Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras,
2000
Resenha por Maria Virginia de
Vasconcellos - Em novembro de 2021
Para o Grupo Contemporâneo de Leitura
Notas preliminares:
Expor a relação entre irmãos é tema recorrente na literatura universal.
A começar pela Bíblia, que nos introduz ao assunto com as histórias sobre Caim
e Abel, Esaú e Jacó....
É interessante observar que, em dez anos de existência, nosso Grupo de
Leitura já percorreu pelo menos quatro romances que tratam da vida de dois irmãos:
- o autor português,
Manuel de Sousa Tavares, se valeu de uma rivalidade fraterna para construir o
livro Rio das Flores (Grupo de Leitura, em Julho de 2013);
- em Deus das
pequenas coisas, a autora Suzanna Arundhati Roy coloca um casal de
gêmeos como personagens principais (Grupo de Leitura, em Abril de 2015);
- em Cicatriz
de David, Susan Abulhawa mostra a história de dois irmãos palestinos,
criados em culturas diferentes (árabe e judaica), que voltam a se
encontrar na vida, em condições conflitivas (Grupo de Leitura, em Outubro de
2015);
- e, também, em Esaú
e Jacó, Machado de Assis apresenta a vida de gêmeos que, apesar de
idênticos na aparência, são opostos quanto à personalidade (Grupo de Leitura,
em Outubro de 2017).
Podemos ainda incluir:
- o romance da
Frances Peeble, A costureira e o cangaceiro, que relata a vida
de duas irmãs (Grupo Leitura, em Julho de 2014);
- o livro O
Rouxinol, de Kristin Hannal – duas irmãs com destinos
diversos durante a 2ª. Guerra mundial (Grupo de Leitura, em Fevereiro de 2020);
- e, finalmente, a
mais recente leitura do livro Torto Arado, onde Itamar Vieira
Junior conta a saga das irmãs Bibiana e Belonísia (Grupo de Leitura, em Outubro
de 2021).
Por casualidade, dois desses livros foram resenhados por mim.
Tendo passeado por essas atraentes estórias, ao vislumbrar o
título Dois Irmãos, pensei não ser possível encontrar
uma narrativa tão original a ponto de engolir o leitor com novidades.
Pois, a verdade é que atravessar a saga de mais dois irmãos me pareceu,
de novo, surpreendente.
O estilo e os personagens construídos
por Hatoum têm tudo de especial. Esse autor não apenas imprime ao texto um
caráter próprio como nos traz um contexto diferente dos anteriores.
Sobre o Autor:
Descendente de libaneses, nascido em 1952, em Manaus, onde viveu parte
de sua vida, Milton Hatoum é considerado um dos grandes escritores vivos no
Brasil. É também tradutor, professor de literatura e articulista na Folha de
São Paulo. Ensinou literatura na Universidade Federal da Amazonas e na
Universidade da Califórnia, em Berkeley. (Ver nota 1)
O Contexto:
Esta novela, quarto romance de Hatoum, é ambientada em Manaus, uma
cidade repleta de imigrantes de diferentes nacionalidades, adicionados aos
indígenas. (Ver nota 2). Essa população se mesclou numa convivência de
costumes, crenças e corpos.
Porém, essa Manaus parece ir além de ser apenas um fosco pano de fundo. Pode-se
afirmar que, com sua geografia, sua flora, sua fauna e seus costumes, essa
paisagem urbana de Manaus é um personagem a mais nesse livro. Personagem com
papel relevante e enorme protagonismo:
seja o calor, o “toró dos diabos”, o aguaceiro, o roçar de um corpo na
terra, as frutas amazonenses, os animais, o “bote da cobra-papagaio”,
rios, lagos, igarapés, temperos tais como murupi, jambu e
pimentas diversas, peixes do rio Negro, gorjeios e trinados de pássaros
como mambuaçu e anum, árvores, as batuíras,
enfim, a Manaus, por meio de cada elemento local impacta a vida dos outros
personagens e influencia suas trágicas ações e reações. Transmite o sabor
do ambiente e traduz o espírito da floresta. Como se a natureza e as
circunstâncias sócio-culturais se fundissem nos dramas pessoais.
Além de descrever o universo amazônico, o autor introduz na narrativa
outros ingredientes: apresenta palavras e expressões locais
desconhecidas no resto do Brasil, assim como rituais sociais libaneses, turcos,
manauaras e indígenas: Catrais é um barco? E muluré
fora d´água o que é? Vc já usou penduricalho de olho de boto no
pescoço?
