por Carlos Guido Azevedo
Quase todas as resenhas que li dos livros de Lima Barreto começam assim: Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881 na cidade do Rio de Janeiro. Sua família era negra e humilde e seus pais descendentes de escravos. Ele ficou órfão de mãe quando tinha apenas 6 anos de idade. Lima Barreto foi um dos principais escritores do pré-modernismo brasileiro. Além de escritor, ele foi jornalista e suas obras estão relacionadas com temáticas sociais e nacionalistas, esta não será diferente.
Uma síntese do livro em grandes pinceladas:
Triste fim de Policarpo Quaresma foi escrita em 1911 nos folhetins da época, eram as novelas de então. Narrado em terceira pessoa em três partes bem diferenciadas:
Primeira parte - A lição de Violão - Na qual Policarpo Quaresma é apresentado como um funcionário público preocupado em valorizar a nacionalidade, dando maior consistência à cultura verdadeiramente brasileira e vencendo as representações e valores coloniais. Sem muitos amigos, vive isolado com sua irmã, mantendo hábitos metódicos há trinta anos. Com vasta biblioteca de autores nacionais, acaba por acreditar que tudo no Brasil é superior aos outros lugares. Buscando uma cultura nata, ele propõe a substituição do português pelo tupi, a verdadeira língua do Brasil. Objeto de ridicularizarão e escárnio público é aposentado por invalidez, depois de passar alguns meses no hospício.
Segunda parte – No “Sossego” – Na qual Quaresma se recolhe a uma fazenda e procura realizar seus delírios de grandeza de produção agrícola na terra que julga mais fértil do mundo. A ponto de dispensar a adubação e ir buscar esse ideal de produção com esforço pessoal, muitos livros sobre agricultura e maquinarias específicas, mas logo seu projeto agrícola é derrotado por três inimigos implacáveis: A política local, a ausência de infraestrutura e a saúva. Desanimado, estende sua dor à pobre população rural, compreende sua anomia, antes criticada, e verifica a necessidade de uma nova administração, que resume em um “Projeto Agrícola” entregue ao Presidente Floriano, seu conhecido do Arsenal do Exército.
Terceira parte – Patriotas – Narra as aventuras militares de Quaresma em apoio ao Marechal Floriano que assumira a presidência por renúncia do Marechal Deodoro e estava sendo contestado por políticos monarquistas regionais com apoio da Marinha, que com alguns navios bombardeavam o Rio de Janeiro, pois não aceitavam a substituição dos governadores de províncias e a colocação de civis no poder, nem a preponderância do exército.
Quaresma que conhecia Floriano alistou-se como voluntário e mais uma vez se dedica a estudar artilharia, balística e mecânica. Mas nada disso conta num ambiente de caserna sem recursos, sem valores e com pessoas que só pensavam em promoção e no soldo.
Chamado por Floriano de “visionário” ele se desesperou e percebeu a inutilidade de seu sacrifício de vida, mas permaneceu na caserna até o dia em que vencida a sublevação, assistiu a vários prisioneiros serem levados durante a noite para execução sumária, sem julgamento ou causa formada.
Indignado escreve a Floriano contando o que viu e é tratado como traidor da república, condenado ao fuzilamento, abandonado pelos seus amigos e companheiros, teve a morte como seu triste fim.
Comentários
Antes de mais nada quero registrar minha admiração, respeito e verdadeira surpresa com a qualidade, atualidade e a atemporalidade deste jovem escritor brasileiro, que nas circunstâncias e limitações pessoais em que viveu, tenha produzido um clássico de tamanha envergadura e tenha deixado um acervo literário tão significativo.
Visto como um clássico da literatura pré-modernista, posto que anterior à semana de arte moderna, ele foi usado como exemplo de escrita leve e coloquial que se contrapunha ao nacionalismo exacerbado, ao romantismo platônico e à escrita empolado dos gênios parnasianos e ufanistas de então.
Um brasileiro que soube ler os mandos e os desmandos da sua época, com precisão de escultor e com capacidade de construção de tipos característicos, não apenas de época, mas da nacionalidade nascente: Os funcionários públicos e suas mediocridades; os militares e suas ânsias por promoção; as famílias de subúrbio e sua lógica casamenteira; os advogados e suas artimanhas; a classe política e sua degeneração moral; os agricultores e suas anomias; o deslumbramento com os títulos e a ignorância como marca geral.
