terça-feira, 12 de março de 2019

Maldito seja Dostoiévski

de Atiq Rahimi



Comentários de Carlos Guido Azevedo

O romance está todo ambientado em um Afeganistão em guerra civil depois da ocupação russa em 1990. Rassul o personagem principal, teve formação russa e é leitor assíduo de Dostoiévski, seu tema principal em todas as conversas.
Engendra assassinar a uma velha má - nana Alia - que quer desencaminhar sua noiva Sufia, forçando-a ao trabalho exaustivo doméstico e buscando leva-la para uma casa de prostituição.
Justo no instante de execução do crime, quando estava a aplicar o golpe decisivo, lhe veio à mente o personagem Raskólnikov de "Crime e Castigo", o que lhe causou uma tremenda confusão mental.
Saiu do local do crime sem levar o dinheiro e as joias, seu objetivo complementar, pois com isso resolveria o problema de sua noiva e de sua sogra.
Quando resolveu voltar a cena do crime, nada encontrou do que queria, apenas vislumbrou uma mulher de burca azul se evadindo do local e nem a vítima lá permanecia.
Numa profunda decepção passou a perseguir a mulher de burca azul e acaba se aprofundando cada vez mais numa crise de consciência.
Sente que cometeu um grande crime, que precisa ser castigado, por isso, vai em busca da lei que precisa lhe ser imposta.
Muitas aventuras depois, já sem voz e com muitas tragadas de haxixe, volta a seu quarto e resolve se entregar a justiça em uma Cabul em guerra, com o sistema de justiça destroçado, grupos guerrilheiros em constante escaramuças, bombas caindo, e uma profunda mudança de mentalidades a partir da saída dos russos, derrocada do comunismo e assunção dos mulás.
Vemos um Rassul afundado em pensamentos filosóficos sobre a vida, a autodeterminação dos humanos, o senso de justiça universal que não pode depender de situações locais e circunstâncias especiais.
O certo e o errado estão sempre lá para serem definidos por alguém, como um juiz, Ele quer ser ouvido, explicar o seu intento, justificar seu ato e assumir a pena.
Ele quer ser julgado, condenado segundo o seu crime, que todos conheçam seu erro e que ele sirva para que outros compreendem que todo crime deve ter seu castigo.
Assim, afundado em seus pensamentos, retirados do arcabouço de ideias de Dostoievski, ele empreende seu esforço em busca de concretizar primeiro a verdade de seu crime, o que vai ficando cada vez mais difícil, porque ninguém dá conta da morte de nana Alia, todos acham que ela viajou e levou suas joias e seu dinheiro.  
Um crime sem vítima, que não é levado a sério nem pelos seus amigos, nem pelos que deveriam fazer justiça vai complicando cada vez mais as ideias de Rassul e fazendo com que ele busque cada vez com mais afinco algum juiz que o julgue e dê sua sentença.
Mas o juiz não se interessa em lhe sentenciar, mas em saber onde está a fortuna de nana Alia. Sem a informação desejada condena Rassul a ter as mãos cortadas e ser enforcado em praça pública.
Seu amigo o comandante Pervez parece entender a luta de Rassul para ser justiçado, para explicar seu crime, receber o reconhecimento por ele.
Só Pervez, depois de lutar para superar essa necessidade em Rassul, compreendeu sua demanda e percebeu o horror do momento que estavam vivendo. No ápice da história, quando Rassul é levado à forca, ela se encontra já utilizada.
Era Pervez que tendo sido responsável pela morte do assassino de seu filho adotivo e tendo matado no embate a mulher e o filho do assassino, se julgou culpado e se condenou à forca, utilizando aquela que mataria a seu amigo Rassul, tomando assim o seu lugar na execução que havia sido planejada com muita assistência.    
Comentários
Estamos sem dúvida diante de uma obra de alta qualidade, de arquitetura complexa e execução primorosa.
Já tivemos oportunidade de ler muitas obras que referenciam outras em sua composição ou seu enredo, mas esta absorve os principais conceitos filosóficos de Crime e Castigo e remonta a luta do personagem em busca de uma justiça, em um ambiente absolutamente impermeável a ela.
Na verdade, durante toda a leitura estive em minha memória outro livro que discutimos aqui e de temática parecida. Em um ambiente de guerra, de selvageria o ser humano parece perder qualquer senso de justiça e humanidade. Em “O Coração das Trevas” de Joseph Conrad, "o horror, o horror" estava também, no coração dos homens e um personagem meio louco, meio lúcido procura mostrar essa linha tênue entre civilização e barbárie.                

Recomendo com louvor.