Resenha
do Livro TORTO
ARADO, de Itamar Vieira Jr.
Por Priscila Fernandes Costa
Torto
Arado, o premiadissimo livro de Itamar Vieira Júnior - vencedor do prêmio LeYa em 2018, do prêmio
Jabuti em 2020 e do prêmio Oceanos de Literatura – narra a vida dos
trabalhadores rurais brasileiros vivendo na fazenda Água Negra, na Chapada
Diamantida, interior da Bahia. Itamar é geógrafo e doutor em estudos étnicos e
africanos pela Universidade Federal da Bahia. Conta que começou a esboçar o romance
aos 16 anos de idade, inspirado sobretudo pela escrita de Raquel de Queiroz e
José Lins do Rego. Nessa época chegou a escrever 80 páginas que tratavam da
relação conflituada de duas irmãs. Acabou por deixar o romance de lado quando
começou o curso de geografia e esse primeiro esboço de 80 páginas iniciais se
perdeu.
Há cerca de 13 anos
ingressou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) onde
vem realizando trabalho de campo no interior do Nordeste. Foi aí que teve
contato direto com uma realidade que só conhecia através dos romances que leu.
Conheceu famílias inteiras de trabalhadores que vivem em um sistema semelhante
à escravidão, que não recebem dinheiro pelo dia de trabalho e só têm direito à
morada. A dureza do cotidiano destes trabalhadores renovou a motivação para
retomar o antigo projeto do livro. Juntou, então, a história inicial das duas
irmãs com o que pode obervar ali.
No romance, o autor toma
emprestado não somente as experiências destes trabalhadores rurais, mas também
a linguagem melodiosa que utilizam. O título do romance – Torto Arado – que já
era o título de seu primeiro esboço, vem de um verso de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810):
E
doravante a mão negra da morte
(...)
lhe arranca os frios ossos
ferro
do torto arado.
Em uma entrevista o autor
diz que o que chamou sua atenção foi “essa imagem de um arado torto velho, como
se fosse um símbolo de uma realidade imutável, de um campo onde o arado ainda é
instrumento de trabalho, apesar da mecanização brutal”.
A trama do livro gira em
torno da família do trabalhador rural Zeca Chapéu Grande, curador de jarê –
religião afro-brasileira que tem suas raízes na umbanda, no espiritismo e no
catolicismo, conhecida também como “candomblé de caboclos” e que é muito
praticada na Chapada Diamantina –, tinha
por missão restituir a saúde do corpo e
do espírito aos que necessitavam; além disso, era considerado o pai espiritual
de toda a gente de Água Negra. Além de comandar as “brincadeiras do jarê” – era
assim que chamavam as cerimônias nas quais recebiam e incorporavam os
encantados – e curar corpos doentes e espíritos perturbados, Zeca Chapéu Grande
fazia as vezes de líder político, de pelego, e de apaziguador dos conflitos
entre trabalhadores que se revoltavam por considerar que a terra pertencia a
quem nela trabalhava.
Casado com Salustiana
Nicolau, era pai de quatro filhos: Bibiana, Belonísia, Zezé, o único menino e
Domingas a caçula. Compunha, ainda, essa família, sua mãe Donana, conecida também
mãe como de pegação de muitos na fazenda, pois era quem se encarregava do parto
das mulheres dali.
O romance é divido e três
partes. Na primeira parte, o relato é feito por Bibiana, a filha mais velha e é
centrado na infância das meninas. Na
segunda parte, os acontecimentos são narrados por Belonísia, e trata do tempo
de saída da infância e ingresso na idade adulta, numa jornada em direção ao
lugar de mulher. Por último temos o
relato de uma encantada, Santa Rita Pescadora, entidade do jarê, conhecedora da
intimidade e dos segredos dos moadores da região e principalmente do destino
das duas irmãs.
Os empregados da fazenda
eram quase todos descendentes de negros
escravisados, que aceitavam trabalhar em troca de um lugar para morar e no qual
só podiam construir casebres de paredes de barro e telhado de junco, e cultivar
roças no quintal, cujos produtos tinham que dividir com o capataz ou com o
patrão. Não recebiam salário e o único dinheiro que conseguiam era quando vendiam
os produtos que plantavam na feira, ou quando obtinham a aposentadoria rural.
