terça-feira, 12 de maio de 2020

O SENTIDO DE UM FIM

Autor: Julian Barnes
Editora: Rocco, 2012
Tradução: Léa Viveiros de Castro
Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos - Em Março/Abril de 2020
Para o Grupo Contemporâneo de Leitura

Antes que nada, reafirmo como em outras ocasiões, o que nos diz Cristopher Lehman-Haupt: “Há uma diferença enorme entre ser um crítico ou um resenhista. O resenhista reage à experiência do livro”. Aqui me aventuro como resenhista, buscando explorar pontos tais como: autor; contexto; personagens; narrativa; estilo; mensagem.

Sobre o autor [1]

Julian Patrick Barnes é um escritor inglês, nascido em Leicester, em 19 de janeiro de 1946, e um dos mais elogiados autores em atividade. Dando breves pinceladas na sua biografia, vê-se que foi envolvido com as letras durante toda a vida. Em seguida ao seu nascimento, mudou-se para subúrbios de Londres. Aí viveu até 1956, quando seus pais, professores de francês, mudaram-se para Northwood, Middlesex, a “Metrolan”' do seu primeiro romance. Foi então frequentar a Magdalen College, Oxford, onde estudou Línguas Modernas.

Depois de se formar, trabalhou como lexicógrafo[2] para o suplemento do Oxford English Dictionary durante três anos.  Era o responsável pela produção de dicionários, vocabulários e glossários.  Seguidamente, trabalhou, também, como reviewer e editor literário para o New Statesman e o New Review.  De 1979 a 1986, trabalhou como crítico televisivo, primeiramente para o New Statesman e, mais tarde, para o The Observer.

Foi casado com Pat Kavanagh desde 1979 até a morte desta, em 2008, com um tumor cerebral. Curioso observar (por ser um tema referido na obra a ser resenhada) que no seu mais recente livro, Os Níveis da Vida, Julian Barnes fala da dor imensa que é viver sem sua companheira de 30 anos e revela que pensou em suicidar-se.

O Sentido de um fim (The Sense of an Ending), de 2011, é seu 11º livro, e lhe rendeu o Prêmio Man Booker.  E, anteriormente, três dos seus livros iniciais ficaram entre os finalistas deste mesmo Prêmio: Flaubert's Parrot (1984), England, England (1998), e Arthur & George (2005). Em 2004, tornou-se comendador (Commandeur) da Ordem das Artes e das Letras. Também, escreveu ficção criminal sob o pseudônimo de Dan Kavanagh. E, adicionalmente aos romances, Barnes publicou coletâneas de ensaios e contos. As suas homenagens incluem ainda o Prêmio Somerset Maugham e o Prêmio de Memória Geoffrey Faber.

Sobre o livro[3]

Já pensou em vasculhar a sua própria vida? Olhar para trás? Voltar à sua adolescência e percorrer sua existência sob a perspectiva de agora?

Isso é o que pretende Barnes neste livro instigante. Ele nos leva para uma Inglaterra da década de sessenta (Londres, Bristol), e apresenta um contexto onde as comunicações eram feitas por cartas e cartões-postais, as relações amorosas e familiares ainda carregavam os hábitos da década de cinquenta, e os praticantes do denominado “infrassexo” se sentiam adaptados ao ambiente.  (ver p. 23)

Com estilo fluido e elegante, recheado de humor e ironia, o narrador, que é o personagem principal Tony Webster, vai contando a sua história, da adolescência até a maturidade. Rememora seus amigos, amores, professores e familiares. E relata mortes e suicídios. Conversa também com o leitor, todo tempo, colocando suas dúvidas, permitindo curtas digressões.

Com diálogos bem construídos, traz discussões entre os personagens sobre a questão da memória, de suas armadilhas, de suas revelações e esconderijos, protegendo ou expondo conforme a conveniência ou as necessidades psíquicas de cada um.

Todos os personagens existem em torno do Tony, e em função dele. São construídos e descritos desde seu ponto de vista – única visão que o leitor compartilha. O Barnes mostra um Tony extremamente humano, despido de qualquer idealização e, portanto, falho, carregado de autocríticas e culpas, e com um conjunto de ficções a seu respeito. Um ser comum que escolheu uma existência convencional - agradável e decente. E torna-se um personagem simpático ao leitor.