Soube resistir ao modernismo da filosofia positivista que grassava na época, como a grande solução para o progresso da humanidade e iluminava a república de poucos, que surgia com as transformações institucionais decidida e executada pela elite, sem participação popular, que o fez afirmar uma realidade muito contemporânea: “O Brasil não tem povo, tem plateia”.
Minha admiração não advém de sua cor, origem ou outras considerações de sua vida, que hoje se afirmam como observações fora da ética atual do Politicamente Correto. Minha admiração vem do produto, do realizado pelo autor em tais circunstâncias e em tão pouco tempo, posto que, trabalhou como jornalista (Correio da Manhã e Jornal do Commercio), em revistas do Rio de Janeiro (Fon-Fon, Floreal, Careta, ABC, etc.) e, ainda foi funcionário da Secretaria do Ministério da Guerra até ser aposentado por invalidez em 1914 com depressão aguda, após alguns internamentos em hospícios por dependência química ao álcool, como seu pai. Faleceu em 1 de novembro de 1922 com 41 anos de idade, deixando obras a serem publicadas até 1956.
Escreveu romances, contos, poesias e críticas, destacando-se:
- Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909)
- Triste fim de Policarpo Quaresma (1911)
- Numa e Ninfa (1915)
- Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919)
- Os Bruzundangas (1923)
- Clara dos Anjos (1948)
- Diário Íntimo (1953)
- Cemitério dos Vivos (1956)
Lima Barreto é em si, um exemplo muito marcante do que a sociedade brasileira, em sua histórica concentração de riqueza, perde em capacidade produtiva da maioria do seu povo. Ele mostra como é real a plasticidade e possibilidades ascensionais no Braila, em contraposição ao determinismo social de outras comunidades mais avançadas, caso houvesse investimento na maioria dos cidadãos, o país seria uma potência criativa e produtiva.
Sua sorte pessoal, (ou nossa sorte como leitores) o fez ser apoiado pelo Visconde de Ouro Preto, que lhe permitiu ter uma boa base educacional, com acesso ao Colégio Pedro II, uma educação ainda hoje militarizada e repressora, mas que tem sido um celeiro de lideranças proeminentes na política, na arte e na cultura brasileira.
Mesmo com muitos problemas ao seu redor e tantas limitações, continuou sua formação e chegou a cursar engenharia, tendo abandonado o curso para trabalhar e ajudar nas despesas de casa, como tantos outros jovens brasileiros ainda o fazem na atualidade.
Contemporâneo da proclamação da república, da guerra do Paraguai e da Revolta da Armada, soube registrar estes momentos importantes da república nascente, com pinceladas certas e objetivas que parecem os momentos atuais, como se vivêssemos numa janela de seriado, como Sísifo a repetir ad infinitum os mesmos sentimentos, os mesmos erros, as mesmas incompreensões e vaidades.
Sem exagero, comparo Lima Barreto a Miguel de Cervantes e identifico em suas vidas, semelhanças nas tribulações e sofrimentos e identidade entre seus melhores personagens, sendo Policarpo Quaresma o Don Quixote brasileiro sem Dulcineia, sem Roscinante e sem Sancho Pança, mas com os mesmos sonhos e fantasias de amor e honra à pátria, sonhos de identidade, fantasias de realizações e desejos de reconhecimento e progresso.
Don Quixote influenciado pelo excesso de leituras das aventuras de cavalaria, Policarpo enganado em sua ingenuidade pelos romances ufanistas, pelo nacionalismo exacerbado idealizado por um positivismo científico nascente, sem respaldo na realidade e na cultura da comunidade.
Dom Quixote foi o romance inaugural da nova literatura ocidental e Triste Fim de Policarpo Quaresma o romance inaugural do modernismo brasileiro. Até na história se assemelham.
Acho as aventuras de Quaresma menos universais, mas mais realistas, enquanto o famoso cavaleiro de La Mancha tem mais amor e mais humor, permitindo a todo humano vestir sua armadura e lutar por seus sonhos. Mas ambos os sonhadores espalham simpatia, bondade e dignidade.
Don Quixote fala dos sonhos pessoais de glória e de fama. Quaresma fala dos sonhos de identidade para um povo que deseja educação e progresso, reconhecimento e respeito no enquadre das nações.
O da Mancha pôde usufruir com seus amigos e colegas o reconhecimento da própria loucura e veio a ter morte natural em sua casa, acompanhado dos familiares. O do Rio de Janeiro sofreu o abandono, a incompreensão e morreu na mão daqueles a quem defendia.
