de Carolina Maria de Jesus
por Maria Albeti Vitoriano
Sobre
a autora:
Carolina
Maria de Jesus, mulher negra, mãe solteira, com pouca escolaridade, morava na
favela do Canindé, às margens o Rio Tietê, em São Paulo. Mineira de Sacramento (MG), nasceu por volta de 1915. Cursou,
somente, até o segundo ano primário; desenvolveu o gosto pela leitura, por
influência de uma professora. Lendo, foi possível conhecer um mundo além
daquele que habitava, conforme declarou em uma entrevista: “É por intermédio
dos livros que adquirimos boas maneiras e formamos nosso caráter” (p. 170).
Foi
empregada doméstica e, depois, catadora de papel e de qualquer outro material
que pudesse vender para conseguir algum dinheiro. No lixo, também, catava
restos de comida, principalmente, para matar a fome dos seus três filhos. Descoberta
pelo repórter Audálio Dantas, foi tema de uma reportagem no jornal Folha da
Noite, em 1958, depois na revista O Cruzeiro, em 1959 e seu primeiro livro
(Quarto de Despejo) foi publicado em 1960.
Após a publicação desse livro, conseguiu sair da favela que era seu
maior desejo e conheceu a fama. O livro foi traduzido para treze idiomas e comentado
por grandes nomes da literatura brasileira como Manuel Bandeira,
Raquel de Queiroz e Sérgio Milliet. No Brasil, foram vendidos mais de 100 mil
exemplares de Quarto de Despejo, em apenas um ano.
Carolina
morreu pobre e no ostracismo, em 1977, num pequeno sítio na periferia de SP. Mostrou
decepção com o mundo que ela passou a conhecer: “Pensei que houvesse mais
idealismo, menos inveja” (p.173).
Outras
obras da autora: Casa de alvenaria, Provérbios, Pedaços da fome e Diário de
Bitita. Peças de Teatro: Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita; Salve ela!
Carolina Maria de Jesus em cena; Eu e Ela: Visita à Carolina de Jesus; e Eu
amarelo – Carolina de Jesus.
Sobre o livro:
Quarto
de Despejo nasceu a partir de um diário escrito por Carolina de Jesus sobre a
vida na favela, entre 15 julho de 1955 e 01 de janeiro de 1960. Há um intervalo
de mais ou menos dois anos, pois não existem registros sobre 1956 e 1957. A
autora narra sua vida na favela do Canindé e, ao mesmo tempo, o cotidiano dos
outros moradores. A fome aparece como tema central, bem como as desavenças
constantes entre os moradores. Mostra, também, os problemas de saneamento básico,
falta de serviços públicos e as demais dificuldades da vida em uma favela.
É
um livro de leitura difícil, pelo formato e pelo conteúdo forte que revela as
condições subumanas em que vivem aquelas pessoas. No livro estão os trechos
mais significativos. Narrado na primeira pessoa, as entradas no diário são
marcadas com dia, mês e, algumas vezes, também com o registro do ano.
Carolina
precisa trabalhar todos os dias, fazendo coleta no lixo e nas sobras deixadas pelas
fábricas e pelos moradores dos arredores, inclusive comida. Usa esses restos
para conseguir algum dinheiro e, assim, atender as mínimas necessidades da família.
Tem três filhos: José Carlos, João José e Vera Eunice, dos quais apenas a mais
nova recebe pensão do pai, mas de forma intermitente. Não existe referência em relação ao pai ou
pais dos outros dois filhos.
No
que se refere aos costumes, chama a atenção a quantidade de mulheres
espancadas, por seus companheiros ou por qualquer outro homem. A bebida é,
sempre, um gatilho para tais desavenças, “O único perfume que exala na favela é
a lama podre, os excrementos e a pinga” (p.42).
Carolina
é mãe solteira. Em muitas passagens fica clara a dificuldade que ela enfrenta
para enfrentar a vida sozinha e cuidar dos três filhos. Além disso, sofre preconceito, principalmente,
das demais mulheres, e assédio dos homens, dos quais ela consegue se defender
muito bem. No entanto, ela acredita que vive melhor assim do que outras
mulheres que sustentam os companheiros e, muitas vezes, são espancadas por
eles.
A
miséria existente torna a favela um terreno fértil para quem quisesse captar
eleitores ou adeptos para seitas e/ou religiões. A autora mostra que não aceita
a situação como destino, espera que um dia possa sair daquele lugar que ela
chama de quarto de despejo. Algumas horas entra em desespero: “Tem hora que
revolto com a vida...(p.22).
Tem
esperança que seus diários sejam aceitos para publicação e que possam lhe render
algum dinheiro. Esse desejo constante de sair daquele lugar é alimentado tanto
pela miséria, como pelo ambiente de degradação de costumes, pelas intrigas e
brigas constantes. Em alguns momentos, ela fraqueja “Estou começando a perder o
interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa”
(p.30).
