de Atiq Rahimi
Comentários de Carlos Guido Azevedo
O romance está todo ambientado em um Afeganistão em
guerra civil depois da ocupação russa em 1990. Rassul o personagem principal,
teve formação russa e é leitor assíduo de Dostoiévski, seu tema principal em
todas as conversas.
Engendra assassinar a uma velha má - nana Alia - que
quer desencaminhar sua noiva Sufia, forçando-a ao trabalho exaustivo doméstico
e buscando leva-la para uma casa de prostituição.
Justo no instante de execução do crime, quando
estava a aplicar o golpe decisivo, lhe veio à mente o personagem Raskólnikov
de "Crime e Castigo", o que lhe causou uma tremenda confusão mental.
Saiu do local do crime sem levar o dinheiro e as
joias, seu objetivo complementar, pois com isso resolveria o problema de sua
noiva e de sua sogra.
Quando resolveu voltar a cena do crime, nada
encontrou do que queria, apenas vislumbrou uma mulher de burca azul se evadindo
do local e nem a vítima lá permanecia.
Numa profunda decepção passou a perseguir a mulher
de burca azul e acaba se aprofundando cada vez mais numa crise de consciência.
Sente que cometeu um grande crime, que precisa ser
castigado, por isso, vai em busca da lei que precisa lhe ser imposta.
Muitas aventuras depois, já sem voz e com muitas
tragadas de haxixe, volta a seu quarto e resolve se entregar a justiça em uma
Cabul em guerra, com o sistema de justiça destroçado, grupos guerrilheiros em
constante escaramuças, bombas caindo, e uma profunda mudança de mentalidades a
partir da saída dos russos, derrocada do comunismo e assunção dos mulás.
Vemos um Rassul afundado em pensamentos filosóficos
sobre a vida, a autodeterminação dos humanos, o senso de justiça universal que
não pode depender de situações locais e circunstâncias especiais.
O certo e o errado estão sempre lá para serem
definidos por alguém, como um juiz, Ele quer ser ouvido, explicar o seu
intento, justificar seu ato e assumir a pena.
Ele quer ser julgado, condenado segundo o seu
crime, que todos conheçam seu erro e que ele sirva para que outros compreendem
que todo crime deve ter seu castigo.
Assim, afundado em seus pensamentos, retirados do
arcabouço de ideias de Dostoievski, ele empreende seu esforço em busca de
concretizar primeiro a verdade de seu crime, o que vai ficando cada vez mais
difícil, porque ninguém dá conta da morte de nana Alia, todos acham que ela
viajou e levou suas joias e seu dinheiro.
Um crime sem vítima, que não é levado a sério nem
pelos seus amigos, nem pelos que deveriam fazer justiça vai complicando cada
vez mais as ideias de Rassul e fazendo com que ele busque cada vez com mais
afinco algum juiz que o julgue e dê sua sentença.
Mas o juiz não se interessa em lhe sentenciar, mas
em saber onde está a fortuna de nana Alia. Sem a informação desejada condena
Rassul a ter as mãos cortadas e ser enforcado em praça pública.
Seu amigo o comandante Pervez parece entender a
luta de Rassul para ser justiçado, para explicar seu crime, receber o
reconhecimento por ele.
Só Pervez, depois de lutar para superar essa
necessidade em Rassul, compreendeu sua demanda e percebeu o horror do momento
que estavam vivendo. No ápice da história, quando Rassul é levado à forca, ela
se encontra já utilizada.
Era Pervez que tendo sido responsável pela morte do
assassino de seu filho adotivo e tendo matado no embate a mulher e o filho do
assassino, se julgou culpado e se condenou à forca, utilizando aquela que
mataria a seu amigo Rassul, tomando assim o seu lugar na execução que havia sido
planejada com muita assistência.
Comentários
Estamos sem dúvida diante de uma obra de alta
qualidade, de arquitetura complexa e execução primorosa.
Já tivemos oportunidade de ler muitas obras que
referenciam outras em sua composição ou seu enredo, mas esta absorve os
principais conceitos filosóficos de Crime e Castigo e remonta a luta do
personagem em busca de uma justiça, em um ambiente absolutamente impermeável a
ela.
Na verdade, durante toda a leitura estive em minha
memória outro livro que discutimos aqui e de temática parecida. Em um ambiente
de guerra, de selvageria o ser humano parece perder qualquer senso de justiça e
humanidade. Em “O Coração das Trevas” de Joseph Conrad, "o horror, o horror" estava também, no coração dos homens e um personagem meio louco, meio lúcido
procura mostrar essa linha tênue entre civilização e barbárie.
Recomendo com louvor.