Bibiana e Belonísia são
as protagonistas da estória que começa qundo as duas tinham, respectivamente, 7
e 6 anos de idade e provocam o acidente
que marcará suas vidas para sempre. Eram crianças curiosas e teimosas sempre
prontas a transgredir as ordens dos adultos, sobretudo as da avó Donana. Por
serem as mais próximas eram também as que mais se desentendiam. Brigavam e
brincavam com a mesma disposição.
Certo dia as meninas
vendo a avó se afastar da casa em diração ao quintal, se embrenhando na mata
próxima, Bibiana, a mais curiosa das duas, instiga a irmã para que tentem descobrir,
no quarto da avó, o que ela mantinha escondido em uma mala de couro envelhacida e suja em baixo da cama.
Dentro da mala, por baixo de algumas peças de roupas antigas e surradas havia
um tecido sujo e manchado envolvendo um objeto que chamou a atenção das meninas.
Embrulhada ali encontrava-se uma faca, nem grande nem pequena, perfeitamente nova e brilhante, cabo de
marfim, sem nenhum arranhão. Fascinadas com o objeto, as irmãs começaram a
disputar a posse da faca, cada uma querendo tê-la nas mãos, quando inesperadamente
Bibiana coloca o metal na boca, “tamanha
era a vontade de sentir seu gosto”. Quase ao mesmo tempo Belonísia puxa a
faca de forma violenta e a arranca da boca da irmã, levando o metal à
boca. Belonísia que agora estava com a faca na boca, ao ver o sangue escorrer pelo
queixo da irmã, tira imediamente a faca de sua boca e se corta também. O resultado
desta travessura foi que Belonísia teve a língua decepada e Bibiana, parte da
língua cortada. Nos primeiros meses após o ocorrido as irmãs foram tomadas de
um sentimento de união que estava embotado com aquele passado de brigas e
disputas infantis. Com o tempo puderam retornar às brincadeiras, deixaram as
disputas para trás pois, daí em diante, uma teria que falar pela outra.
Contudo, a origem e causa
da tragédia das irmãs remonta a muitos anos antes, durante a juventude da avó
Donana. Donana, como era conhecida, uma vez que ninguém jamais soube seu nome
verdadeiro, nasceu e foi criada na fazenda Caxangá. Órfã, viveu com a familia
do capataz da fazenda onde era encarregada dos serviços domésticos. Ainda
menina começou a ver objetos balançarem de forma violenta, o mato seco queimar
por onde caminhava, roupas desaparecerem como palha seca e outros fenômenos que
deixavam a todos amedrontados. Por fim passou a receber encantados. Ainda jovem
aprendeu a manejar ervas e raízes para fazer remédios para os mais distintos
males que acometiam as gentes. Tornou-se raizeira e parteira. Na fazenda
Caxangá conheceu seu primeiro marido, José Alcino que veio a falecer pouco
antes do nascimento de Zeca, o filho mais velho.
Certo dia Donana viu uma bela
faca esquecida no alpendre da casa sede da fazenda. Olhou ao redor e constatou
que não havia ninguém por perto, retirou a faca do coldre, enfiou o objeto no
seu cesto de palha, em meio aos aipins, pedindo a Deus que a perdoasse por
aquele ato, e saiu dali antes que alguém pudesse surpreendê-la. Pensou que
poderia ganhar algum dinheiro com a venda da
faca, mas como foi se afeiçoando ao objeto acabou por enterrá-lo debaixo
da própria cama.
Mais ou menos na mesma
época arranjou seu terceiro “marido”. No início o convívio com esse novo companheiro
era calmo e amigável, até que ele passou a beber. Tornou-se, então, agressivo e
hostil. Certo dia, ao entrar em casa, encontrou seu homem em cima de sua filha,
moça há poucos anos, e quase enlouqueceu. A filha, Carmelita, tomada de culpa
saiu da casa da mãe e Donana jamais soube dela.
