Autor:
Julian Barnes
Editora: Rocco, 2012
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Editora: Rocco, 2012
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos - Em Março/Abril
de 2020
Para o Grupo Contemporâneo de Leitura
Antes
que nada, reafirmo como em outras ocasiões, o que nos diz Cristopher
Lehman-Haupt: “Há uma diferença enorme
entre ser um crítico ou um resenhista. O resenhista reage à experiência do
livro”. Aqui me aventuro como resenhista, buscando explorar pontos tais
como: autor; contexto; personagens; narrativa; estilo; mensagem.
Sobre o autor [1]
Julian
Patrick Barnes é um escritor inglês, nascido em Leicester, em 19 de janeiro de 1946, e um dos mais elogiados
autores em atividade. Dando breves pinceladas na sua biografia, vê-se que foi
envolvido com as letras durante toda a vida. Em seguida ao seu
nascimento, mudou-se para subúrbios de Londres. Aí viveu até 1956, quando seus
pais, professores de francês, mudaram-se para Northwood, Middlesex, a “Metrolan”'
do seu primeiro romance. Foi então frequentar a Magdalen College, Oxford, onde estudou Línguas Modernas.
Depois
de se formar, trabalhou como lexicógrafo[2] para o suplemento do Oxford English Dictionary durante três
anos. Era o responsável pela produção de
dicionários, vocabulários e glossários. Seguidamente,
trabalhou, também, como reviewer e
editor literário para o New Statesman
e o New Review. De 1979 a 1986, trabalhou como crítico
televisivo, primeiramente para o New
Statesman e, mais tarde, para o The
Observer.
Foi
casado com Pat Kavanagh desde 1979 até a morte desta, em 2008, com um
tumor cerebral. Curioso observar (por ser um tema referido na obra a ser
resenhada) que no seu mais recente livro, Os
Níveis da Vida, Julian Barnes fala da dor imensa que é viver sem sua
companheira de 30 anos e revela que pensou em suicidar-se.
O Sentido de
um fim (The Sense of an Ending),
de 2011, é seu 11º livro, e lhe
rendeu o Prêmio Man Booker. E,
anteriormente, três dos seus livros iniciais ficaram entre os finalistas deste
mesmo Prêmio: Flaubert's Parrot (1984), England, England (1998), e Arthur & George (2005). Em 2004,
tornou-se comendador (Commandeur) da
Ordem das Artes e das Letras. Também, escreveu ficção criminal sob o pseudônimo
de Dan Kavanagh. E, adicionalmente aos romances, Barnes publicou
coletâneas de ensaios e contos. As suas homenagens incluem ainda o Prêmio Somerset
Maugham e o Prêmio de Memória Geoffrey
Faber.
Sobre o livro[3]
Já
pensou em vasculhar a sua própria vida? Olhar para trás? Voltar à sua
adolescência e percorrer sua existência sob a perspectiva de agora?
Isso
é o que pretende Barnes neste livro instigante. Ele nos leva para uma
Inglaterra da década de sessenta (Londres, Bristol), e apresenta um
contexto onde as comunicações eram feitas por cartas e cartões-postais, as
relações amorosas e familiares ainda carregavam os hábitos da década de
cinquenta, e os praticantes do denominado “infrassexo” se sentiam adaptados ao
ambiente. (ver p. 23)
Com
estilo fluido e elegante, recheado de humor e ironia, o narrador, que é o
personagem principal Tony Webster, vai contando a sua história, da
adolescência até a maturidade. Rememora seus amigos, amores, professores e
familiares. E relata mortes e suicídios. Conversa também com o leitor, todo
tempo, colocando suas dúvidas, permitindo curtas digressões.
Com
diálogos bem construídos, traz discussões entre os personagens sobre a questão da
memória, de suas armadilhas, de suas revelações e esconderijos, protegendo ou
expondo conforme a conveniência ou as necessidades psíquicas de cada um.
Todos
os personagens existem em torno do Tony, e em função dele. São
construídos e descritos desde seu ponto de vista – única visão que o leitor
compartilha. O Barnes mostra um Tony extremamente humano, despido de
qualquer idealização e, portanto, falho, carregado de autocríticas e culpas, e
com um conjunto de ficções a seu respeito. Um ser comum que escolheu uma
existência convencional - agradável e decente. E torna-se um personagem
simpático ao leitor.
E você? Poderá você, ser um observador
neutro/objetivo em relação à sua existência? Barnes discute:
“A
nossa vida não é nossa vida, mas sim a história que contamos dela;
“Contamos
para os outros, mas principalmente para nós mesmos.” (p. 103)
E
o autor exemplifica seu ponto de vista acrescentando no decorrer da narrativa novas
versões ao ocorrido e ao anteriormente contado pelo protagonista. Como disse o
poeta Waly Dias Salomão..”A memória é uma ilha de edição”. Mesma assertiva do
nosso Guimarães Rosa: “O tempo tem o dom de fazer um balancê nas coisas”
[4]
A
memória pode ser considerada tanto do ponto de vista da vida privada como da
história dos povos – a memória da civilização. Barnes vai refletindo sobre as
possibilidades da Pós-Verdade e interpretações:
“História é a mentira dos vitoriosos ou a
memória dos sobreviventes?”