A
autora reconhece a situação precária de sua raça, mesmo após a promulgação da
Lei Áurea, “[...] assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão
atual – a fome” (p. 27). Ela se revolto
com os restos de gêneros alimentícios despejados na favela, em péssimas
condições, alguns apodrecidos, outros com alguma substância tóxica, sem
condições de serem consumidos,
Como
havia brigas entre homens e mulheres, entre homens e entre mulheres. As mulheres
estavam sempre apanhando dos maridos, companheiros, amantes. As crianças
presenciam tudo, as cenas de espancamento, de sexo, mulheres nuas ou seminuas,
muitas delas fugindo dos homens que querem açoitá-las. A vida de todos é o
assunto preferido, principalmente, entre as mulheres. A solidariedade é muito
pequena, salvo em alguns casos e entre algumas pessoas. Carolina anota que “A única coisa que não
existe na favela é solidariedade” (p.13)
No
livro pode-se ter uma percepção sobre diversos problemas, tais como a alta taxa
de mortalidade infantil, muita ingestão de álcool, pessoas sem trabalho,
vadiando, principalmente, os mais jovens, meninas que cedo se envolvem com a prostituição,
meninos que começam a praticar roubos. “Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a
sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a
favela é o quintal onde jogam os lixos” (p. 28), ‘Sou rebotalho. Estou no
quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no
lixo” (p.33)
Retrata
o momento político, as disputas que envolvem Carlos Lacerda, Adhemar de Barros
e Jânio Quadros. Faz diversos comentários negativos sobre o governo de
Juscelino Kubstchek. A autora considera que os favelados são “projetos de gente
humana” (p. 20) que são vistos pelos políticos somente na época das eleições.
Mas ela alerta, ”[...] o povo não tolera a fome” (p. 26) E complementa que “É
preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”. “O Brasil precisa ser dirigido
por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (p. 26). Acrescenta,
ainda, “Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é
fome, a dor, e a aflição do pobre” (p. 35)
Ela
demonstra visão política quando afirma “A democracia está perdendo os seus
adeptos. No nosso paiz (sic) tudo
está enfraquecendo [...} E tudo que está fraco, morre um dia” (p. 35). Reforça
dizendo “Mas o povo não deve cançar (sic). Não deve chorar. Deve lutar pra
melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo” (p.
48).
Mesmo
sendo negra, parece reconhecer a superioridade dos brancos “Conversei com uma
senhora que cria uma menina de cor. É tão boa para a menina. Lhe compra
vestidos de alto preço” (p. 22). Ainda
nessa mesma linha de pensamento “Fiquei conhecendo uma pretinha, muito limpinha
que falava muito bem” (p. 23), Quando se refere aos que dirigem o país “Que Deus ilumine os brancos para que os
pretos sejam feliz” (p.27).
A
autora verbaliza o preconceito existentes em relação aos nordestinos, quando
diz “Depois que a favela superlotou-se de nortistas tem mais intriga. Mais polêmica
e mais distrações” (p. 67). Ao se referir às brigas constantes afirma “Se no
Norte eles for (sic) assim, o Norte
deve ser horroroso” (p. 68). Em consequência, acredita que “[...] com tantos baianos na favela os
favelados veteranos estão mudando-se. Eles querem ser superior pela força” (p.
70)
A
autora demonstra uma visão ampla dos problemas sociais, políticos e econômicos
do momento em que está vivendo. A linguagem tem erros, mas às vezes usa termos
rebuscados. Ela descreve São Paulo como a “[...] a cidade mais afamada da
América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas” (p. 76)
O
livro é um retrato fiel de uma realidade cruel, degradante, que ainda continua
existindo, principalmente, em alguns lugares do país, mesmo passados mais de 60
anos. Pode-se perceber, entretanto, que
houve nesse período algum avanço nas políticas de proteção às mulheres, às
crianças e combate ao preconceito, mas ainda é muito pouco. No entanto, a principal
evolução tem acontecido em relação à tomada de consciência das minorias, que
passaram a reivindicar seus direitos e desenvolverem trabalhos de autoafirmação.
Considero
que a autoavaliação que a autora faz é muito positiva em relação ao demais
habitantes da favela, todos tem muitos defeitos, ela nem tantos; não entra em
brigas; não cria problemas com as crianças, não faz fofoca, está sempre disponível
para auxiliar aos demais. Talvez essa visão estivesse relacionada com o fato de
que ela escreve um diário com a intenção de que fosse publicado. Assim, seu retrato deveria ser melhor desenhado,
o que não diminui o valor da obra, um testemunho da miséria humana e, também,
da capacidade de resiliência.
É
um livro muito interessante, necessário, mas não é uma leitura agradável.
Recomendo, para quem tem interesse em problemas de ordem social e antropológica.
***
Quarto de Despejo: diário de uma favelada
Carolina Maria de Jesus - Ed. Ática, 2001, 8ª edição