terça-feira, 19 de outubro de 2021

Torto Arado

 

Resenha do Livro TORTO ARADO, de Itamar Vieira Jr.

Por Priscila Fernandes Costa


Torto Arado, o premiadissimo livro de Itamar Vieira Júnior  - vencedor do prêmio LeYa em 2018, do prêmio Jabuti em 2020 e do prêmio Oceanos de Literatura – narra a vida dos trabalhadores rurais brasileiros vivendo na fazenda Água Negra, na Chapada Diamantida, interior da Bahia. Itamar é geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Conta que começou a esboçar o romance aos 16 anos de idade, inspirado sobretudo pela escrita de Raquel de Queiroz e José Lins do Rego. Nessa época chegou a escrever 80 páginas que tratavam da relação conflituada de duas irmãs. Acabou por deixar o romance de lado quando começou o curso de geografia e esse primeiro esboço de 80 páginas iniciais se perdeu.

Há cerca de 13 anos ingressou no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) onde vem realizando trabalho de campo no interior do Nordeste. Foi aí que teve contato direto com uma realidade que só conhecia através dos romances que leu. Conheceu famílias inteiras de trabalhadores que vivem em um sistema semelhante à escravidão, que não recebem dinheiro pelo dia de trabalho e só têm direito à morada. A dureza do cotidiano destes trabalhadores renovou a motivação para retomar o antigo projeto do livro. Juntou, então, a história inicial das duas irmãs com o que pode obervar ali.

No romance, o autor toma emprestado não somente as experiências destes trabalhadores rurais, mas também a linguagem melodiosa que utilizam. O título do romance – Torto Arado – que já era o título de seu primeiro esboço, vem de um verso de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810):

E doravante a mão negra da morte

(...) lhe arranca os frios ossos

ferro do torto arado.

Em uma entrevista o autor diz que o que chamou sua atenção foi “essa imagem de um arado torto velho, como se fosse um símbolo de uma realidade imutável, de um campo onde o arado ainda é instrumento de trabalho, apesar da mecanização brutal”.

A trama do livro gira em torno da família do trabalhador rural Zeca Chapéu Grande, curador de jarê – religião afro-brasileira que tem suas raízes na umbanda, no espiritismo e no catolicismo, conhecida também como “candomblé de caboclos” e que é muito praticada na Chapada Diamantina –,  tinha por missão  restituir a saúde do corpo e do espírito aos que necessitavam; além disso, era considerado o pai espiritual de toda a gente de Água Negra. Além de comandar as “brincadeiras do jarê” – era assim que chamavam as cerimônias nas quais recebiam e incorporavam os encantados – e curar corpos doentes e espíritos perturbados, Zeca Chapéu Grande fazia as vezes de líder político, de pelego, e de apaziguador dos conflitos entre trabalhadores que se revoltavam por considerar que a terra pertencia a quem nela trabalhava.

Casado com Salustiana Nicolau, era pai de quatro filhos: Bibiana, Belonísia, Zezé, o único menino e Domingas a caçula. Compunha, ainda, essa família, sua mãe Donana, conecida também mãe como de pegação de muitos na fazenda, pois era quem se encarregava do parto das mulheres dali.

O romance é divido e três partes. Na primeira parte, o relato é feito por Bibiana, a filha mais velha e é centrado na infância das meninas.  Na segunda parte, os acontecimentos são narrados por Belonísia, e trata do tempo de saída da infância e ingresso na idade adulta, numa jornada em direção ao lugar de mulher.  Por último temos o relato de uma encantada, Santa Rita Pescadora, entidade do jarê, conhecedora da intimidade e dos segredos dos moadores da região e principalmente do destino das duas irmãs.

Os empregados da fazenda eram  quase todos descendentes de negros escravisados, que aceitavam trabalhar em troca de um lugar para morar e no qual só podiam construir casebres de paredes de barro e telhado de junco, e cultivar roças no quintal, cujos produtos tinham que dividir com o capataz ou com o patrão. Não recebiam salário e o único dinheiro que conseguiam era quando vendiam os produtos que plantavam na feira, ou quando obtinham a aposentadoria rural.

