domingo, 11 de abril de 2021

Lincoln no Limbo - por Cris Rauen

 


O romance “Lincoln no Limbo”, de George Saunders, conta a história dos últimos dias de Willie Lincoln, do luto de seu pai, uns dos presidentes norte-americanos mais reconhecidos da história, e da interação de várias almas presas no limbo.

A estrutura do livro é muito inovadora. Capítulos relatando a história daquele acontecimento por meio de biografias do presidente e textos jornalísticos, são entrecortados por capítulos narrados do além por 166[1] personagens, em um marcante estilo teatral.

Foi um livro muito aclamado à época de seu lançamento, tendo recebido diversos elogios da mídia e uma série de prêmios, como o Man Booker Prize, de 2017, que é considerado o maior prêmio literário da língua inglesa.

Às voltas com os desdobramentos do início da guerra civil americana, o presidente Lincoln perde seu filho, William, de 10 anos, em decorrência de uma febre tifoide. Lincoln era muito apegado ao menino, que era tido como uma cópia perfeita do pai.

A obra, então, retrata os momentos vividos por Lincoln e por seu filho logo após sua passagem, ambos resistindo ao processo da dolorosa partida. De um lado Lincoln pai, que faz recorrentes visitas ao túmulo da criança, chegando até mesmo a abrir o caixão e segurar o pequenino corpo inconsolável. De outro, Lincoln filho, o espírito, que não consegue partir dali e fica perdido no limbo.

Boa parte da narrativa e dos diálogos acontece numa espécie de primeiro estágio após a morte. Fica clara a necessidade de que as almas que ali chegam devem partir dali e nessa tentativa de sair desse lugar ocorrem episódios em que espécies de anjos tentam guiar as almas penadas para o seu destino final. Willie resiste ao assédio dos tais anjos de sair do limbo, e justifica essa resistência em permanecer pela promessa feita pelo pai de que voltaria a encontrá-lo.

Enquanto esperava pelo encontro com o pai, muitas almas perdidas passaram a importunar Willie. Almas que se divertiam com o desespero da criança e com seu processo de definhamento e angústia. Apesar disso, Willie era defendido pelos três personagens protagonistas do enredo que se passa nesse espaço entre céu e terra: Hans Vollman, Roger Bevins e o reverendo.

Os três personagens são também almas presas no limbo, que assumem o papel de guias aos recém desencarnados, mas também às pessoas que permanecem na terra, entrando em seus corpos, conversando com elas, manipulando suas ações e tomando contato com as informações do que está acontecendo no mundo.

Num dos trechos da obra, é possível identificar o período em que viveu um dos três personagens centrais do limbo. Numa das tentativas de ajudar o menino a partir, os três guias entram no corpo de Lincoln pai para tentar promover o encontro tão esperado por Willie, e descobrem que se trata do presidente americano. Um dos guias comenta, então, a sua confusão ao imaginar que o presidente americano ainda seria Taylor. Trata-se, portanto, de Zachary Taylor, que foi o 12º presidente americano, no período de 1849 a 1850. Abraham Lincoln foi o 16º presidente dos Estados Unidos, governando o país cerca de dez anos depois, entre 1861 e 1865.

As almas presas no limbo, de fato, não tinham consciência de que estavam mortas. Muitas delas, assim como Willie, acreditavam que seus parentes ainda estavam à sua procura. Inclusive não se referem a seus caixões como tal, chamam de “caixas de doente”, provavelmente por entenderem que tenham sido colocados ali para tratarem das situações que os acometiam no período prévio às respectivas mortes.

O reverendo era a única alma do limbo que sabia a verdade. Ele tinha passado por uma experiência pós morte diferente da que tinham passado os demais. Ele sabia que estavam todos mortos e também sabia o que esperava por eles após esse estágio intermediário da chegada.

O reverendo nunca tinha dito a verdade a ninguém, mas, sensibilizado pela situação, contou a verdade ao menino. Contou que estava preso no limbo por opção, pois já tinha passado pelo processo de julgamento que definiria o local para onde iria após a passagem intermediária, mas fugiu ao ver os horrores passados por um recém-morto à sua frente.

