O romance “Lincoln no Limbo”, de
George Saunders, conta a história dos últimos dias de Willie Lincoln, do luto de
seu pai, uns dos presidentes norte-americanos mais reconhecidos da história, e da
interação de várias almas presas no limbo.
A estrutura do livro é muito
inovadora. Capítulos relatando a história daquele acontecimento por meio de
biografias do presidente e textos jornalísticos, são entrecortados por
capítulos narrados do além por 166[1]
personagens, em um marcante estilo teatral.
Foi um livro muito aclamado à
época de seu lançamento, tendo recebido diversos elogios da mídia e uma série
de prêmios, como o Man Booker Prize, de 2017, que é considerado o maior prêmio
literário da língua inglesa.
Às voltas com os desdobramentos do
início da guerra civil americana, o presidente Lincoln perde seu filho,
William, de 10 anos, em decorrência de uma febre tifoide. Lincoln era muito
apegado ao menino, que era tido como uma cópia perfeita do pai.
A obra, então, retrata os
momentos vividos por Lincoln e por seu filho logo após sua passagem, ambos
resistindo ao processo da dolorosa partida. De um lado Lincoln pai, que faz
recorrentes visitas ao túmulo da criança, chegando até mesmo a abrir o caixão e
segurar o pequenino corpo inconsolável. De outro, Lincoln filho, o espírito, que
não consegue partir dali e fica perdido no limbo.
Boa parte da narrativa e dos
diálogos acontece numa espécie de primeiro estágio após a morte. Fica clara a necessidade
de que as almas que ali chegam devem partir dali e nessa tentativa de sair
desse lugar ocorrem episódios em que espécies de anjos tentam guiar as almas
penadas para o seu destino final. Willie resiste ao assédio dos tais anjos de
sair do limbo, e justifica essa resistência em permanecer pela promessa feita
pelo pai de que voltaria a encontrá-lo.
Enquanto esperava pelo encontro
com o pai, muitas almas perdidas passaram a importunar Willie. Almas que se
divertiam com o desespero da criança e com seu processo de definhamento e
angústia. Apesar disso, Willie era defendido pelos três personagens
protagonistas do enredo que se passa nesse espaço entre céu e terra: Hans
Vollman, Roger Bevins e o reverendo.
Os três personagens são também
almas presas no limbo, que assumem o papel de guias aos recém desencarnados,
mas também às pessoas que permanecem na terra, entrando em seus corpos,
conversando com elas, manipulando suas ações e tomando contato com as
informações do que está acontecendo no mundo.
Num dos trechos da obra, é
possível identificar o período em que viveu um dos três personagens centrais do
limbo. Numa das tentativas de ajudar o menino a partir, os três guias entram no
corpo de Lincoln pai para tentar promover o encontro tão esperado por Willie, e
descobrem que se trata do presidente americano. Um dos guias comenta, então, a
sua confusão ao imaginar que o presidente americano ainda seria Taylor. Trata-se,
portanto, de Zachary Taylor, que foi o 12º presidente americano, no período de
1849 a 1850. Abraham Lincoln foi o 16º presidente dos Estados Unidos,
governando o país cerca de dez anos depois, entre 1861 e 1865.
As almas presas no limbo, de
fato, não tinham consciência de que estavam mortas. Muitas delas, assim como
Willie, acreditavam que seus parentes ainda estavam à sua procura. Inclusive
não se referem a seus caixões como tal, chamam de “caixas de doente”, provavelmente
por entenderem que tenham sido colocados ali para tratarem das situações que os
acometiam no período prévio às respectivas mortes.
O reverendo era a única alma do
limbo que sabia a verdade. Ele tinha passado por uma experiência pós morte
diferente da que tinham passado os demais. Ele sabia que estavam todos mortos e
também sabia o que esperava por eles após esse estágio intermediário da
chegada.
O reverendo nunca tinha dito a
verdade a ninguém, mas, sensibilizado pela situação, contou a verdade ao
menino. Contou que estava preso no limbo por opção, pois já tinha passado pelo
processo de julgamento que definiria o local para onde iria após a passagem
intermediária, mas fugiu ao ver os horrores passados por um recém-morto à sua
frente.
