quarta-feira, 14 de julho de 2021

O Gênio e a Deusa - Aldous Huxley

 POR GUIDO AZEVEDO
 
Aldous Huxley   26/07/1894 - 22/11/1963 
 
Aldous Huxley era neto do proeminente biólogo Thomas Henry Huxley e era o terceiro filho do biógrafo e homem de letras Leonard Huxley;  seus irmãos incluíam o fisiologista Andrew Fielding Huxley e o biólogo Julian Huxley .
 Ele foi educado em Eton, internato inglês que deu 19 primeiros ministros. período em que ficou parcialmente cego por causa de ceratite. Ele manteve a visão o suficiente para ler com dificuldade e se formou no Balliol College, Oxford, em 1916. Publicou seu primeiro livro em 1916 e trabalhou no periódico Athenaeum de 1919 a 1921. Depois disso, dedicou-se em grande parte à própria escrita e passou grande parte de seu tempo na Itália até o final dos anos 1930, quando se estabeleceu na Califórnia.
Huxley se estabeleceu como um grande autor já nos dois primeiros romances publicados, sempre de modo satírico e inteligente, espirituosas e maliciosas sobre as pretensões dos círculos literários e intelectuais ingleses de sua época. Ele sempre se preocupou com os impactos negativos e positivos da ciência e da tecnologia na vida da humanidade e antecipou as grandes ideias sobre a conquista do espaço, evolução do controle social e das restrições às liberdades individuais, tornando-se um dos escritores e intelectuais mais representativos do século XX.
 
LIVROS:
 Admirável Mundo Novo    --------Sociedade do Cansaço-----A Ilha ---------As Portas da Percepção ---- Não Verás país nenhum --- A situação Humana --- Folhas Inúteis --- Contraponto --- Visionários e Precursores --- A primeira e última Liberdade --- Música na Noite --- Moksha --- Também os Cisnes Morrem --- O Tempo deve Parar --- Regresso ao Admirável Mundo Novo --- O Despertar do mundo Novo --- O Macaco e a Essência --- Sem Olhos em Gaza --- A Filosofia Perene.  

Eu e Huxley
Saudade de minha juventude e do tempo em que lia como forma de vida, lia para viver muitas vidas, o mais rápido, o mais profundo. Lia e não discutia, não contrastava, não me contrapunha a tudo, como fazia na vida real. A letra de forma era uma verdade que absorvia sem competência para arguir, era pura formação intelectual e pessoal.
Tive sorte, muita sorte porque as estantes da Biblioteca Bruno Accioly eram vizinhas à minha casa. Fazendo um parêntese, estou em dívida por não trazer Bruno Accioly ao grupo, meu conterrâneo, morreu em 66 e é considerado um dos maiores contistas brasileiros. Depois eu conto por que ele, que tem seu centenário comemorado esse ano, nunca foi um dos meus prediletos.
Mas a sorte foi a qualidade do que li nesse tempo e sinto saudade. Aldous Huxley é um deles. Um mestre, lia e me enebriava, pouco compreendia, mas vivia cada aventura, cada dúvida existencial, transformando em pessoal os problemas dos personagens, rindo e chorando vivendo por eles, uma vida dos outros que acumulava como sentimentos.
Huxley embora inglês, de família nobre, que incluía os mais distintos membros da elite social e intelectual inglesa, passou grande parte de sua vida nos Estados Unidos, era quase cego, cético, humanista e de uma cultura enciclopédica.
Quantas dúvidas existências estão registradas nos seus livros. Sempre mostrando as discrepâncias entre o idealizado e o vivido, entre a história e a verdade como foco de reflexões. Ainda hoje me questiono, como tanto conhecimento cabia em uma vida? Por que os escritores do início do século XX eram tão cultos, guardavam uma visão tão humanista, trabalhavam com valores tão sólidos? Esses valores que foram se alargando, se superficializando, até virarem um verniz de colorir, que hoje administramos, e que a cada geração parece se esvair mais um pouco. Embora no conjunto geral da ciência estejamos a evoluir a velocidade incrível, parece que essa percepção é permanente e fruto da mudança de gerações.