Se não fosse para uma tenda maravilhosa, iluminada, cheia de luz, ao lado do senhor Jesus Cristo, ele sabia que iria ser literalmente comido por almas em outro estágio de evolução. Teve medo e fugiu, ficando preso no limbo.

Ter acompanhado a saga de Willie fez com que o reverendo tomasse coragem e decidisse partir, enfrentando o seu destino após o limbo. O menino, alertado pelo reverendo de que já não fazia mais parte do mundo dos vivos, também decide deixar o limbo. Ambos, passaram, então, pelo processo que o livro chama de “conversão matéria-luz”, deixando finalmente aquele lugar onde restaram as outras almas penadas, absortas num misto de resignação, tormento e medo.

O capítulo que retrata os pensamentos do menino logo após a conversão matéria-luz é belo e tocante. Willie sente que tudo lhe é permitido a partir de então: sair da cama, festejar, tomar champanhe, pendurar-se no pedestal, sair voando pela janela… Ele se sente livre! Livre como um menino deve ser.

Por sua vez, a partida de Willie acaba finalmente libertando o próprio Lincoln pai de seu sofrimento e a narrativa nos leva a entender que esse acontecimento foi também fundamental para dar a Lincoln a força necessária para perseverar em sua luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos. No capítulo final, o autor nos leva a supor que a luta de Lincoln possa também ter sido influenciada pelo escravo Thomaz Havens, numa cena de incorporação da alma penada no presidente durante um de seus passeios a cavalo.

Lincoln no limbo é uma obra experimental, com ritmo um pouco difícil e que pode não prender o interesse do leitor em seus primeiros capítulos. No entanto, à medida que vamos compreendendo sua construção e dinâmica de leitura, pode tornar-se muito interessante. Algo que me chamou a atenção são os extratos de biografias e textos de jornal sobre Lincoln e a morte de William à época.

A visão retratada naquele momento sobre sua vida, figura, personalidade, fatos domésticos da Casa Branca, entre outros é, de fato, muito interessante, e traz ao leitor não só a percepção, com elevado grau de sordidez, da sociedade daquela época, mas de como o presidente e a sua esposa enfrentaram a doença e a perda do filho.

Um dos extratos mais cruéis das notícias da época é a de um cartum publicado em Washington que retrata o Sr. e a Sra. Lincoln tomando champanhe enquanto o filho aparece em frente a uma cova perguntando: “Pai, posso tomar uma taça antes de ir embora? ”. Esse e outros trechos de livros biográficos e jornais nos fazem pensar se o desespero e a obstinação de Lincoln em relação a Willie seriam de fato motivados pela tristeza da perda do filho ou remorso mediante todas as acusações levantadas sobre ele: a negligência dos pais, a complacência do próprio Lincoln com a balbúrdia que as crianças faziam dentro de casa, as brincadeiras etc.

Também impressiona muito a forma como são retratados o limbo e as circunstâncias em que as almas permanecem ali. No caso do protagonista os relatos são ainda mais perturbadores. Por que uma criança perdida e desesperada para encontrar seu pai precisou passar por situações tão terríveis e de tamanho desalento? É isso, então, o que nos espera após a morte?

Finalmente, é possível destacar que apesar do título e do texto tratarem das situações que envolveram o enterro de Lincoln filho e o luto de Lincoln pai, a maior parte da narrativa baseia-se nas histórias dos fantasmas no limbo, que são interessantes por si só e poderiam, com facilidade, sustentar todo o texto a despeito da história principal.

        Como impressões gerais, apesar de retratar a história de um momento de profunda tristeza do presidente americano, o desespero de um filho perdido no limbo e histórias traumáticas da vida de suas almas penadas, Lincoln no Limbo é, em muitos momentos, um livro sarcástico, bem-humorado e emocionante.



[1] Levantamento realizado por Folha de São Paulo (2018). Cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/com-166-narradores-george-saunders-lanca-lincoln-no-limbo-no-brasil.shtml?origin=folha.