Bibiana e Belonísia são as protagonistas da estória que começa qundo as duas tinham, respectivamente, 7 e 6 anos de idade e provocam  o acidente que marcará suas vidas para sempre. Eram crianças curiosas e teimosas sempre prontas a transgredir as ordens dos adultos, sobretudo as da avó Donana. Por serem as mais próximas eram também as que mais se desentendiam. Brigavam e brincavam com a mesma disposição.

Certo dia as meninas vendo a avó se afastar da casa em diração ao quintal, se embrenhando na mata próxima, Bibiana, a mais curiosa das duas, instiga a irmã para que tentem descobrir, no quarto da avó, o que ela mantinha escondido em uma mala  de couro envelhacida e suja em baixo da cama. Dentro da mala, por baixo de algumas peças de roupas antigas e surradas havia um tecido sujo e manchado envolvendo um objeto que chamou a atenção das meninas. Embrulhada ali encontrava-se uma faca, nem grande nem pequena,  perfeitamente nova e brilhante, cabo de marfim, sem nenhum arranhão. Fascinadas com o objeto, as irmãs começaram a disputar a posse da faca, cada uma querendo tê-la nas mãos, quando inesperadamente Bibiana coloca o metal na boca, “tamanha era a vontade de sentir seu gosto”. Quase ao mesmo tempo Belonísia puxa a faca de forma violenta e a arranca da boca da irmã, levando o metal à boca.  Belonísia que agora estava com  a faca na boca, ao ver o sangue escorrer pelo queixo da irmã, tira imediamente a faca de sua boca e se corta também. O resultado desta travessura foi que Belonísia teve a língua decepada e Bibiana, parte da língua cortada. Nos primeiros meses após o ocorrido as irmãs foram tomadas de um sentimento de união que estava embotado com aquele passado de brigas e disputas infantis. Com o tempo puderam retornar às brincadeiras, deixaram as disputas para trás pois, daí em diante, uma teria que falar pela outra.

Contudo, a origem e causa da tragédia das irmãs remonta a muitos anos antes, durante a juventude da avó Donana. Donana, como era conhecida, uma vez que ninguém jamais soube seu nome verdadeiro, nasceu e foi criada na fazenda Caxangá. Órfã, viveu com a familia do capataz da fazenda onde era encarregada dos serviços domésticos. Ainda menina começou a ver objetos balançarem de forma violenta, o mato seco queimar por onde caminhava, roupas desaparecerem como palha seca e outros fenômenos que deixavam a todos amedrontados. Por fim passou a receber encantados. Ainda jovem aprendeu a manejar ervas e raízes para fazer remédios para os mais distintos males que acometiam as gentes. Tornou-se raizeira e parteira. Na fazenda Caxangá conheceu seu primeiro marido, José Alcino que veio a falecer pouco antes do nascimento de Zeca, o filho mais velho.

Certo dia Donana viu uma bela faca esquecida no alpendre da casa sede da fazenda. Olhou ao redor e constatou que não havia ninguém por perto, retirou a faca do coldre, enfiou o objeto no seu cesto de palha, em meio aos aipins, pedindo a Deus que a perdoasse por aquele ato, e saiu dali antes que alguém pudesse surpreendê-la. Pensou que poderia ganhar algum dinheiro com a venda da  faca, mas como foi se afeiçoando ao objeto acabou por enterrá-lo debaixo da própria cama.

Mais ou menos na mesma época arranjou seu terceiro “marido”. No início o convívio com esse novo companheiro era calmo e amigável, até que ele passou a beber. Tornou-se, então, agressivo e hostil. Certo dia, ao entrar em casa, encontrou seu homem em cima de sua filha, moça há poucos anos, e quase enlouqueceu. A filha, Carmelita, tomada de culpa saiu da casa da mãe e Donana jamais soube dela.

