terça-feira, 14 de maio de 2019

Quarto de Despejo: diário de uma favelada

de Carolina Maria de Jesus


                                               por Maria Albeti Vitoriano

Sobre a autora:
Carolina Maria de Jesus, mulher negra, mãe solteira, com pouca escolaridade, morava na favela do Canindé, às margens o Rio Tietê, em São Paulo. Mineira de   Sacramento (MG), nasceu por volta de 1915. Cursou, somente, até o segundo ano primário; desenvolveu o gosto pela leitura, por influência de uma professora. Lendo, foi possível conhecer um mundo além daquele que habitava, conforme declarou em uma entrevista: “É por intermédio dos livros que adquirimos boas maneiras e formamos nosso caráter” (p. 170).
Foi empregada doméstica e, depois, catadora de papel e de qualquer outro material que pudesse vender para conseguir algum dinheiro. No lixo, também, catava restos de comida, principalmente, para matar a fome dos seus três filhos. Descoberta pelo repórter Audálio Dantas, foi tema de uma reportagem no jornal Folha da Noite, em 1958, depois na revista O Cruzeiro, em 1959 e seu primeiro livro (Quarto de Despejo) foi publicado em 1960.  Após a publicação desse livro, conseguiu sair da favela que era seu maior desejo e conheceu a fama. O livro foi traduzido para treze idiomas e comentado por grandes nomes da literatura brasileira como Manuel Bandeira, Raquel de Queiroz e Sérgio Milliet. No Brasil, foram vendidos mais de 100 mil exemplares de Quarto de Despejo, em apenas um ano.
Carolina morreu pobre e no ostracismo, em 1977, num pequeno sítio na periferia de SP. Mostrou decepção com o mundo que ela passou a conhecer: “Pensei que houvesse mais idealismo, menos inveja” (p.173).
Outras obras da autora: Casa de alvenaria, Provérbios, Pedaços da fome e Diário de Bitita. Peças de Teatro: Carolina Maria de Jesus, Diário de Bitita; Salve ela! Carolina Maria de Jesus em cena; Eu e Ela: Visita à Carolina de Jesus; e Eu amarelo – Carolina de Jesus.