Sinto hoje, o que ele descrevia e eu não concordava que minha geração era mais ignorante que a anterior e me prometi ser mais indulgente com as gerações futuras. No entanto, hoje já não tenho essa certeza, vendo o conhecimento ser transferido para motores lógicos manobrados por inteligência artificial que acham respostas surpreendentes, mas não ensinam o caminho nem acrescentam saber, são mudanças próprias das gerações.
Lembro a naturalidade com que me imaginava muito distante da sociedade “perfeita” que ele descrevia no épico Admirável Mundo Novo e tinha dúvida que seria factível em minha estada no mundo.
O romance apresenta uma visão de pesadelo de uma sociedade futura na qual o condicionamento psicológico forma a base para um sistema de castas cientificamente determinado e imutável que, por sua vez, oblitera o indivíduo e concede todo o controle ao Estado Mundial. Nele, a servidão seria aceitável devido a doses regulares de felicidade química e ortodoxias e ideologias seriam ministradas em cursos durante o sono.
Eu não tinha resistência a qualquer tipo de futuro que se apresentasse naquele tempo, mas também vestia a capa do herói que foge com sua amada para viver uma vida mais natural na floresta, junto aos selvagens, buscando recriar uma velha sociedade de liberdade e amor. Acreditava que a realidade seria muito diferente da imaginado pelo escritor. No entanto, ele indicava para onde estávamos indo.
Huxley sempre me pareceu como um professor e pensador voltado para a educação da humanidade, sem filosofia profunda, só com aforismos e verdades nos seus livros para serem refletidas e assimiladas para o bem da humanidade, não via maldade ou pessimismo, apenas alertas.
Não achava, nada supérfluo ou exagerado e suas colocações sempre me foram muito gratas, até quando se excedia em mescalina e desejava que as igrejas as dispusessem para seus fieis chegarem mais perto de Deus, eu concordava. 
Não imaginava que viveria para ver as ideologias serem derramadas com ódio pelos meios de comunicação e pelas redes sociais, sem o lenitivo da química. Que a servidão seria tão corriqueira, que os contemporâneos nem se perceberiam servos. Que a felicidade química seria tão cara e cada vez mais perseguida, de modo arbitrário, como fuga pessoal da realidade e não como modo de buscar o sublime, como ele defendia nas Portas da Percepção. No entanto, ele avisara e mostrava para onde estávamos indo com acerto e inteligência.
De “Sem Olhos em Gaza” só lembro o peso, a cor e o cheiro do livro. Não devo ter entendido quase nada das elucubrações mentais e discussões filosóficas. Sei que me transferiu uma simpatia por Gaza e seus habitantes até hoje. Não conhecia o livro O Gênio e a Deusa.
Perdoem as reminiscências.
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 O Gênio e a Deusa – Aldous Huxley   
O Gênio e a Deusa foi a penúltima das doze ficções de Aldous Huxley, escrita em sua última década de vida, tem poucos personagens e menos digressões e referências a outras formas de cultura, não tem maiores testemunhos e conflitos de ideias, é mais uma vivência comparada, dizem seus críticos.
O mal da ficção disse John Rivers é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.” Diz o personagem e narrador em primeira pessoa, contando ao amigo da família, escritor que o visita na época de natalina, ambos em idade avançada, episódio épico de sua vida, sob a falsa garantia de não revelar ao público.
Ao que o escritor, que não é nomeado, pergunta. Nunca? E ele responde Talvez para Deus; para nós humanos, nunca. “A ficção tem unidade, a ficção tem estilo. A realidade não possui nem uma coisa nem outra. Em seu estado bruto, a existência é sempre um infernal emaranhado de coisas”.
“O critério da realidade é sua incongruência intrínseca.... Por estranho que pareça, as ficções mais vizinhas da realidade são sempre as que se têm por menos verossímeis – Inclinou-se e tocou a lombada de um surrado exemplar de Os Irmãos Karamazov. – Isto faz tão pouco sentido que chega a ser quase real.”
Mostrando na estante o livro A Vida de Henry Maartens comenta que é ficção oficial ao invés da biografia oficial. Perguntado pelos fatos verdadeiros da vida de Maartens, ele diz que a verdade é sempre mais complexa e promete contar a versão correta ao amigo, mas não para o público, embora, prefira confiar as filhas à Casanova que segredos a um romancista.