A conexão entre a natureza e a vida dos manauaras, entre o “eu e o
mundo”, entre o indivíduo e suas circunstâncias, é soberbamente explorada pelo
autor, atinge o destino e até o caráter dos irmãos Yakub e Omar. Envolve o
leitor provocando uma sensação de realidade amazônica.
Personagens e Narrativa:
Discorrer sobre lares desestruturados e temperar o texto com leve
tendência política é costumeiro para Hatoum em seus romances. Neste livro, em
particular, o autor utiliza uma inteligência analítica e implacável para
descrever uma engrenagem familiar.
O casal, Halim e Zana, se entrelaça num romance permeado por versos (os
chamados Gazais) que mostram uma paixão desde a conquista da
noiva. Ele, comerciante maometano, árabe, e ela, turca, otomana
(filha de Galib, dono do restaurante). Após casados, têm filhos gêmeos,
Omar e Yakub, e uma terceira filha Rania.
O romance foca as vidas dos gêmeos Omar e Yakub, que embora similares na
aparência, desde a infância são diversos quanto ao temperamento (um é o
“farrista” e o outro é o “doutor”). Logo cedo, a mãe demonstra uma
predileção especial pelo Omar e o protege – para ela, o Omar era o “peludinho
frágil”.
Para esquentar ainda mais a rivalidade
entre os dois, eis que se interessam e pode-se dizer, se apaixonam, pela mesma
moça, que escolhe Yakub. Esse fato provoca um ciúme e um
ressentimento intenso no Omar, o irmão desprezado. Com este triângulo amoroso,
desenvolve-se a trama.
A rivalidade torna-se crescente no
decorrer de suas vidas, se transforma num sentimento forte de quase ódio na
personalidade de Omar, que afinal, expõe suas entranhas com uma violência
incontida. Eis o mote que prende o leitor: qual será a próxima turbulência
entre eles? o que vai aprontar o Omar no novo capítulo? Suscitar
essa curiosidade deixa um bom gancho para continuar a história.
Logo cedo, os gêmeos são
apartados. Yakub, ainda adolescente, é enviado para terras
estrangeiras dos descendentes do pai. Na sua volta, vê-se que a rivalidade e o
ciúme continuam fortes e ativos, sempre atormentando o Omar.
Yakub precisou de novos ares para respirar a liberdade e mais uma vez se
afasta: parte para S. Paulo e torna-se engenheiro, bem sucedido, e sente-se
livre para refazer totalmente a sua vida tanto financeira como afetiva.
E Omar? Continua em Manaus
permanentemente protegido pela mãe. Os irmãos tomam rumos e destinos
diferentes.
Zana, a mãe, é permanentemente
assoberbada pela relação dos filhos e protetora obcecada do Omar – o Caçula.
Essa situação impacta as relações de toda a família, afasta Zana do sempre
apaixonado Halim. Mas, ele se derrete por Zana e se deixa controlar para ter
seus momentos de amor na rede e na cama. E somente uma vez mostra
reação forte aos arroubos de Omar: Halim dá-lhe uma bofetada e “o acorrenta
na maçaneta do cofre de aço”, e some de casa por dois dias.
Além desse núcleo familiar, existem
outros personagens importantes. Moram com eles a Domingas – uma descendente de
indígenas Cunhatã – que tem papel de empregada doméstica e fiel cuidadora e
acompanhante de Yakub – juntamente com seu filho, que é o narrador da novela.
A vida desse narrador começa a ser
conhecida a partir do Capítulo 4, quando ele afirma, com honestidade, que “a
memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado”. (pag
90)
Após 30 anos, “quando quase todos
estão mortos”, o filho da Domingas conta a história da família
que é também sua própria história. Existe uma busca subjacente na narrativa
para saber qual desses familiares violentou sua mãe e é o seu pai... Esses
mistérios são sombras que o perseguem.
Parte dessa novela, ele relata o que
viu, como testemunha dos acontecimentos, e os traduz como pode. Outra parte,
ele escuta os desabafos de Halim e transcreve a visão do pai e esposo em
relação a toda a família. Mas, mesmo escutando o outro, mesmo assim, o
narrador não consegue preencher vácuos e silêncios. O verdadeiro segredo fica
guardado com seu dono. Sua imaginação pode preencher os vazios, mas o filho
da Domingas não alcança compreender, nem interpretar.
O leitor saberá esclarecer todo o enredo? O final da história não será
aqui revelado para surpresa e deleite dos próximos leitores.
Estilo - Mensagem ou
mensagens:.