Sobre o livro:
Quarto de Despejo nasceu a partir de um diário escrito por Carolina de Jesus sobre a vida na favela, entre 15 julho de 1955 e 01 de janeiro de 1960. Há um intervalo de mais ou menos dois anos, pois não existem registros sobre 1956 e 1957. A autora narra sua vida na favela do Canindé e, ao mesmo tempo, o cotidiano dos outros moradores. A fome aparece como tema central, bem como as desavenças constantes entre os moradores. Mostra, também, os problemas de saneamento básico, falta de serviços públicos e as demais dificuldades da vida em uma favela. 
É um livro de leitura difícil, pelo formato e pelo conteúdo forte que revela as condições subumanas em que vivem aquelas pessoas. No livro estão os trechos mais significativos. Narrado na primeira pessoa, as entradas no diário são marcadas com dia, mês e, algumas vezes, também com o registro do ano.
Carolina precisa trabalhar todos os dias, fazendo coleta no lixo e nas sobras deixadas pelas fábricas e pelos moradores dos arredores, inclusive comida. Usa esses restos para conseguir algum dinheiro e, assim, atender as mínimas necessidades da família. Tem três filhos: José Carlos, João José e Vera Eunice, dos quais apenas a mais nova recebe pensão do pai, mas de forma intermitente.  Não existe referência em relação ao pai ou pais dos outros dois filhos.
No que se refere aos costumes, chama a atenção a quantidade de mulheres espancadas, por seus companheiros ou por qualquer outro homem. A bebida é, sempre, um gatilho para tais desavenças, “O único perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga” (p.42).
Carolina é mãe solteira. Em muitas passagens fica clara a dificuldade que ela enfrenta para enfrentar a vida sozinha e cuidar dos três filhos.  Além disso, sofre preconceito, principalmente, das demais mulheres, e assédio dos homens, dos quais ela consegue se defender muito bem. No entanto, ela acredita que vive melhor assim do que outras mulheres que sustentam os companheiros e, muitas vezes, são espancadas por eles.
A miséria existente torna a favela um terreno fértil para quem quisesse captar eleitores ou adeptos para seitas e/ou religiões. A autora mostra que não aceita a situação como destino, espera que um dia possa sair daquele lugar que ela chama de quarto de despejo. Algumas horas entra em desespero: “Tem hora que revolto com a vida...(p.22).
Tem esperança que seus diários sejam aceitos para publicação e que possam lhe render algum dinheiro. Esse desejo constante de sair daquele lugar é alimentado tanto pela miséria, como pelo ambiente de degradação de costumes, pelas intrigas e brigas constantes. Em alguns momentos, ela fraqueja “Estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa” (p.30).
A autora reconhece a situação precária de sua raça, mesmo após a promulgação da Lei Áurea, “[...] assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravidão atual – a fome” (p. 27).  Ela se revolto com os restos de gêneros alimentícios despejados na favela, em péssimas condições, alguns apodrecidos, outros com alguma substância tóxica, sem condições de serem consumidos,
Como havia brigas entre homens e mulheres, entre homens e entre mulheres. As mulheres estavam sempre apanhando dos maridos, companheiros, amantes. As crianças presenciam tudo, as cenas de espancamento, de sexo, mulheres nuas ou seminuas, muitas delas fugindo dos homens que querem açoitá-las. A vida de todos é o assunto preferido, principalmente, entre as mulheres. A solidariedade é muito pequena, salvo em alguns casos e entre algumas pessoas.  Carolina anota que “A única coisa que não existe na favela é solidariedade” (p.13)
No livro pode-se ter uma percepção sobre diversos problemas, tais como a alta taxa de mortalidade infantil, muita ingestão de álcool, pessoas sem trabalho, vadiando, principalmente, os mais jovens, meninas que cedo se envolvem com a prostituição, meninos que começam a praticar roubos.  “Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos” (p. 28), ‘Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (p.33)
Retrata o momento político, as disputas que envolvem Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Jânio Quadros. Faz diversos comentários negativos sobre o governo de Juscelino Kubstchek. A autora considera que os favelados são “projetos de gente humana” (p. 20) que são vistos pelos políticos somente na época das eleições. Mas ela alerta, ”[...] o povo não tolera a fome” (p. 26) E complementa que “É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (p. 26). Acrescenta, ainda, “Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre” (p. 35)
Ela demonstra visão política quando afirma “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz (sic) tudo está enfraquecendo [...} E tudo que está fraco, morre um dia” (p. 35). Reforça dizendo  “Mas o povo não deve cançar (sic). Não deve chorar. Deve lutar pra melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo” (p. 48).
Mesmo sendo negra, parece reconhecer a superioridade dos brancos “Conversei com uma senhora que cria uma menina de cor. É tão boa para a menina. Lhe compra vestidos de alto preço” (p. 22).  Ainda nessa mesma linha de pensamento “Fiquei conhecendo uma pretinha, muito limpinha que falava muito bem” (p. 23), Quando se refere aos que dirigem o país  “Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz” (p.27).  
A autora verbaliza o preconceito existentes em relação aos nordestinos, quando diz “Depois que a favela superlotou-se de nortistas tem mais intriga. Mais polêmica e mais distrações” (p. 67). Ao se referir às brigas constantes afirma “Se no Norte eles for (sic) assim, o Norte deve ser horroroso” (p. 68). Em consequência, acredita que  “[...] com tantos baianos na favela os favelados veteranos estão mudando-se. Eles querem ser superior pela força” (p. 70)
A autora demonstra uma visão ampla dos problemas sociais, políticos e econômicos do momento em que está vivendo. A linguagem tem erros, mas às vezes usa termos rebuscados. Ela descreve São Paulo como a “[...] a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas” (p. 76)  
O livro é um retrato fiel de uma realidade cruel, degradante, que ainda continua existindo, principalmente, em alguns lugares do país, mesmo passados mais de 60 anos.  Pode-se perceber, entretanto, que houve nesse período algum avanço nas políticas de proteção às mulheres, às crianças e combate ao preconceito, mas ainda é muito pouco. No entanto, a principal evolução tem acontecido em relação à tomada de consciência das minorias, que passaram a reivindicar seus direitos e desenvolverem trabalhos de autoafirmação.
Considero que a autoavaliação que a autora faz é muito positiva em relação ao demais habitantes da favela, todos tem muitos defeitos, ela nem tantos; não entra em brigas; não cria problemas com as crianças, não faz fofoca, está sempre disponível para auxiliar aos demais. Talvez essa visão estivesse relacionada com o fato de que ela escreve um diário com a intenção de que fosse publicado.  Assim, seu retrato deveria ser melhor desenhado, o que não diminui o valor da obra, um testemunho da miséria humana e, também, da capacidade de resiliência. 
É um livro muito interessante, necessário, mas não é uma leitura agradável. Recomendo, para quem tem interesse em problemas de ordem social e antropológica.  
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Quarto de Despejo: diário de uma favelada
Carolina Maria de Jesus - Ed. Ática, 2001, 8ª edição