Quando ele conta a história de O Gênio e a Deusa está na faixa de sessenta anos, vendo fatos de seus vinte e oito com melancolia e indignação. Diz que se achava “Bronco, tímido e profundamente provinciano” e de repente foi submetido a uma realidade que lhe forçou uma expansão, um aprofundamento dos sentidos e das emoções, sem nenhuma preparação.
A qualidade da conversa, a precisão dos textos, a concisão do diálogo me encanta em Huxley, é como se estivesse o leitor ali ao lado, observando a conversa. Ele não dialoga com o leitor como faz com frequência Machado, ele supõe um leitor presente e vai fumando seu cachimbo, bebendo seu uísque, calmamente e contando sua história, que inicia até com certa pasmaceira, sem pressa, sem aventura, um rememorar de juventude. 
Rivers se achava nessa época um jovem inexperiente cientista atormentado pelo sentimento de insuficiência, filho único, educado pela mãe luterana viúva dentro de rígidos princípios morais e religiosos, foi arrancando de sua realidade comezinha após ser aprovado em exame cujo prêmio foi um estágio junto ao famoso cientista Henry Maartens para auxiliá-lo em algumas pesquisas, por tempo limitado e salário ínfimo.
Com muita relutância, muitas orações e recomendações, a mãe aprovou a saída do filho de casa. A chegada de Rivers na residência dos Maartens, é um caso à parte, e prenuncia uma convivência problemática. Parado na sala por cinco minutos, ninguém da família o percebe, mesmo após seus sinais.  Todos parecem alheios ao mundo. No entanto ele é bem aceito, identificado e integrado à família com certa facilidade. Na casa habitavam o casal Henry e Katy, os filhos Ruth e Timmy que tinha hobbys específicos e estranhos e a empregada Beulah que orquestrava a harmonia geral.
Rivers analisa Henry, como sendo um gênio intelectual, uma criança insegura na vida regular e um retardado nas ralações humanas e sociais.   A Ruth tem como ocupação predileta rascunhar poemas de gosto duvidoso e Timmy vivia eternamente na construção de uma ferrovia de brinquedo que as pessoas teimavam em desmantelar ao se deslocarem pela casa. A Katy era o centro de comando da casa. Lia e cozia, decidia o que os outros tinham que fazer e ainda estimulava Maartens a desenvolver suas teorias avançadas de física nuclear e o suportava em suas crises de asma e depressões doentias.
Rivers conta que consegue responder bem no apoio aos estudos científicos de Henry, e em casa é assumido com faz tudo e apoio operacional da casa. Não se fala se ele é remunerado, mas apenas que foi integrado à família como se fosse um Maartens. Não o deixam se mudar quando consegue um quartinho para viver e lhe colocam tarefas domésticas de acompanhamento didático dos filhos, dirige para Henry e acompanha Katy em suas atividades externas.
Além disso, Rivers fala dos conflitos adolescentes de Ruth, com seus poemas crus e viscerais acompanhados pela maquiagem forte e insinuações de paixão e revolta; de como o professor Henry era um gênio em seu campo de átomos e mais infantil que o filho; de Timmy, o membro da família mais normal; de Beulah, a empregada, que faz as coisas acontecerem na casa e outras narrativas um pouco exaustivas e quase cansativas. Essa primeira parte do livro cheguei a achar chata e sem emoção. Mas era um encaminhamento para a aventura principal da trama.
Kate, que comandava com maestria a casa, como se tocasse uma sinfonia, sustentava as despesas domésticas e criava conexão entre o professor e o mundo concreto. Ele tinha idade para ser pai dela e estava noiva de um idiota rico, quando o conheceu. Não sabe o que aconteceu, mas em coisa de semanas, deixou o pai, os pretendentes ricos e a fazenda para casar-se com Henry e se tornar involuntariamente seu provedor.
“Mas nada parecia abalar Katy, mesmo algumas crises de Ruth não a incomodavam, nem o comportamento apático do marido, é como se estivesse noutra realidade onde o mundo ‘real’ fosse apenas uma passagem e seus percalços meras intempéries climáticas.”
O convidado pergunta a John Rivers: “você era apaixonado por ela? – Perdidamente”, falou com um misto de tristeza, saudade e admiração.