Numa noite escura por causa das núvens pesadas que trariam um grande aguaceiro Donana tomou a decisão de acabar com o sofrimento de ambas, mãe e filha. Seu homem saiu para pescar levando uma garrafa de bebida. Ela o seguiu algum tempo depois e quando o encontrou viu que ele dormia prosternado. Sangrou o homem como se sangrasse um porco e afundou o corpo no rio. Na madrugada que se seguiu, teve apenas uma certeza: Deus jamais a perdoaria. Pior: devolveria o malfeito em dobro. Por isso quando aconteceu o acidentes com as netas sentiu que seu passado trazia de volta coisas que não queria recordar e que através daquela tragédia estava quitando a dívida contraída em consequência de seu ato. Jamais se recuperou do que ocorreu com as meninas e uma desordem se instalou em seus pensamentos e em seus falares, as coisas que falava já não faziam sentido. Seu desatino termina numa tarde quente de fevereiro quando, aproveitando a distração de Bibiana, se embrenhou no mato em direção ao rio. A neta encontrou seu corpo emborcado como um bicho na beira e dentro d’água.

Zeca Chapéu Grande, cujo nome de batismo era o mesmo de seu pai, José Alcino, foi quem assumiu a incumbência destinada pelos encantadores à sua mãe, e tornou-se curador de jarê. Tinha uma face mágica e embora parecesse aos olhos das filhas um pai igual aos outros, tinha sua paternidade ampliada aos aflitos, doentes, necessitados de remédios que não havia nos hospitais e da sabedoria que não havia nos médicos ausentes daquela terra. Agia com grande afeição diante das dificuldades mais díspares que chegavam à sua porta. Da loucura ele entendia bem, porque ele mesmo já havia caído louco num período remoto de sua vida, como castigo pela desobediência de sua mãe que se recusou a cuidar dos encantados e a colocar jarê em sua casa. Carregou o fardo de sua mãe como castigo dos santos para ela. Foi o primeiro dos onze filhos que Donana teve com diferentes maridos. O codinome Chapéu Grande, bem como o chapéu que usava o tempo todo, herdou da mãe, que por sua vez o herdou do falecido marido.

Os anos se sucederam e as meninas foram crescendo e juntas aprendendo a superar a dificuldade de comunicação de Belonísia, que teve a língua decepada. A chegada de um primo um pouco mais velho, filho do irmão de Zeca que veio morar e trabalhar na fazenda com toda a famíia, provoca uma crise de rivalidade entre as irmãs. Severo, o primo, aproxima-se mais de Belonísia, então com 12 anos de idade, o que deixa Bibiana com ciúmes. Ao ver, certo dia, a irmã e o primo vindo sorridentes do fundo do quintal onde estavam admirando os vaga-lumes da noite sob o pé de umbu, o ciúme de Bibiana não a deixou dormir. No dia seguinte fez chegar à mãe a mensagem de que Belonísia estava com o primo Severo debaixo do umbuzeiro e sem ter a certeza do que vira, acrescentou à história a visão de um beijo. Belonísia foi castigada e o primo foi impedido de continuar convivendo com as primas. Essa rivalidade foi o início do afastamento das irmãs. Quando finalmente o primo volta a frequentar a casa das meninas, Bibiana estabelece com ele uma intimidade às escondidas e, aos 16 anos vai embora da fazenda com Severo, levando no ventre o filho deste. Sai de casa antes do dia clarear sem nem mesmo se despedir dos pais.

Belonísia, cuja natureza era forte, rude como uma onça, permanece em casa e passa a frequentar a escola que havia sido inaugurada ali. Não se adapta ao regima escolar, sente-se incomodada por não conseguir expressar-se e por se sentir deslocada, acha aquele aprendizado desinteressante e sem propósito.  Desiste da escola e se empenha cada vez mais no serviço da fazenda, ajudando o pai no trabalho, até o dia em que vai morar com Tobias.