Numa noite escura por
causa das núvens pesadas que trariam um grande aguaceiro Donana tomou a decisão
de acabar com o sofrimento de ambas, mãe e filha. Seu homem saiu para pescar
levando uma garrafa de bebida. Ela o seguiu algum tempo depois e quando o
encontrou viu que ele dormia prosternado. Sangrou o homem como se sangrasse um
porco e afundou o corpo no rio. Na madrugada que se seguiu, teve apenas uma
certeza: Deus jamais a perdoaria. Pior: devolveria o malfeito em dobro. Por
isso quando aconteceu o acidentes com as netas sentiu que seu passado trazia de
volta coisas que não queria recordar e que através daquela tragédia estava
quitando a dívida contraída em consequência de seu ato. Jamais se recuperou do
que ocorreu com as meninas e uma desordem se instalou em seus pensamentos e em
seus falares, as coisas que falava já não faziam sentido. Seu desatino termina
numa tarde quente de fevereiro quando, aproveitando a distração de Bibiana, se
embrenhou no mato em direção ao rio. A neta encontrou seu corpo emborcado como
um bicho na beira e dentro d’água.
Zeca Chapéu Grande, cujo
nome de batismo era o mesmo de seu pai, José Alcino, foi quem assumiu a
incumbência destinada pelos encantadores à sua mãe, e tornou-se curador de jarê.
Tinha uma face mágica e embora parecesse aos olhos das filhas um pai igual aos
outros, tinha sua paternidade ampliada aos aflitos, doentes, necessitados de
remédios que não havia nos hospitais e da sabedoria que não havia nos médicos
ausentes daquela terra. Agia com grande afeição diante das dificuldades mais
díspares que chegavam à sua porta. Da loucura ele entendia bem, porque ele
mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida, como castigo pela
desobediência de sua mãe que se recusou a cuidar dos encantados e a colocar
jarê em sua casa. Carregou o fardo de sua mãe como castigo dos santos para ela.
Foi o primeiro dos onze filhos que Donana teve com diferentes maridos. O
codinome Chapéu Grande, bem como o chapéu que usava o tempo todo, herdou da mãe,
que por sua vez o herdou do falecido marido.
Os anos se sucederam e as
meninas foram crescendo e juntas aprendendo a superar a dificuldade de comunicação
de Belonísia, que teve a língua decepada. A chegada de um primo um pouco mais velho,
filho do irmão de Zeca que veio morar e trabalhar na fazenda com toda a famíia,
provoca uma crise de rivalidade entre as irmãs. Severo, o primo, aproxima-se
mais de Belonísia, então com 12 anos de idade, o que deixa Bibiana com ciúmes.
Ao ver, certo dia, a irmã e o primo vindo sorridentes do fundo do quintal onde
estavam admirando os vaga-lumes da noite sob o pé de umbu, o ciúme de Bibiana
não a deixou dormir. No dia seguinte fez chegar à mãe a mensagem de que Belonísia
estava com o primo Severo debaixo do umbuzeiro e sem ter a certeza do que vira,
acrescentou à história a visão de um beijo. Belonísia foi castigada e o primo
foi impedido de continuar convivendo com as primas. Essa rivalidade foi o
início do afastamento das irmãs. Quando finalmente o primo volta a frequentar a
casa das meninas, Bibiana estabelece com ele uma intimidade às escondidas e,
aos 16 anos vai embora da fazenda com Severo, levando no ventre o filho deste.
Sai de casa antes do dia clarear sem nem mesmo se despedir dos pais.
Belonísia, cuja natureza
era forte, rude como uma onça, permanece em casa e passa a frequentar a escola
que havia sido inaugurada ali. Não se adapta ao regima escolar, sente-se
incomodada por não conseguir expressar-se e por se sentir deslocada, acha
aquele aprendizado desinteressante e sem propósito. Desiste da escola e se empenha cada vez mais
no serviço da fazenda, ajudando o pai no trabalho, até o dia em que vai morar
com Tobias.
