terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O Aleph

de Jorge Luís Borges




por Ana Lucia Rocha Studart


SOBRE A OBRA - O Aleph é um conto de Jorge Luís Borges que  se insere no conceito do realismo mágico. O enredo é interessante, e acontece entre dois personagens que disputam tanto o amor da mesma mulher quanto o sucesso como escritores. O conto foge à realidade a partir do momento em que a existência do Aleph é revelada. 


No seu conto, Borges define a palavra Aleph como “a primeira letra do alfabeto da língua Sagrada. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade” O milagroso Aleph do conto, Borges descreve como “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, visto de todos os ângulos”.


No caminho de preparar a resenha, percebi que o Aleph é mais popular do que eu imaginava, porque para um outro escritor, Paulo Coelho, vinculado a textos mágicos e autor de O Alquimista e de outro livro chamado Aleph,  o Aleph pode até levar a uma outra dimensão: " É o ponto onde tudo está no mesmo lugar ao mesmo tempo, diante do qual abrem-se portas, por fração de segundo, e logo tornam-se a fechar, mas permitem desvelar o que está escondido atrás delas - tesouros, armadilhas, caminhos não percorridos etc".


O Aleph, no conto de Borges, localiza-se no porão escuro e minúsculo de uma casa antiga, onde, deitado no chão, com a cabeça sobre uma bolsa dobrada em local preciso, e olhando para certo degrau de uma escada, pode-se ver, simultaneamente, todos os pontos do universo. Esse ponto estaria “numa pequena esfera furta-cor, de quase intolerável, fulgor…com diâmetro de 2 ou 3 centímetros, mas o espaço cósmico estaria aí, sem diminuição de tamanho…Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinita coisas, porque eu via claramente todos os pontos do universo”.


O interessante é que o autor, como grande escritor que é, relata a dificuldade de expressar, em palavras sequenciais, algo que tanto o maravilhou no Aleph: 

“O que viram meus olhos foi simultâneo. O que transcreverei, sucessivo… Como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca?”.


A ESTRUTURA - Na publicação “Jorge Luis Borges, Obras Completas I”, o conto está impresso em 13 páginas, e foi publicado pela primeira vez em 1949, sendo considerado um dos melhores contos de Jorge Luis Borges. Tem descrições primorosas e densas de locais e personagens. A escrita é elegante, ritmada, leve, de fácil leitura, com toques de humor e ironia.


O PDV -  É o do autor, que se coloca como um dos personagem no conto.                                                                                    

A AMBIENTAÇÃO do conto é na  Argentina, Buenos Aires, rua Garay, casarão dos Viterbo, onde viveu Beatriz e onde vive Daneri. Se passa nos anos 30/40.                        


OS PERSONAGENS são apenas três:

- O próprio Borges, que embora não se refira diretamente ao seu personagem, deixa transparecer sentimentos de paixão, ciúme e inveja.                             
                                                                                                                                                       
- A falecida Beatriz Elena Viterbo, que já se encontra morta ao se iniciar o conto, mas sempre presente em fotos e na paixão de Borges. Além disso ela impulsiona o enredo, com as visitas anuais que Borges faz ao primo dela, na data de seu aniversário. Ele a descreve primeiro como “alta, frágil, ligeiramente inclinada” com um andar de graciosa lentidão, um princípio de êxtase”. Adiante, é mais critico: “…mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades que talvez reclamassem explicação patológica.”             
                                                                                                                                                        