Se não fosse para uma tenda
maravilhosa, iluminada, cheia de luz, ao lado do senhor Jesus Cristo, ele sabia
que iria ser literalmente comido por almas em outro estágio de evolução. Teve
medo e fugiu, ficando preso no limbo.
Ter acompanhado a saga de Willie
fez com que o reverendo tomasse coragem e decidisse partir, enfrentando o seu
destino após o limbo. O menino, alertado pelo reverendo de que já não fazia
mais parte do mundo dos vivos, também decide deixar o limbo. Ambos, passaram,
então, pelo processo que o livro chama de “conversão matéria-luz”, deixando finalmente
aquele lugar onde restaram as outras almas penadas, absortas num misto de resignação,
tormento e medo.
O capítulo que retrata os
pensamentos do menino logo após a conversão matéria-luz é belo e tocante. Willie
sente que tudo lhe é permitido a partir de então: sair da cama, festejar, tomar
champanhe, pendurar-se no pedestal, sair voando pela janela… Ele se sente livre!
Livre como um menino deve ser.
Por sua vez, a partida de Willie acaba
finalmente libertando o próprio Lincoln pai de seu sofrimento e a narrativa nos
leva a entender que esse acontecimento foi também fundamental para dar a
Lincoln a força necessária para perseverar em sua luta pelos direitos dos negros
nos Estados Unidos. No capítulo final, o autor nos leva a supor que a luta de
Lincoln possa também ter sido influenciada pelo escravo Thomaz Havens, numa
cena de incorporação da alma penada no presidente durante um de seus passeios a
cavalo.
Lincoln no limbo é uma obra experimental,
com ritmo um pouco difícil e que pode não prender o interesse do leitor em seus
primeiros capítulos. No entanto, à medida que vamos compreendendo sua
construção e dinâmica de leitura, pode tornar-se muito interessante. Algo que
me chamou a atenção são os extratos de biografias e textos de jornal sobre
Lincoln e a morte de William à época.
A visão retratada naquele momento
sobre sua vida, figura, personalidade, fatos domésticos da Casa Branca, entre
outros é, de fato, muito interessante, e traz ao leitor não só a percepção, com
elevado grau de sordidez, da sociedade daquela época, mas de como o presidente
e a sua esposa enfrentaram a doença e a perda do filho.
Um dos extratos mais cruéis das
notícias da época é a de um cartum publicado em Washington que retrata o Sr. e
a Sra. Lincoln tomando champanhe enquanto o filho aparece em frente a uma cova
perguntando: “Pai, posso tomar uma taça antes de ir embora? ”. Esse e outros trechos
de livros biográficos e jornais nos fazem pensar se o desespero e a obstinação
de Lincoln em relação a Willie seriam de fato motivados pela tristeza da perda
do filho ou remorso mediante todas as acusações levantadas sobre ele: a
negligência dos pais, a complacência do próprio Lincoln com a balbúrdia que as
crianças faziam dentro de casa, as brincadeiras etc.
Também impressiona muito a forma
como são retratados o limbo e as circunstâncias em que as almas permanecem ali.
No caso do protagonista os relatos são ainda mais perturbadores. Por que uma
criança perdida e desesperada para encontrar seu pai precisou passar por
situações tão terríveis e de tamanho desalento? É isso, então, o que nos espera
após a morte?
Finalmente, é possível destacar
que apesar do título e do texto tratarem das situações que envolveram o enterro
de Lincoln filho e o luto de Lincoln pai, a maior parte da narrativa baseia-se
nas histórias dos fantasmas no limbo, que são interessantes por si só e poderiam,
com facilidade, sustentar todo o texto a despeito da história principal.
Como impressões gerais, apesar de retratar a história de um momento de profunda tristeza do presidente americano, o desespero de um filho perdido no limbo e histórias traumáticas da vida de suas almas penadas, Lincoln no Limbo é, em muitos momentos, um livro sarcástico, bem-humorado e emocionante.
[1]
Levantamento realizado por Folha de São Paulo (2018). Cf. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/com-166-narradores-george-saunders-lanca-lincoln-no-limbo-no-brasil.shtml?origin=folha.