quarta-feira, 18 de julho de 2018


O Ruído do Tempo
Julian Barnes, 2015 (ed. Rocco, 2016)
by Daniela
                              Photograph: Alamy

O “Ruído do Tempo”, do autor inglês Julian Barnes, é um mergulho ficcional na mente angustiada de um dos mais importantes compositores russos do século XX, Dmitri Dmitrievich Schostakovich. A partir de informações coletadas em ensaios biográficos sobre o compositor, Julian Barnes imagina os diálogos internos do artista russo e reconstitui seu medo, angústia, humilhação, resignação, desolação, pessimismo e covardia em momentos chave de seus mais de 40 anos de relação com o Poder, na era stalinista e pós-stalinista. Um artista frente a um Estado totalitário, o solo de um dos instrumentos em uma grande orquestra de angústia coletiva.

“Sob a pressão do Poder, o eu racha e se quebra. O covarde conhecido convive com o herói secreto. Ou vice-versa. Ou, mais comumente, o covarde conhecido convive com o covarde secreto. Mas isso era simples demais: a ideia de um homem dividido ao meio por um machado. Melhor: um homem despedaçado em centenas de pedaços de entulho, tentando inutilmente lembrar como um dia tinha sido inteiro.” (p.150).
Como muitas sinfonias clássicas, “O Ruído do Tempo” é estruturado em três movimentos, nenhum deles poderia ser descrito como ‘allegro’.

O primeiro movimento ou parte um do livro é intitulada No Hall (“Tudo o que ele sabia era que esta era a pior hora.”). O músico espera e pensa sobre como tudo começou. No hall do elevador, no andar onde mora com a família, Schostakovich espera com a maleta preparada, durante dez noites, que venham lhe buscar, após sua primeira conversa com o Poder. Em janeiro de 1936, caíra em desgraça após Stálin ter comparecido a uma apresentação de sua, já famosa, ópera “Lady Macbeth de Mtsensk”. Após a apresentação, o editorial do jornal estatal Pravda trouxe a manchete devastadora: ‘CONFUSÃO EM VEZ DE MÚSICA’, concluindo que o compositor estava se desviando da tarefa de escrever o tipo de música que o povo queria ouvir, e se entregando ao ‘formalismo’.

Em cenas curtas em que acompanhamos o vai-e-vem dos pensamentos do músico, elementos de sua infância, de suas relações de afeto, lembranças de acontecimentos passados se alternam com o medo presente e palpável de ser arrastado para a morte no meio da madrugada, como muitos outros ‘inimigos do povo’. A narrativa é em terceira pessoa, e o narrador está dentro da mente do compositor, observando seus pensamentos, seu fluxo não linear de memória. É como se Shostakovich estivesse recontando sua história para si mesmo, tentando fazer sentido de suas escolhas e das escolhas que fizeram por ele. O livro tem um único personagem, os outros nomes que aparecem na narrativa (Tanya, Nita, Glikman, Stalin, Zakrevski, Paspelov, Kruschev...) são ruídos do tempo.

Dois: No avião (“Tudo o que ele sabia era que este era o pior momento.”). No segundo movimento, o medo ainda está lá, mas após a segunda conversa com o Poder (Ele Mesmo), em 1949, humilhação e ironia se alternam nos diálogos mentais do músico no vôo de volta da participação não desejada no Congresso Cultural e Científico para a Paz Mundial, em Nova York. Um dos membros da delegação russa mais conhecidos do público americano, o compositor leu discursos não escritos por ele, com ideias nas quais não acreditava ou defendia, no evento de promoção do regime comunista. Só queria ser deixado em paz com sua música, sua família.

“Quando alguém cortava um pedaço de madeira, as lascas voavam: era isso que os construtores do socialismo gostavam de dizer. No entanto, e se a pessoa visse, quando largasse o machado, que havia reduzido todo o depósito de madeira a um monte de lascas?” (p.87)
Três: No carro (“Tudo o que ele sabia era que este era o pior momento de todos.”). A terceira conversa com o Poder, já na era Kruschev, resultou em ser arrastado à presidência da União de Compositores da Federação Russa e, para seu desespero, ser impelido a se tornar membro do Partido. Tudo tinha melhorado sob o Primeiro Secretário, o Partido reconhecia seus anos difíceis durante o Culto à Personalidade e agora queria compensá-lo. “Em troca, só queríamos de você um reconhecimento de que o Partido mudou. O que não é pedir muito, é, Dmitri Dmitrievich?” Tudo tinha mudado, mas nada tinha mudado. Seus últimos 15 anos de vida são de resignação, desolação, covardia.

“De que serve, afinal, uma consciência, senão para buscar, como uma língua examinando os dentes em busca de cáries, áreas de fraqueza, duplicidade, covardia, fantasia?” (p.145)
“Uma alma podia ser destruída de três maneiras: pelo que os outros faziam; pelo que os outros obrigavam alguém a fazer; e pelo que alguém escolhia voluntariamente fazer. Qualquer um desses métodos era suficiente; embora o resultado fosse irresistível quando todos os três eram combinados.” (p.160)
“A vida era o gato que arrastava o papagaio pelo rabo, escada abaixo; sua cabeça ia batendo em cada degrau.” (p.161)
O título do romance, emprestado de um poema do também russo Osip Emilyevich Mandelstam (1891-1938), no original russo é algo similar ao termo alemão zeitgeist (significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos; o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época, ou as características genéricas de um determinado período de tempo). No romance de Barnes, o ruído do tempo se contrapõe à música, na mente do personagem. O próprio fluxo confuso de sua memória vai caracterizando esse ruído. Várias passagens do texto exploram esse termo:

“A cacofonia ecoava em sua cabeça. A voz do pai, as valsas e polcas que ele próprio tinha tocado enquanto cortejava Nita, quatro toques de uma sirene de fábrica em fá sustenido, o latido de cães, mais alto do que o som de um fagotista inseguro, uma confusão de percussão e metais debaixo de um camarote oficial revestido de aço.” (p. 16)
 “Mas a ironia – talvez, à vezes, ele esperava – permitiria que conservasse o que valorizava, mesmo quando o ruído do tempo se tornava alto o bastante para quebrar vidraças.” (p.87)
“O que pode ser usado contra o ruído do tempo? Só a música que está dentro de nós – a música do nosso ser – é que é transformada por alguns em música de verdade. Que, ao longo das décadas, se for forte e verdadeira e pura o suficiente para abafar o ruído do tempo, é transformada no sussurro da história.” (p.122)
Merece destaque na estrutura do livro a cena que abre e fecha o livro: é a mesma cena, que recontada ao final, nos dá acesso à pureza da alma musical, se não do personagem real Schostakovich, a do personagem ficcional. Um homem, no meio da guerra, medo, pobreza, tifo e sujeira ouve um acorde perfeito em um brinde de três copos sujos em uma estação de trem. “...uma tríade fora criada por copos de vodca não muito limpos, e o conteúdo formara um som que se destacara do ruído do tempo e que sobreviveria a tudo e a todos. E, talvez, finalmente, fosse isso o que importava.”