por Carlos Guido Azevedo
Esta é a história de um bom
mordomo, Stevens, que numa pequena viagem de férias, faz uma reflexão profunda
sobre sua vida pessoal e profissional na mansão de Darlington Hall, onde
trabalhou por mais de 30 anos para Lord Darlington vivenciando alguns momentos
extremamente importantes para a Inglaterra nos anos que antecedem a Segunda
Grande Guerra.
Mas, também poderia dizer, esta
não é uma história de mordomo, como disse o pintor surrealista belga René
Magritte no seu quadro representando um cachimbo, "Ceci n’est pas une
pipe". Pode-se ler esse livro como uma história pessoal tão igual às
outras, sobre um personagem que se dedica em excesso aos seus deveres e esquece
de si, de sua própria vida e em alguns momentos de forma tão servil como um
verdadeiro escravo, ou se aproveita a profunda reflexão analítica do mordomo
Steven sobre sua vida, para ir mais além e identificar uma persona que se
sobrepõe ao sujeito e domina toda a sua existência, levando esse drama para uma
visão mais universal e paradigmática.
A viagem que o livro descreve,
como etapas diárias é motivada por uma carta de miss Kenton, uma ex-governanta
que deixou Darligton para se casar, mas poderia ter se casado com Stevens se
ele tivesse dado alguma chance para a intimidade, durante o longo convívio. A
carta lida e relida por Steven parece abrir nova possibilidade de retorno ao
trabalho e ao relacionamento. Mas, ao
final da jornada ele descobre, com muita decepção, que miss Kenton voltou para
o marido e não pretende retornar para o trabalho na mansão.
A honra profissional e pessoal é
a grande linha de conduta da história, uma comovente auto avaliação se
desenvolve no entremear de cada etapa da viagem, onde conta momentos
importantes da atuação do seu patrão para evitar o excesso de pressão dos
aliados sobre o povo alemão e, claro, dá relevo à atuação da criadagem sob seu
domínio para dar suporte a tais eventos na mansão.
O clima tenso de cada situação
importante é descrito sob sua ótica e do ponto de vista do seu relacionamento
com miss Kenton, com quem desenvolve uma relação estritamente profissional,
embora ela tenha em algumas ocasiões se excedido na tentativa de criar
intimidade, nesses e nos demais momentos descritos, ele avalia que agiu com
dignidade dos grandes mordomos, colocando os objetivos profissionais acima dos
interesses e preocupações pessoais, como sua profissão exige e como indicavam os
critérios da sociedade da classe de mordomos, evitando intimidades e afetos,
mesmo em relação ao seu admirado pai, que não lhe permitiu intimidade durante à
vida, nem assistência na decrepitude e mais amargamente na hora da morte.
Embora registre sempre sua incompetência quanto à compreensão dos gracejos e
ausência de senso de humor.
Aliás, toda a história é uma
comovente descrição da fleugma inglesa, de sua propalada ausência de senso de
humor e incapacidade de adaptação para situações embaraçosas, mas de firme
compromisso com a verdade e com o respeito às regras e na exigência quase
obsessiva de buscar a perfeição em si e nos subordinados.
“Afinal de contas, pensando bem,
não é uma coisa tão boba de se fazer, principalmente se é no gracejo que está a
chave do calor humano.”
Sim, é certo que Steven é
excessivamente apegado a regras, e dificilmente abria exceção em sua rotina
pessoal e na do resto do corpo de funcionários da mansão. Mas, não é essa hoje
a lógica das grandes organizações e da burocracia moderna?
Encontrei na minha vida de
consultor, dezenas de Stevens, particularmente nas estruturas de Usinas
Hidroelétricas cujas rotinas e responsabilidades de trabalho e mesmo imponência
das construções se assemelham às mansões da nobreza inglesa. Esses Stevens,
como os trabalhadores de hoje, se dedicam totalmente à rotina, de modo
obsessivo e manualizado em seus mínimos detalhes, de modo a não se compreenderem
fora dela, sem aquelas obrigações. Ficam infantilizados diante da vida, tal
qual o nosso personagem.
A prosa de Ishiguro é elegante,
bem conduzida e envolvente, com boas descrições de ambientes, personagens e
paisagens que amenizam a chatice geral do tema.
Gostei muito e recomendo com
louvor.