Vale, por fim, comentar sobre outras questões relevantes que
parecem ser mensagens pretendidas pelo autor.
Hatoum mergulha com grande estilo e estética na situação dos
desfavorecidos, dos imigrantes, dos indígenas e na degradação das relações
familiares.
Com sensibilidade e delicadeza, além de apresentar paixões e amores,
joga holofotes sobre terríveis situações como disparidade social, trabalho
quase escravo, incesto, violência familiar, estupro, que aparecem ou insinuados
ou evidentes. O autor denuncia de forma terna e reticente, mas contundente.
Toca o dedo nas feridas, sem sequer pronunciar certas palavras.
Retrata um matriarcado ambíguo, onde mulheres com poder de mando e com
características perversas chamam nossa atenção. Como exemplo, temos as filhas ,
Zania e Stelita, que batem no pai viúvo se este namora; outra
Estelita também bate no marido, o Abelardo Reinoso; e a Zana, esposa
de Halim, manda no marido e na casa, e manipula toda a família. E
quem comanda o comércio da família é a filha Rania.
Tudo isso é relatado pelo autor, mas
sem nunca se esquecer da Amazônia.
Concluindo, este livro denso,
fascinante e comovente, ‘agarra’ o leitor e o atinge em cheio e, vale
repetir, não deixa em segundo plano a apresentação do deslumbrante e desafiador
ambiente amazônico.
Notas/Referências:
(1) Ainda sobre o autor:
Prêmios recebidos por Hatoum: Jabuti (1990, 2006); Portugal Telecom de
Literatura (2006); Ordem do Mérito (2008).
Entre outras obras escreveu: Relato de um certo oriente, Órfãos de Eldorado
(lido pelo Grupo de Leitura, em maio de 2012 -resenha da Daniela), Cinzas do
Norte, Dois Irmãos ... Interessante notar que o livro Dois Irmãos serviu
de tema para uma minissérie da TV Globo.
(2) Fundada em 1669, a cidade de
Manaus ficou conhecida no início do Século XX como a “Paris dos Trópicos”. O
auge do ciclo da exploração da borracha ocorreu entre 1890 e 1910. Nesse
período foi invadida por imigrantes europeus – portugueses, franceses,
ingleses, italianos - e, em seguida, vieram japoneses, turcos e alemães. A
miscigenação, incluindo os indígenas locais, levou à formação dos caboclos.
Outro surto de intensa imigração
aconteceu a partir de 1970, com a industrialização pós-implantação da Zona
Franca em 1967. Hoje, Manaus é a 7ª cidade mais populosa do Brasil, com mais de
2 milhões de habitantes, 6º maior PIB e 4º maior IDH do país (Fonte: Wikipédia,
Nov 2021).
***
Notas complementares:
(3) Sempre bom lembrar as palavras de Cristopher
Lehman-Haupt:
“Há uma diferença enorme entre ser um crítico ou um resenhista. O
resenhista reage à experiência do livro”.
Aqui me aventuro como resenhista, buscando explorar pontos tais como
contexto, vida do autor, personagens, mensagens do texto, estilo, narrativa...
(4) Nos seus flashes o Hatoum imprime
um tom de fotografia e lembra as Imagns em Preto e Branco - do
Sebastião Salgado, recente vencedor do prestigioso 32º Praemium Imperial (Japan
Association – considerado o Nobel das Artes), apresentado no Projeto Amazonia
em Paris (Setembro/Outubro de 2021)
(5) McEwan em Serena: “romances
investigam o que deixamos em segredo, o que resguardamos na intimidade (Grupo
de leitura, em Outubro de 2012)
(6) Milton
Hatoum em Órfãos de Eldorado: “a gente quer entender as pessoas e só encontra
silêncio”; (Grupo de Leitura, em maio de 2012)
(7) Virginia de Vasconcellos em comentários sobre Órfãos de
Eldorado, outro livro do Hatoum: (reprodução livre); (Grupo
de Leitura, em maio de 2012)
“O livro é inspirado na vida de Manaus e se alimenta do conhecimento
e registro de costumes de família e da história da época. No entanto, apresenta
não somente elementos sociais mas, sobretudo históricos, políticos,
humanos, geográficos, botânicos: a descrição da vegetação da Amazônia e suas
funções é um primor. De tal modo que o leitor pode salientar esta ou aquela
perspectiva que o impacta ou comova mais. É também uma ode a
Manaus antiga, ao Amazonas às suas lendas e mitos. Com o desfecho ambíguo, quem
termina a obra é você.”