados aos indígenas. (Ver nota 2). Essa população se mesclou numa convivência de costumes, crenças e corpos.

Porém, essa Manaus parece ir além de ser apenas um fosco pano de fundo. Pode-se afirmar que, com sua geografia, sua flora, sua fauna e seus costumes, essa paisagem urbana de Manaus é um personagem a mais nesse livro. Personagem com papel relevante e enorme protagonismo:

seja o calor, o “toró dos diabos”, o aguaceiro, o roçar de um corpo na terra, as frutas amazonenses, os animais, o “bote da cobra-papagaio”, rios, lagos, igarapés, temperos tais como murupijambu e pimentas diversas, peixes do rio Negro, gorjeios e trinados de pássaros como mambuaçu e anum, árvores, as batuíras, enfim, a Manaus, por meio de cada elemento local impacta a vida dos outros personagens e influencia suas trágicas ações e reações. Transmite o sabor do ambiente e traduz o espírito da floresta.  Como se a natureza e as circunstâncias sócio-culturais se fundissem nos dramas pessoais.

Além de descrever o universo amazônico, o autor introduz na narrativa outros ingredientes:    apresenta palavras e expressões locais desconhecidas no resto do Brasil, assim como rituais sociais libaneses, turcos, manauaras e indígenas: Catrais é um barco? E muluré fora d´água o que é? Vc já usou penduricalho de olho de boto no pescoço?

A conexão entre a natureza e a vida dos manauaras, entre o “eu e o mundo”, entre o indivíduo e suas circunstâncias, é soberbamente explorada pelo autor, atinge o destino e até o caráter dos irmãos Yakub e Omar. Envolve o leitor provocando uma sensação de realidade amazônica.

Personagens e Narrativa:

Discorrer sobre lares desestruturados e temperar o texto com leve tendência política é costumeiro para Hatoum em seus romances. Neste livro, em particular, o autor utiliza uma inteligência analítica e implacável para descrever uma engrenagem familiar.

O casal, Halim e Zana, se entrelaça num romance permeado por versos (os chamados Gazais) que mostram uma paixão desde a conquista da noiva.  Ele, comerciante maometano, árabe, e ela, turca, otomana (filha de Galib, dono do restaurante). Após casados, têm filhos gêmeos, Omar e Yakub, e uma terceira filha Rania.

O romance foca as vidas dos gêmeos Omar e Yakub, que embora similares na aparência, desde a infância são diversos quanto ao temperamento (um é o “farrista” e o outro é o “doutor”). Logo cedo, a mãe demonstra uma predileção especial pelo Omar e o protege – para ela, o Omar era o “peludinho frágil”.

Para esquentar ainda mais a rivalidade entre os dois, eis que se interessam e pode-se dizer, se apaixonam, pela mesma moça, que escolhe Yakub.  Esse fato provoca um ciúme e um ressentimento intenso no Omar, o irmão desprezado. Com este triângulo amoroso, desenvolve-se a trama.

A rivalidade torna-se crescente no decorrer de suas vidas, se transforma num sentimento forte de quase ódio na personalidade de Omar, que afinal, expõe suas entranhas com uma violência incontida. Eis o mote que prende o leitor: qual será a próxima turbulência entre eles?  o que vai aprontar o Omar no novo capítulo? Suscitar essa curiosidade deixa um bom gancho para continuar a história.

Logo cedo, os gêmeos são apartados.  Yakub, ainda adolescente, é enviado para terras estrangeiras dos descendentes do pai. Na sua volta, vê-se que a rivalidade e o ciúme continuam fortes e ativos, sempre atormentando o Omar.

Yakub precisou de novos ares para respirar a liberdade e mais uma vez se afasta: parte para S. Paulo e torna-se engenheiro, bem sucedido, e sente-se livre para refazer totalmente a sua vida tanto financeira como afetiva.

E Omar? Continua em Manaus permanentemente protegido pela mãe. Os irmãos tomam rumos e destinos diferentes.

Zana, a mãe, é permanentemente assoberbada pela relação dos filhos e protetora obcecada do Omar – o Caçula. Essa situação impacta as relações de toda a família, afasta Zana do sempre apaixonado Halim. Mas, ele se derrete por Zana e se deixa controlar para ter seus momentos de amor na rede e na cama.  E somente uma vez mostra reação forte aos arroubos de Omar: Halim dá-lhe uma bofetada e  “o acorrenta na maçaneta do cofre de aço”, e some de casa por dois dias.

Além desse núcleo familiar, existem outros personagens importantes. Moram com eles a Domingas – uma descendente de indígenas Cunhatã – que tem papel de empregada doméstica e fiel cuidadora e acompanhante de Yakub – juntamente com seu filho, que é o narrador da novela.

A vida desse narrador começa a ser conhecida a partir do Capítulo 4, quando ele afirma, com honestidade, que “a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado”.  (pag 90)

Após 30 anos, “quando quase todos estão mortos”, o filho da  Domingas conta a história da família que é também sua própria história. Existe uma busca subjacente na narrativa para saber qual desses familiares violentou sua mãe e é o seu pai... Esses mistérios são sombras que o perseguem.

