terça-feira, 13 de agosto de 2019

Eles eram muitos cavalos


de Luiz Ruffato
Comentários de Carlos Guido Azevedo
O que surpreende o leitor em primeira mão neste texto é o trabalho de marchetaria do autor, que compõe em pequenos segmentos da vida cotidiana, a cidade de São Paulo sob a ótica predominante das pessoas mais sofrido da cidade.
Digo isso, pela profunda tristeza que o livro produziu em mim. Saber-se parte de um todo e não conseguir se perceber como tal. Sentir como parte da população percebe sua própria ausência, enquanto é quase a maioria presente na cidade. Amargar o sentimento da invisibilidade, não se sentir conectado com a cidade, nem com seus contemporâneos. Não poder compartilhar suas angústias ou suas alegrias com aqueles com quem interage é se ver só no mundo. Para mim foi o angustiante recado do livro.
Os pequenos textos parecem gritos de socorro de segmentos invisíveis da sociedade. Mas qual sociedade? Não há, nesses textos de Luiz Ruffato, qualquer expressão coletiva, integradora, cultural ou de simples ação agregadora. Nada que leve ao outro, há um único labirinto, sempre.
São personalidades isoladas lutando para encontrar uma conexão qualquer, um ouvinte, um parceiro, uma migalha de atenção. Mesmo quando a estória é coerente com alguma vida comum, como a (41) Táxi. Ela é contada a um ouvinte desconectado, quem sabe diversos, onde só quem dá coerência é o vocalizador que continua sua locução, sem qualquer conexão. “Os velhos morreram todos. A única coisa que resta é a memória da gente, mas o que é a memória da gente?” Todas as suas estórias demonstram esta ausência do eu no outro. Como se todos vivessem se debatendo contra um muro de isolamento, um apartheid de interesses.
Lembro sempre a máxima de Tolstoi em que a felicidade parece ser igual em toda parte e não gera qualquer interesse do leitor, por isso os romances são feitos de casais e pessoas infelizes, elas buscam, cada uma à sua maneira, viver a aventura da infelicidade. Nos pequenos contos e colagens de Ruffato é a infelicidade que busca conexões, falhando em achar interlocutores.
Seus textos estão montados como retalhos de um trabalho de patchwork que não resulta em um produto acabado, teimam em continuar retalhos de prosa, poesia, relatórios, publicidade de todos os gêneros, todos os tipos de discurso e vozes os compõem como se fossem a própria cidade num grande redemoinho e no meio dele o DEMO, lembrado por Guimarães Rosa.
Imagens em flashes, cruzamento de cenas, buscas por um outro, um qualquer que seja um contraponto. Não se encontra nada completo nestes retalhos de realidades que parecem ter sido juntadas por uma inteligência artificial. Elas não permitem personificar nenhum indivíduo como ente diferenciado do quadro irrelevante da cidade, só detalhes de um mural deselegante.
O livro é importante porque nos leva a pensar naqueles que não conseguem ser parte de um todo, de qualquer todo. Os que são invisíveis aos processos que não sejam os de sofrimento e dor. Que têm vidas verdadeiras num espaço de ficção social, amargando o desemprego, a miséria e uma esperança alimentada por sonhos em perspectivas muito pessoais e nunca coletivos.
Gostei das inovações, criatividade e desembaraço do autor que cria, cola e copia sem pudor.
Recomendo como amostra da literatura que virá daqui para a frente, a qual não saberemos ao certo, se foi escrita por humano ou por AI – Inteligência Artificial.
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