- E Carlos Argentino Daneri, bibliotecário, primo de Beatriz e proprietário do Aleph, por morar na casa onde ele se situa. Daneri é assim descrito por Borges:  um ser “rosado, robusto, encanecido, que exerce um cargo subalterno numa biblioteca de suburbia…É autoritário e também ineficiente…Sua atividade mental é continua, apaixonada, versátil, e completamente insignificante”. Daneri, trabalha há anos numa extensa obra, o Canto Augural de um poema  chamado A Terra, que trata da descrição do planeta.  Mais tarde o leitor conclui que sua inspiração para o longo poema vem das incursões dele ao  Aleph. Ao ouvir trechos da obra, Borges considera as idéias de Daneri pomposas, e as estrofes de seus poemas sem nada de memorável.  Critica sua ostentação verbal: “A palavra leitoso não era bastante feia para ele….preferia lactário, lactinos, lactescente, leital..”  Sua aversão a Daneri produz esse comentário, no momento em que desce pela única vez ao sótão mágico:”Subitamente compreendi meu perigo. Deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno”. (O veneno seria o licor que bebera pouco antes e que ele mesmo havia presenteado a Daneri). Em determinado ponto confessa: “No fundo, sempre nos detestamos.                                                                                                                                                        
O ENREDO- O conto se inicia com o falecimento de Beatriz e Borges avaliando a morte, com a pesarosa constatação de que o mundo continuará se modificando e se distanciando da realidade de Beatriz em vida. Painéis de rua modificados no dia da sua morte   teriam mostrado a Borges que “o incessante e vasto universo já se afastava dela, e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudará o universo, mas eu não”, E assim ele estabelece magistralmente a presença de Beatriz durante quase todo o conto.                                                                                                                                                    
Borges decide que todos os anos, no dia de aniversário de Beatriz, ele, como  homenagem, deveria visitar “a casa da rua Garay”, onde Beatriz morou com seu pai e seu primo-irmão, Carlos Daneri, ocasião em que mataria saudades de Beatriz apreciando suas  elegantes fotografias, que descreve em pormenores no conto. Com o passar dos anos, esses encontros ese prolongam e ele se torna intimo de Daneri, apesar do desprezo com que o descreve. A impaciência de Borges ao ouvir os poemas de Daneri se revela: a dicção é extravagante, com lentidão métrica. E o desprezo é reciproco- Borges se imagina convidado a escrever o prefácio do poema de Daneri, mas acabou convidado a solicitar que outro escritor, um “homem de letras”, o prefaciasse.                                                                                                                                                                        
O Aleph torna-se central na história no momento em que a casa da rua Garay, alugada, vai ser demolida pelo proprietário. Daneri confidencia a Borges que, para terminar seu poema, precisava do Aleph e, em consequência, da casa. Daneri descobrira o Aleph na infância, e nunca o revelara a ninguém. Agora, perto de perdê-lo, permitiu acesso a Borges. E promete: “E em breve poderás estabelecer um diálogo com todas as fotos da Beatriz.”   
                                                                             
A descrição da experiência de Borges é detalhada. Ao descer ao porão caiu da escada. Com a cabeça sobre a bolsa, e  Daneri indicando que Borges deveria contar os 19 degraus da escada, porque ali veria o Aleph, ele sai e deixa Borges em meio à escuridão. O relato da experiência de Borges toma conta de mais de duas páginas do conto, e é uma avalanche de visões, mas tudo redigido com um toque de poesia, transmitindo emoção ao leitor. E ele conclui:”vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem, e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjectural, cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.” Depois dessa visão, Borges receia que não restasse  uma única coisa capaz de surpreende-lo, e “felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.”

DESFECHO: O pós-escrito, redigido 6 meses depois da demolição da casa da rua Garay, vem con interrogações: teria Daneri escolhido o nome Aleph devido a revelações  do próprio Aleph durante as visões que teve? Seria o Aleph da rua Garay um falso Aleph? E para corroborar sua suspeita, enumera uma série de possibilidades, como um espelho do oriente onde em seu cristal refletia-se o universo inteiro, e a  mesquita no Cairo, que teria o universo em uma de suas colunas de pedra. No ultimo parágrafo fala do esquecimento: teria ele visto essa coluna de pedra na sua viagem pelo Aleph, e a teria esquecido? ”Nossa mente é porosa; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.”                           
Borges coloca no conto duas  notas de rodapé, uma onde transcreve uma quadra do poema de Daneri e a critica, e outra, já no pós-escrito, relatando uma carta onde Daneri, premiado por publicar trechos de seu longo poema, tripudia de Borges: “Bufas, meu lamentável amigo, de inveja”. A obra de Borges, Los Naipes del Tahur, não conseguiu um único voto. Ao que Borges desabafa: “Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja”.    
   

OBSERVAÇÕES: O realismo mágico apresentado em conto de um autor erudito como Jorge Luis Borges, suscita uma série de associações e interpretações aos seus leitores e críticos. Assim, há quem veja uma série de metáforas nele. Beatriz Elena  seria a Beatriz que conduziu Dante do purgatório ao paraíso.  E o Elena remeteria à cultura clássica, grega, e seria uma crítica aos escritores contemporâneos. O Aleph seria uma metáfora para a literatura, que leva o leitor a incontáveis lugares. E a suspeita que Borges  levanta  dizendo que o Aleph reside em uma coluna, seria um tributo à erudição formal…O próprio  Borges, no epílogo de suas obras completas, observa que o Aleph teve alguma influência do conto “The Crystal Egg”, de Wells. O conto trata de um ovo verde de cristal, propriedade do dono de uma loja de antiguidades, onde alguns poucos viam imagens da vida em Marte.                                                                                   

Sabe-se, com certeza, que Borges aprecia a ideia da unidade na multiplicidade, e que isso se repete em sua obra. Em outro  conto,  “A Biblioteca de Babel”, onde, num espaço reduzido, estariam contidos todos os livros. Borges associa o universo a uma biblioteca e descreve o homem como “um imperfeito  bibliotecário… mas o universo, com o seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante, e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de Deus.”                                                               

Esse menosprezo pelo bibliotecário se repete também  no Aleph, e seria uma crítica ao próprio autor e à profissão, porque Borges, como o desprezível Daneri do conto,  fora por um período da vida bibliotecário e depois diretor de biblioteca.                