Tobias, homem alto e
magro, que veio para trabalhar como vaqueiro da fazenda, aos poucos foi conquistando
a confiança de todos em Água Negra, até mesmo do capataz Sutério. Começa a
frequentar as festas de jarê na casa de Zeca Chapéu Grande, e, de longe, interessa-se por Belonízia que, muito quieta e envergonhada se esquiva de seu olhar
e evita qualquer contato com ele, embora sinta-se feliz ao perceber o interesse
do moço. Certa manhã o pai procura Belonísia
dizendo que Tobias queria levá-la para morar com ele, pois sentia-se muito
sozinho na tapera da margem do Santo Antônio. Beloníosia aceita o pedido e com um aperto no
peito, deixa a casa dos pais na companhia de Tobias, montada na garupa do
cavalo, levando apenas uma trouxa pequena de roupas e sabendo que a partir dali
escreveria os rumos que daria à sua vida num pedaço de papel pardo guardado
debaixo do colchão.
O casebre que ele morava
era sujo e cheio de entulho, de uma desordem tal que chocou Belonísia. Apesar
de um começo de arrependimento por ter aceitado a proposta do rapaz, resolveu, mesmo assim, se submeter a seu
destino, e se impôs o firme propósito de dar um jeito na tapera; limpava,
remendava, cozinhava, etc. Tobias que de início se mostrou afável e alegre, aos
poucos tornou-se agressivo, beberrão, reclamava de
qualquer coisa e a ofendia chamando-a de burra ou de aleijada da língua.
Não foram poucos os dias em que ela pensou em retornar à casa do pai, mas ao
mesmo tempo alimentava a esperança de que ainda poderia dobrar o marido. Obstinadamente
levava a cabo suas tarefas domésticas, além cultivavar uma roça no quintal. No
dia em que ele levantou a mão como se fosser dar-lhe um tapa, Belonísia sentiu
um bicho ruim roendo-lhe por dentro e o olhar que lançou para o marido fez com
que ele recuasse envergonhado, provavelmente por ter entrevisto e intuído a
fúria que ela guardava. Ele passou a ficar mais tempo fora de casa, deixou de ir ao jarê de Zeca e sempre chegava
bêbado, sujo de barro e de pintura de mulher. Passadas algumas semanas sem que ela soubesse do
paradeiro de seu homem, recebe a visita do vaqueiro da fazenda dizendo que a
levaria para o lugar onde encontrou Tobias caído.
Certo dia, enquanto
Tobias ainda era vivo, Belonísia, surpresa, encontra dentro de um pote velho jogado num
canto da casa, a faca que Donana, após o acidente com as meninas, havia jogado
no fundo do rio. Escondeu a faca rutilante num lugar que só ela conhecia e
esperou para ver se o marido sentiria falta do objeto. Pensou descobrir o
sentido de sua união com aquele homem: seu missão era recuperar a faca da avó.
Nesse universo de pessoas
marcadas pela dureza da vida, e vivendo numa terra hostil de sol perene e chuva
eventual, de maus-tratos, onde as pessoas morriam sem assistência, viviam como
gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo descanso, temos no romance
de Itamar Vieira Júnior um desfile de mulhers fortes, destemidas e que apesar
dos crueldade e do sofrimento causado pelas perdas de seus entes queridos,
conseguem retomar o rumo de seus destinos com esperança e determinação.
A faca de Donana e a
representação e o símbolo de um destino, que se repete a cada geração na
história dessas mulheres. Mulheres resistentes, mas capazes, ao mesmo tempo, de
assumir suas faltas e fraquesas, de reconhecer e enfrentar o medo e de
recomeçar a cada dia. Os homens se vão, as mulheres ficam e recomeçam. A onça
que Belonísia mata no final do romance, sob a intervenção da encantada Santa
Rita Pescadora, e que não é o mesmo tipo de onça que protegeu de Zeca Chapéu
Grande quando ele, louco, se refugiou no mato, essa outra onça é a
representação desse Brasil que se
sustenta na desigualdade econômica e social e na exploração de trabalhadores,
sobretudo os que vivem nas zonas rurais, no racismo e na violência.
Trata-se de um livro de
leitura fácil, com uma escrita ágil e com um tema bastante interessante.
Recomendo a leitura.
Brasilia, 19 de
outubro de 2021.