quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Os Vestígios do Dia

de Kazuo Ishiguro


por Carlos Guido Azevedo

Esta é a história de um bom mordomo, Stevens, que numa pequena viagem de férias, faz uma reflexão profunda sobre sua vida pessoal e profissional na mansão de Darlington Hall, onde trabalhou por mais de 30 anos para Lord Darlington vivenciando alguns momentos extremamente importantes para a Inglaterra nos anos que antecedem a Segunda Grande Guerra.
Mas, também poderia dizer, esta não é uma história de mordomo, como disse o pintor surrealista belga René Magritte no seu quadro representando um cachimbo, "Ceci n’est pas une pipe". Pode-se ler esse livro como uma história pessoal tão igual às outras, sobre um personagem que se dedica em excesso aos seus deveres e esquece de si, de sua própria vida e em alguns momentos de forma tão servil como um verdadeiro escravo, ou se aproveita a profunda reflexão analítica do mordomo Steven sobre sua vida, para ir mais além e identificar uma persona que se sobrepõe ao sujeito e domina toda a sua existência, levando esse drama para uma visão mais universal e paradigmática.
A viagem que o livro descreve, como etapas diárias é motivada por uma carta de miss Kenton, uma ex-governanta que deixou Darligton para se casar, mas poderia ter se casado com Stevens se ele tivesse dado alguma chance para a intimidade, durante o longo convívio. A carta lida e relida por Steven parece abrir nova possibilidade de retorno ao trabalho e ao relacionamento.  Mas, ao final da jornada ele descobre, com muita decepção, que miss Kenton voltou para o marido e não pretende retornar para o trabalho na mansão.
A honra profissional e pessoal é a grande linha de conduta da história, uma comovente auto avaliação se desenvolve no entremear de cada etapa da viagem, onde conta momentos importantes da atuação do seu patrão para evitar o excesso de pressão dos aliados sobre o povo alemão e, claro, dá relevo à atuação da criadagem sob seu domínio para dar suporte a tais eventos na mansão.
O clima tenso de cada situação importante é descrito sob sua ótica e do ponto de vista do seu relacionamento com miss Kenton, com quem desenvolve uma relação estritamente profissional, embora ela tenha em algumas ocasiões se excedido na tentativa de criar intimidade, nesses e nos demais momentos descritos, ele avalia que agiu com dignidade dos grandes mordomos, colocando os objetivos profissionais acima dos interesses e preocupações pessoais, como sua profissão exige e como indicavam os critérios da sociedade da classe de mordomos, evitando intimidades e afetos, mesmo em relação ao seu admirado pai, que não lhe permitiu intimidade durante à vida, nem assistência na decrepitude e mais amargamente na hora da morte. Embora registre sempre sua incompetência quanto à compreensão dos gracejos e ausência de senso de humor.
Aliás, toda a história é uma comovente descrição da fleugma inglesa, de sua propalada ausência de senso de humor e incapacidade de adaptação para situações embaraçosas, mas de firme compromisso com a verdade e com o respeito às regras e na exigência quase obsessiva de buscar a perfeição em si e nos subordinados.
                  “Afinal de contas, pensando bem, não é uma coisa tão boba de se fazer, principalmente se é no gracejo que está a chave do calor humano.”
Sim, é certo que Steven é excessivamente apegado a regras, e dificilmente abria exceção em sua rotina pessoal e na do resto do corpo de funcionários da mansão. Mas, não é essa hoje a lógica das grandes organizações e da burocracia moderna?
Encontrei na minha vida de consultor, dezenas de Stevens, particularmente nas estruturas de Usinas Hidroelétricas cujas rotinas e responsabilidades de trabalho e mesmo imponência das construções se assemelham às mansões da nobreza inglesa. Esses Stevens, como os trabalhadores de hoje, se dedicam totalmente à rotina, de modo obsessivo e manualizado em seus mínimos detalhes, de modo a não se compreenderem fora dela, sem aquelas obrigações. Ficam infantilizados diante da vida, tal qual o nosso personagem.
A prosa de Ishiguro é elegante, bem conduzida e envolvente, com boas descrições de ambientes, personagens e paisagens que amenizam a chatice geral do tema.
Gostei muito e recomendo com louvor.