 E você? Poderá você, ser um observador neutro/objetivo em relação à sua existência? Barnes discute:

 “A nossa vida não é nossa vida, mas sim a história que contamos dela;
 “Contamos para os outros, mas principalmente para nós mesmos.” (p. 103)

E o autor exemplifica seu ponto de vista acrescentando no decorrer da narrativa novas versões ao ocorrido e ao anteriormente contado pelo protagonista. Como disse o poeta Waly Dias Salomão..”A memória é uma ilha de edição”. Mesma assertiva do nosso Guimarães Rosa: “O tempo tem o dom de fazer um balancê nas coisas” [4]
A memória pode ser considerada tanto do ponto de vista da vida privada como da história dos povos – a memória da civilização. Barnes vai refletindo sobre as possibilidades da Pós-Verdade e interpretações:

“História é a mentira dos vitoriosos ou a memória dos sobreviventes?”
Os sobreviventes podem ser vencedores ou vencidos?
“A história é também uma forma de o derrotado se auto iludir” (p. 23)
...”o fato é que nós precisamos conhecer a história do historiador a fim de entender
a versão que é colocada diante de nós” (p.18)
“História é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições
da memória se encontram com as falhas de documentação.” (p.23)

Até chegar à Parte 2 do livro, quando aparecem fatos novos e documentos para preencher os vazios da sua memória.   Embora o cenário de fundo seja o mesmo painel da Inglaterra e os mesmos personagens, o tempo é outro. A comunicação já se faz por meio de e-mails, o que dá agilidade no desenrolar dos acontecimentos.

O Tony, nosso protagonista, torna-se um senhor aposentado, e as reflexões sobre a senilidade e a morte são marcantes e memoráveis - daquelas que atraem um colecionador de citações:

Quando somos jovens, inventamos diferentes futuros para nós mesmos; quando somos velhos, inventamos diferentes passados para os outros.” (págs. 88,89)
“O tempo não funciona como um fixador, e sim como um solvente”.

Um exemplo da importância da declaração escrita é o aparecimento da carta enviada pelo Tony ao amigo Adrian. A leitura desse documento muda o rumo da história. Novas revelações se apresentam, a “certeza fabricada” cai por terra, e o autor com sua destreza vai preparando o final inesperado. O difícil é prever o remate surpreendente – que nos leva a repensar: o que o protagonista poderia ter se lembrado se tivesse a par do ocorrido? Qual a proporção de realidade que escolheria esconder dos outros e de si mesmo?

Vale destacar comentários da Ana Lima (ver site na nota 1) sobre a história de Tony:

Saberemos catar nos rincões da memória o que é verdade? Separá-la, mesmo não conhecendo todos os fatos? ....... somos um conglomerado de ficções e alguns fatos aos quais damos a nossa identidade.......
A vida é igual à literatura. Somos protagonistas da história que desenvolvemos, editamos, burilamos. Eliminamos fatos indesejados, colorimos a gosto. E em algum lugar, em algum ponto, essa fantasia toma uma vida própria, ambulante e acreditamos nela.

Esse livro de Barnes deixa, sem dúvida, uma reflexão sobre o processo da memória, sobre o escape, a fuga do verdadeiro, e a importância de documentos escritos para provar o que, de fato, sucedeu. Essa parece ser uma das mensagens pretendida pelo autor: o engano que nossa consciência/memória pode produzir sobre nossa própria vida, assim como a possibilidade de uma pós-verdade na interpretação de acontecimentos históricos. Há um ruído no tempo que cobre de neblina o fato real.

Outra possível mensagem estaria embutida no título intrigante –- O Sentido do Fim. Seria a busca de sentido para o suicídio de dois jovens? ou dar sentido à visão do personagem central sobre esses suicídios? Ou sobre qualquer suicídio?

Cabe observar que a narrativa de Tony deixa certos vazios a serem preenchidos pela imaginação do leitor, o que parece ser uma metáfora do sistema de nossas recordações da vida, de nosso autoengano e criações fantasiosas e convenientes. A nossa história é sempre alterada pela nossa imaginação e acaba por plantar algumas dúvidas e “passagens em branco” no campo das nossas reminiscências. A psicanálise trata o tema com profundidade.

Por que recomendo esse livro? Além do mencionado acima, sobre os predicados do estilo, da estrutura dos diálogos, da construção dos personagens e de enlevados pensamentos, o que distingue essa obra são as mensagens – temas subjacentes - e as indagações do personagem pela busca da sua realidade. Pode-se até, com o passar do tempo, perder-se na lembrança o roteiro, os personagens e a história desse livro. Tudo isso poderá sumir. Porém, dificilmente as reflexões sobre a memória, sobre o sentido da vida e do suicídio, sobre a senilidade e sobre as interpretações históricas irão se apagar.

Observações adicionais:
      a)   O livro trouxe à tona outras referências literárias e cinematográficas acerca de visões e interpretações dos fatos - como exemplos: (1) o clássico filme do século passado: "Doze homens e uma sentença": (2) livro do Eduardo Giannetti: "Autoengano";
      b)    Merece destaque a primorosa tradução de Léa Viveiros de Castro.




[1] Ver site de Julian Barnes.com e notas de Ana Lima no site https://livroseraquetes.wordpress.com,
[2]  ´Léxico é o conjunto de palavras existente em um determinado idioma, que as pessoas têm à disposição para expressar-se, oralmente ou por escrito em seu contexto. ´
[3] Ver o texto da Ana Lima no site referenciado na nota 1
[4] Em Grande Sertão – Veredas

Imagem: "Retrato de Roger" (1938), OST de Anthony Morris