Tobias, homem alto e magro, que veio para trabalhar como vaqueiro da fazenda, aos poucos foi conquistando a confiança de todos em Água Negra, até mesmo do capataz Sutério. Começa a frequentar as festas de jarê na casa de Zeca Chapéu Grande, e, de longe,  interessa-se por Belonízia que, muito  quieta e envergonhada se esquiva de seu olhar e evita qualquer contato com ele, embora sinta-se feliz ao perceber o interesse do moço. Certa manhã o pai  procura Belonísia dizendo que Tobias queria levá-la para morar com ele, pois sentia-se muito sozinho na tapera da margem do Santo Antônio.  Beloníosia aceita o pedido e com um aperto no peito, deixa a casa dos pais na companhia de Tobias, montada na garupa do cavalo, levando apenas uma trouxa pequena de roupas e sabendo que a partir dali escreveria os rumos que daria à sua vida num pedaço de papel pardo guardado debaixo do colchão.

O casebre que ele morava era sujo e cheio de entulho, de uma desordem tal que chocou Belonísia. Apesar de um começo de arrependimento por ter aceitado a proposta do rapaz,  resolveu, mesmo assim, se submeter a seu destino, e se impôs o firme propósito de dar um jeito na tapera; limpava, remendava, cozinhava, etc. Tobias que de início se mostrou afável e alegre, aos poucos tornou-se agressivo, beberrão,  reclamava de  qualquer coisa e a ofendia chamando-a de burra ou de aleijada da língua. Não foram poucos os dias em que ela pensou em retornar à casa do pai, mas ao mesmo tempo alimentava a esperança de que ainda poderia dobrar o marido. Obstinadamente levava a cabo suas tarefas domésticas, além cultivavar uma roça no quintal. No dia em que ele levantou a mão como se fosser dar-lhe um tapa, Belonísia sentiu um bicho ruim roendo-lhe por dentro e o olhar que lançou para o marido fez com que ele recuasse envergonhado, provavelmente por ter entrevisto e intuído a fúria que ela guardava. Ele passou a ficar mais tempo fora de casa,  deixou de ir ao jarê de Zeca e sempre chegava bêbado, sujo de barro e de pintura de mulher. Passadas  algumas semanas sem que ela soubesse do paradeiro de seu homem, recebe a visita do vaqueiro da fazenda dizendo que a levaria para o lugar onde encontrou Tobias caído.

Certo dia, enquanto Tobias ainda era vivo, Belonísia, surpresa,  encontra dentro de um pote velho jogado num canto da casa, a faca que Donana, após o acidente com as meninas, havia jogado no fundo do rio. Escondeu a faca rutilante num lugar que só ela conhecia e esperou para ver se o marido sentiria falta do objeto. Pensou descobrir o sentido de sua união com aquele homem: seu missão era recuperar a faca da avó.

Nesse universo de pessoas marcadas pela dureza da vida, e vivendo numa terra hostil de sol perene e chuva eventual, de maus-tratos, onde as pessoas morriam sem assistência, viviam como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo descanso, temos no romance de Itamar Vieira Júnior um desfile de mulhers fortes, destemidas e que apesar dos crueldade e do sofrimento causado pelas perdas de seus entes queridos, conseguem retomar o rumo de seus destinos com esperança e determinação.

A faca de Donana e a representação e o símbolo de um destino, que se repete a cada geração na história dessas mulheres. Mulheres resistentes, mas capazes, ao mesmo tempo, de assumir suas faltas e fraquesas, de reconhecer e enfrentar o medo e de recomeçar a cada dia. Os homens se vão, as mulheres ficam e recomeçam. A onça que Belonísia mata no final do romance, sob a intervenção da encantada Santa Rita Pescadora, e que não é o mesmo tipo de onça que protegeu de Zeca Chapéu Grande quando ele, louco, se refugiou no mato, essa outra onça é a representação desse Brasil  que se sustenta na desigualdade econômica e social e na exploração de trabalhadores, sobretudo os que vivem nas zonas rurais, no racismo e na violência.   

Trata-se de um livro de leitura fácil, com uma escrita ágil e com um tema bastante interessante. Recomendo a leitura.

Brasilia, 19 de outubro de 2021.