Um se tornou herói universal, o outro motivo de chacota e humilhação. Um tornou-se poderoso instrumento de transformação de fantasia em realidade, o outro não conseguiu converter seus concidadãos em heróis da própria história, preferiram viver a própria ignorância.
Quaresma não era um sonhador na medida em que tinha base de concretude em todas as suas considerações e perspectivas de futuro que construía para a nação, para a agricultura, para a educação e para a política. Apenas exagerava no tom.
Lima, em todos os seus escritos procurava mostrar aos seus leitores que precisavam perceber a própria realidade em que viviam, buscando um ideal de nação, de povo de futuro, queria que eles construíssem uma concepção de futuro original, idealizado, apoiado nas potencialidades de sua terra, nos seus valores e na sua história.
Formatou um patriota exaltado que enxergava o país como um lugar esplêndido, maravilhoso, cheio de fartura e facilidades caso realizasse as reformas necessárias (cultural, política e econômica), assim sendo, uma reforma na língua portuguesa (substituindo-a pela língua indígena tupi), na agricultura (o Brasil deveria ser um país agrícola, por possuir terras fartas) e política (tornando o Brasil um país forte, com um governo poderoso e enérgico), entre outros ideais, para despertar o gigante adormecido, desconstruindo na narrativa, de maneira crítica, o ideal romântico espelhado pela literatura da época, que exagerava nos elogios à pátria e se fixava no parnasianismo francês.
A obra, tem um perfil irônico e mesmo sarcástico do funcionalismo público e dos quartéis e da política. Dos funcionários públicos realçava a incompetência e a concentração na promoção pessoal. Dos quartéis ridicularizava os generais sem batalhas e os almirantes sem esquadras, além da penúria, vaidade e carência geral de meios e de ânimo. Na política a velha senhora corrupção e o autoritarismo ditatorial.
Descreve as relações sociais e interpessoais com precisão e afeto entre as diferentes classes sem exprimir ódio ou ressentimento entre grupos sociais, e relata poucas distinções além da capacidade financeira, mas registra um relacionamento social sempre integrado e afável sendo essa, a maior fragilidade do personagem Quaresma, por sua absoluta ingenuidade.
Aliás, a ofensa que mais doeu em Quaresma foi justamente o comentário do Presidente Floriano ao lhe chamar de “visionário”. Ele não admitia, que seu sonho não pudesse ser concretizado, se houvesse decisão política e trabalho honesto.
A concepção de que Lima era um escritor voltado para a temática social, preocupado em demonstrar as injustiças sociais, os preconceitos e o racismo, me parece sempre uma avaliação reducionista e depreciadora, tendo em vista a sua visão construtiva de uma sociedade mais bem organizada e orientada por valores mais adequados e mais raiz, do que os que eram levados em conta para buscar o progresso da nação, como a República e o positivismo. Foi, como toda a intelectualidade da sua época simpatizante do socialismo e do anarquismo, rompendo e mesmo ridicularizando o nacionalista ufanista.
Vivenciou alguns momentos importantes da história e soube registrar com profundidade a ausência de interesse do povo, por cada uma delas. Em particular a Revolta da Armada um movimento de rebelião ocorrido em 1893 e liderado por algumas unidades da Marinha Brasileira contra o governo do presidente Floriano Peixoto.
Como Deodoro da Fonseca renunciou à presidência antes de completar dois anos, a posse do vice foi contestada como inconstitucional. Mas, na verdade, era resistência política dos governadores destituídos por Floriano que eram contrários a eleições de governadores civis, juntos aos monarquistas que se sentiram derrotados com a proclamação da república, juntos com a marinha que se sentia diminuída frente ao exército e ainda juntados aos militares da linha dura que não queriam eleição de civis para ocuparem cargos de poder. Assim, naquele tempo, como hoje, todos os inconformados se unem para lutar contra a renovação política, o avanço social e obstaculizar o poder civil.
O filme de longa-metragem baseado no livro se chama “Policarpo Quaresma, Herói do Brasil” é uma comédia com roteiro adaptado por Alcione Araújo e teve como diretor Paulo Thiago, gostei muito e revi Carlos Gregório meu primo que faz o corrupto presidente da Câmara local.
Frases de Lima Barreto:
- “O Brasil não tem povo, tem público.”
- “Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.”
- “É chegada no mundo, a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente, que nada adianta; mas socialmente, que é tudo.”
- “Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.”
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