Porém, um fato perturbou a vida dos Maartens: a mãe de Katy adoeceu, e a filha viajou em seu socorro. Sem suportar a ausência dela, Henry, que usa costumeiramente a asma e a febre como estratégia de sugar a energia de Kate e força-la a se dedicar a ele, novamente mergulha em enfermidades com uma febre forte, mas Beulah, recorda Rivers, o advertiu de que era cena para forçar a esposa a retornar logo e que já funcionou em ocasião semelhante.
A arquitetura do romance chega ao ápice nesse momento do retorno de Katy para casa para salvar seu marido que se encontra em estado terminal. Na noite em que retorna, receba a notícia do falecimento de sua mãe e desaba em sua mais profunda tristeza.   Agora com sua mãe morta e seu marido às portas da morte, cansada e triste ela perde toda a energia, fica estranha, sem aparentar a força de antes, como se tivesse perdido a luz, a força da deusa,  perdido a graça divina,  como aponta Beulah.
Á noite, aos prantos, ela procura consolo ao lado de Rivers e acabam tendo um prazeroso relacionamento sexual, que desencadeia uma tempestade de emoções, abre um conflito de sentimentos, de autojulgamento, de decisões não realizadas, de buscas, de exaltação do amor como fonte de poder divino, como elixir de salvação, redenção e condenação. Tudo isso na cabeça de Rivers, que não consegue superar sua formação materna, luterana.
São descritas com maestria as posições antagônicas das partes, frente ao relacionamento sexual extraconjugal. A de Kate, autentica, pessoal e benfazeja, capaz de restituir-lhe a vida, a energia, a graça divina sentida e demonstrada ao retomar seu poder e se reconfigurar como outrora e, do outro lado o sofrido Rivers envergonhado do próprio sentimento, incapaz de aceitar sua própria condição de apaixonado, subindo até o êxtase corporal, mas maculando-se com as recriminações dos valores morais da sua mãe.
Assusta-se como sacrílego ao perceber o poder, a força e a grandiosidade natural de Kate, mas recrimina-a, julga-a e tenta corrigi-la segundo sua cartilha que lhe impõe um sacrilégio em seu catecismo.  Com pequenas atitudes de julgamento, cria condições desarmoniosas entre Kate e a filha, o que acabar produzindo uma tragédia, que o faz se sentir culpado e reconhecer sua pequenez diante da vida, levando-o a grande depressão.
As páginas 73 até a 91, são memoráveis, puro deleite, com uma discussão fina, filosófica profunda, sutil, inteligente e esclarecedora.
Huxley sempre me deixa assim, meio extasiado. Como se é capaz de ir tão profundamente na alma humana? Como ele é capaz de dizer o sentimento de pessoas tão antagônicas? e refletir sobre suas dúvidas e sofrimentos, a partir de pontos de vistas tão diferentes?  
“A verdade é a libertação; mas, por outro lado, não é prudente acordar o cão que dorme e muito menos provocar o que não dorme”.
“Convém ter em mente que as guerras mais implacáveis não são as que se travam em nome das coisas; e sim as que se travam em torno das tolices que idealistas eloquentes disseram sobre as coisas.    em outras palavras, as guerras religiosas. ... “Que ledes meu senhor?” “Palavras, palavras, palavras” E o que faz uma palavra? Resposta: Cadáveres, milhões de cadáveres”.
Ao final, o romance surpreende pela sequência violenta de acontecimentos que podem ser analisados à luz das suas palavras iniciais: “O mal da ficção é que ela faz sentido demais. A realidade nunca faz sentido.”
Esta geometria nos livros de Huxley, que inicia formando um triângulo com ele antes de Kate, Ele hoje e Kate, para mostrar como se transformou com sua convivência e se perdeu totalmente depois dela, sendo salvo por Elena sua atual mulher, que dá significado à parábola de Cristo: “Que os mortos enterrem seus mortos. Se quisermos viver cada instante tal como ele se apresenta, temos de morrer para todos os outros instantes”.  
E Rivers termina de contar de seu tempo com os Maartens indicando que ele teve mais duas esposas e que morreu com mais de 80 anos e hoje é pó e livros.
Recomendo.   11/07/21