Os sobreviventes podem ser vencedores ou
vencidos?
“A história é também uma forma de o
derrotado se auto iludir” (p. 23)
...”o
fato é que nós precisamos conhecer a história do historiador a fim de entender
a
versão que é colocada diante de nós” (p.18)
“História
é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições
da
memória se encontram com as falhas de documentação.” (p.23)
Até
chegar à Parte 2 do livro, quando aparecem fatos novos e documentos para
preencher os vazios da sua memória. Embora o cenário de fundo seja o mesmo painel
da Inglaterra e os mesmos personagens, o tempo é outro. A comunicação já se faz
por meio de e-mails, o que dá agilidade no desenrolar dos acontecimentos.
O
Tony, nosso protagonista, torna-se um senhor aposentado, e as reflexões
sobre a senilidade e a morte são marcantes e memoráveis - daquelas que atraem
um colecionador de citações:
“Quando
somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos
velhos, inventamos diferentes passados para os outros.” (págs. 88,89)
“O tempo não funciona como um fixador, e
sim como um solvente”.
Um
exemplo da importância da declaração escrita é o aparecimento da carta enviada
pelo Tony ao amigo Adrian. A leitura desse documento muda o rumo
da história. Novas revelações se apresentam, a “certeza fabricada” cai por
terra, e o autor com sua destreza vai preparando o final inesperado. O difícil
é prever o remate surpreendente – que nos leva a repensar: o que o protagonista
poderia ter se lembrado se tivesse a par do ocorrido? Qual a proporção de
realidade que escolheria esconder dos outros e de si mesmo?
Vale
destacar comentários da Ana Lima (ver site na nota 1) sobre a história de Tony:
Saberemos
catar nos rincões da memória o que é verdade? Separá-la, mesmo não conhecendo
todos os fatos? ....... somos um conglomerado de ficções e alguns fatos aos
quais damos a nossa identidade.......
A
vida é igual à literatura. Somos protagonistas da história que desenvolvemos,
editamos, burilamos. Eliminamos fatos indesejados, colorimos a gosto. E em
algum lugar, em algum ponto, essa fantasia toma uma vida própria, ambulante e
acreditamos nela.
Esse
livro de Barnes deixa, sem dúvida, uma reflexão sobre o processo da memória,
sobre o escape, a fuga do verdadeiro, e a importância de documentos escritos
para provar o que, de fato, sucedeu. Essa parece ser uma das mensagens
pretendida pelo autor: o engano que nossa consciência/memória pode produzir sobre
nossa própria vida, assim como a possibilidade de uma pós-verdade na
interpretação de acontecimentos históricos. Há um ruído no tempo que cobre de
neblina o fato real.
Outra
possível mensagem estaria embutida no título intrigante –- O Sentido do Fim. Seria
a busca de sentido para o suicídio de dois jovens? ou dar sentido à visão do
personagem central sobre esses suicídios? Ou sobre qualquer suicídio?
Cabe
observar que a narrativa de Tony deixa certos vazios a serem preenchidos
pela imaginação do leitor, o que parece ser uma metáfora do sistema de nossas
recordações da vida, de nosso autoengano e criações fantasiosas e convenientes.
A nossa história é sempre alterada pela nossa imaginação e acaba por plantar
algumas dúvidas e “passagens em branco” no campo das nossas reminiscências. A
psicanálise trata o tema com profundidade.
Por
que recomendo esse livro? Além do mencionado acima, sobre os predicados do
estilo, da estrutura dos diálogos, da construção dos personagens e de enlevados
pensamentos, o que distingue essa obra são as mensagens – temas subjacentes - e
as indagações do personagem pela busca da sua realidade. Pode-se até, com o
passar do tempo, perder-se na lembrança o roteiro, os personagens e a história
desse livro. Tudo isso poderá sumir. Porém, dificilmente as reflexões sobre a
memória, sobre o sentido da vida e do suicídio, sobre a senilidade e sobre as
interpretações históricas irão se apagar.
Observações
adicionais:
a) O livro trouxe à tona outras referências literárias e cinematográficas acerca de visões e interpretações dos fatos - como exemplos: (1) o clássico filme do século passado: "Doze homens e uma sentença": (2) livro do Eduardo Giannetti: "Autoengano";
b) Merece destaque a primorosa
tradução de Léa Viveiros de
Castro.
[1] Ver
site de Julian Barnes.com e notas de
Ana Lima no site https://livroseraquetes.wordpress.com,
[2] ´Léxico é o conjunto de palavras existente em
um determinado idioma, que as pessoas têm à disposição para expressar-se, oralmente
ou por escrito em seu contexto. ´
[3]
Ver o texto da Ana Lima no site referenciado na nota 1