Parte dessa novela, ele relata o que viu, como testemunha dos acontecimentos, e os traduz como pode. Outra parte, ele escuta os desabafos de Halim e transcreve a visão do pai e esposo em relação a toda a família. Mas, mesmo escutando o outro, mesmo assim,  o narrador não consegue preencher vácuos e silêncios. O verdadeiro segredo fica guardado com seu dono. Sua imaginação pode preencher os vazios, mas o filho da  Domingas não alcança compreender, nem interpretar.

O leitor saberá esclarecer todo o enredo? O final da história não será aqui revelado para surpresa e deleite dos próximos leitores.

Estilo -   Mensagem ou mensagens:.

Vale, por fim, comentar sobre outras questões relevantes que parecem ser mensagens pretendidas pelo autor.

Hatoum mergulha com grande estilo e estética na situação dos desfavorecidos, dos imigrantes, dos indígenas e na degradação das relações familiares.

Com sensibilidade e delicadeza, além de apresentar paixões e amores, joga holofotes sobre terríveis situações como disparidade social, trabalho quase escravo, incesto, violência familiar, estupro, que aparecem ou insinuados ou evidentes. O autor denuncia de forma terna e reticente, mas contundente. Toca o dedo nas feridas, sem sequer pronunciar certas palavras.

Retrata um matriarcado ambíguo, onde mulheres com poder de mando e com características perversas chamam nossa atenção. Como exemplo, temos as filhas , Zania e Stelita, que batem no pai viúvo se este namora;  outra Estelita também bate no marido, o Abelardo Reinoso; e  a Zana, esposa de Halim,  manda no marido e na casa, e manipula toda a família. E quem comanda o comércio da família é a filha Rania.

Tudo isso é relatado pelo autor, mas sem nunca se esquecer da Amazônia.

Concluindo, este livro denso, fascinante e comovente, ‘agarra’ o leitor e o atinge em cheio e, vale repetir, não deixa em segundo plano a apresentação do deslumbrante e desafiador ambiente amazônico.


 
Notas/Referências:

 (1) Ainda sobre o autor:

Prêmios recebidos por Hatoum: Jabuti (1990, 2006); Portugal Telecom de Literatura (2006); Ordem do Mérito (2008).

Entre outras obras escreveu: Relato de um certo oriente, Órfãos de Eldorado (lido pelo Grupo de Leitura, em maio de 2012 -resenha da Daniela), Cinzas do Norte, Dois Irmãos ... Interessante notar que o livro Dois Irmãos serviu de tema para uma minissérie da TV Globo.

(2) Fundada em 1669, a cidade de Manaus ficou conhecida no início do Século XX como a “Paris dos Trópicos”. O auge do ciclo da exploração da borracha ocorreu entre 1890 e 1910. Nesse período foi invadida por imigrantes europeus – portugueses, franceses, ingleses, italianos - e, em seguida, vieram japoneses, turcos e alemães. A miscigenação, incluindo os indígenas locais, levou à formação dos caboclos.

Outro surto de intensa imigração aconteceu a partir de 1970, com a industrialização pós-implantação da Zona Franca em 1967. Hoje, Manaus é a 7ª cidade mais populosa do Brasil, com mais de 2 milhões de habitantes, 6º maior PIB e 4º maior IDH do país (Fonte: Wikipédia, Nov 2021).

                                               ***

Notas complementares:

(3)   Sempre bom lembrar as palavras de Cristopher Lehman-Haupt:

Há uma diferença enorme entre ser um crítico ou um resenhista. O resenhista reage à experiência do livro”.

Aqui me aventuro como resenhista, buscando explorar pontos tais como contexto, vida do autor, personagens, mensagens do texto, estilo, narrativa...

(4) Nos seus flashes o Hatoum imprime um tom de fotografia e lembra as Imagns em Preto e Branco - do Sebastião Salgado, recente vencedor do prestigioso 32º Praemium Imperial (Japan Association – considerado o Nobel das Artes), apresentado no Projeto Amazonia em Paris (Setembro/Outubro de 2021)

    (5) McEwan em Serena: “romances investigam o que deixamos em segredo, o que resguardamos na intimidade  (Grupo de leitura, em Outubro de 2012)

(6) Milton Hatoum em Órfãos de Eldorado: “a gente quer entender as pessoas e só encontra silêncio”; (Grupo de Leitura, em maio de 2012)

(7) Virginia de Vasconcellos em comentários sobre Órfãos de Eldorado,  outro livro do Hatoum:   (reprodução livre); (Grupo de Leitura, em maio de 2012)

O livro é inspirado na vida de Manaus e se alimenta do conhecimento e registro de costumes de família e da história da época. No entanto, apresenta não somente elementos sociais mas, sobretudo históricos, políticos, humanos, geográficos, botânicos: a descrição da vegetação da Amazônia e suas funções é um primor. De tal modo que o leitor pode salientar esta ou aquela perspectiva que o impacta ou comova mais.  É também uma ode a Manaus antiga, ao Amazonas às suas lendas e mitos. Com o desfecho ambíguo, quem termina a obra é você.