Outros temas frequentes em suas obras seriam o infinito, os cristais e os espelhos  No conto A Biblioteca de Babel, ele descreve: “O universo ( que chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido e talvez  infinito de galerias hexagonais e de qualquer hexágono vêem-se andares superiores e inferiores: interminavelmente… no vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências”.  

                                                                             

SOBRE O AUTOR - Jorge Francisco Isidoro Luís Borges nasceu em Buenos Aires, Argentina, no dia 24 de agosto de 1899. Por ter avó inglesa, tornou-se bilingue desde cedo. Aos 4 anos já sabia ler e escrever, e cercado pela erudição da família, aos 9 anos redigiu seu primeiro conto, “La Visera Fatal” inspirado  na obra de Dom Quixote. Aos 10 anos de idade já uma traduzira um conto de Oscar Wilde, publicado em um jornal local.     

                              

Em 1914 mudou-se com a família para a Suíça, para que seu pai pudesse tratar da sua cegueira progressiva. Em 1919, mudaram para Madrid, onde Borges concluiu seus estudos e colaborou com poemas e crítica literária em  várias revistas. O fato de ter morado tão jovem com a família na Europa, lhe proporcionou  uma visão de mundo que poucos jovens teriam naquela época.                                                           

Aos  22 anos volta à Argentina, e a partir daí inicia sua fase de  inspiração surrealista.  Funda, com outros escritores, a revista Proa, e produz várias publicações, mas o reconhecimento de seu talento só se inicia  em 1935, com seu primeiro livro de contos, “História Universal da Infâmia”.


Para sobreviver, Borges trabalhou como bibliotecário em Buenos Aires, até que, em  1946, Perón subiu à presidência da Argentina. Por se opor ao peronismo, deixou o  emprego e, ajudado por amigos,  passou a trabalhar como professor de literatura inglesa e como palestrante e conferencista itinerante. Com a queda do regime peronista em 1955, Jorge Luis Borges foi designado diretor da Biblioteca Nacional.      

              

Borges padeceu do mesmo problemas nos olhos que teve seu pai, e foi aos poucos perdendo a visão. No conto A Biblioteca de Babel, ele lamenta: “agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer, a poucas léguas do hexágono em que nasci.” Quando ficou totalmente cego contou com a ajuda da sua mãe para escrever seus livros, e mais tarde  ditou  palavras para a aluna, assistente particular, e amiga Maria Kodama, com quem se casou aos  86 anos. Passou seus últimos dias viajando pelo mundo ao lado da esposa, e faleceu no dia 14 de junho de 1986, em Genebra, sem ter deixado filhos.                  


O reconhecimento mundial de sua obra teve início em 1961, ao receber o Prêmio Formentor, conferido pelo Congresso Internacional de Editores (prêmio dividido com o escritor irlandês Samuel Beckett). Em 1980, Borges recebeu o Prêmio Cervantes, o mais importante prêmio literário da Espanha, e recebeu prêmios do governo da Itália, da França e da Inglaterra. O Aleph(1949) está entre e seus livros mais conhecidos, junto com  Ficções (1944), e O livro dos seres imaginários (1968).             


CONCLUSÃO - Jorge Luís Borges é considerado um dos escritores mais influentes do século XX e um dos pioneiros do gênero realismo mágico. Em seu conto A Biblioteca de Babel, revela sua insatisfação com a vida, associada a uma biblioteca: “Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude, peregrinei em busca de um livro, talvez o catálogo dos catálogos.” O fato é que suas obras iluminaram e promoveram a literatura latino-americana no mundo. O conto O Aleph foi considerado pelo crítico literário e professor  novaiorquino, Harold Bloom, como uma das maiores obras literárias do ocidente,  e certamente,  este é um conto excepcional. Quem, num texto de apenas 13 páginas (e Borges é afamado pelos seus textos suscintos) levantaria tanta polêmica, tantos comentários, tantos elogios, e tantas metáforas?


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