segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Jantar Secreto

de Raphael Montes
por Ana Studart

O tema deste romance, por mim proposto ao grupo, levantou controvérsias compreensíveis. A simples idéia da antropofagia desperta náuseas.  Propus o “Jantar Secreto” por ter sido escrito por  um jovem autor brasileiro muito bem avaliado e com outros romances já publicados. E porque o tema, para mim, suscitava curiosidade- como ele desenvolveria essa história, tornando-a palatável? E suscitava também polêmica: afinal a antropofagia tem causado fortes reações, mesmo em situações extremas, através dos tempos.
O AUTOR
Raphael Montes é um jovem advogado carioca, nascido em 1990.  Se define no Facebook como escritor policial e roteirista. Seu principal romance , “Dias Perfeitos” foi publicado em mais de 14 países e escolhido como livro do mês pela Amazon norte-americana.  “Suicidas”,  seu suspense de estréia, foi finalista do Prêmio Bemvirá de Literatura em 2010 e está sendo lançado agora em nova edição pela Companhia das Letras. O “Vilarejo” também foi sucesso de público e de crítica. Todos os seus romances  tem direitos de adaptação vendidos para o cinema.  Atualmente Raphael assina uma coluna semanal sobre cultura, em O Globo.
Por coincidência, Raphael Montes postou hoje, em sua página do Facebook:
“Ontem, vivi uma experiência incrível: vinte leitores queridos e fãs de gastronomia reunidos no @madameaubergine em SP para conversar sobre literatura e participar de um jantar secreto com o menu do meu livro. Foi divertidíssimo! E a carne de gaivota estava um primor! “
 O TEMA DO LIVRO
Canibal é aquele que come ser vivo da sua mesma espécie. É  praticado por alguns insetos como aranhas e escorpiões. Não confundir com antropófago, aquele que come carne humana. Um leão comer um ser humano, por exemplo, é antropofagia.
A antropofagia acontece  hoje em dia em casos raros- ou  praticado como sacrifício em rituais satânicos e em religiões pagãs, ou por tradição indígena.  
Também já aconteceu em tragédias. Um exemplo disso foi o acidente aéreo ocorrido no Andes em 1972, num vôo partindo do Uruguai, onde seus  passageiros sobreviveram por quase 70 dias se alimentando da carne humana dos mortos no acidente.
Em “Jantar Secreto” Raphael cita a antropofagia praticada pela tribo Tupinambá . Um interessante trabalho sobre o tema foi feito por Tatiane Ribeiro de Lima, graduada pela Universidade Federal da Paraíba, em 2013,  intitulado “Antropofagia: Sagrado, Crime ou Pecado?
Ela relata que em alguns rituais indígenas de tribos brasileiras  a antropofagia é ritual sagrado, até os nossos dias. Os Tupinanbás, o fazem motivados por vingança; os Yanomanes em cerimônias fúnebres num ritual complexo- cozinham um mingau de banana  com as cinzas do morto,“que é oferecido aos  familiares como forma de perpetuar o espírito do ente querido”. Já os Wari e os Guayaki comem seus mortos para honrá-los, e para que seus corpos sirva-lhes de túmulo.
Nesses casos, o Estado respeita as tradições das tribais, que são liberadas para manter seus rituais ancestrais. No Brasil dito “civilizado,” a antropofagia é crime. Tatiane relata um caso real em Pombal, na Paraíba,  onde, em 1877, a seca por três anos consecutivos matou nordestinos de fome e sede. Faminta, Dyonisia dos Anjos, de 27 anos, atraiu Maria, uma criança de 5, prometendo alimento, para em sua casa matá-la por sufocamento e comê-la. O crime foi descoberto e Dyonisia foi presa, julgada e condenada.
No romance em leitura, Raphael Montes faz  também referência a um caso clássico de estudo intitulado  “The Case of the Speluncian Explorers”, um artigo de Lon L. Fuller publicado pela Harvard Law Review em 1949. Trata de cinco exploradores  que ficam presos numa caverna por um deslizamento de terra, e descobrem, por contato de rádio, que sem comida, morreriam de fome antes que fosse possível resgatá-los. Eles decidem que um deveria se sacrificar pela sobrevivência dos outros e escolhem quem deve morrer por sorteio. Depois de resgatados, os quatro sobreviventes são julgados por esse crime. O objetivo era mostrar a complexidade para aplicação do Direito e as divergências surgidas durante o julgamento. O artigo, no final,  condena todos à morte por enforcamento.
A TRAMA:
O Jantar Secreto é um livro de suspense, com passagens  de humor - negro, claro - o que torna a leitura mais leve. Daria  um bom livro policial clássico, mas a escolha do autor  parece ter sido levantar o tema da antropofagia de maneira exotica e, principalmente, registrar a decadência da sociedade brasileira- a falsa moral, a corrupção, a banalidade do crime, a impunidade, a ausência de ética e princípios.
A história é contemporânea, se passa entre 2010 e 2016. Talvez para situar melhor o leitor no tempo e para dar um ar de realidade ao conto, Raphael cita fatos marcantes do período: “Quando abri os olhos, em 2014 o Brasil já havia perdido para a Alemanha na Copa do Mundo, o Papa era um argentino, o vírus Ebola apavorava paises inteiros e eu vestia beca para fazer o discurso de formatura.”
O romance começa quando quatro jovens saem da pequena  Pingo dÁgua, no Paraná, para dividir um apartamento no Rio de Janeiro, e se vêem sem  recursos para pagar aluguéis em atraso.  Na procura  de alternativas para ganhar dinheiro rapidamente numa economia em crise, têm a ideia de organizar jantares exclusivos e muito refinados no apartamento onde moram, já que um deles é Chefe de Cozinha. A proposta evolui  para  jantares com carne humana, com a criação da empresa  Carne de Gaivota Ltda, e a partir daí vai se revelando o lado sombrio de cada um dos  personagens. Após a repulsa inicial à ideia, todos encontram justificativas para participar do negócio- seja para obter recursos para  tratamento médico, por ganância, por vaidade ou por prestígio.
Numa escalada de horror, oferecem churrascos com linguiças de carne de atleta, coração humano no espeto, e pratos variados-  steak tartare no jantar francês, rolinho com carne de pescoço na  noite tailandesa, carne de vegano e, o horror dos horrores: um vitelo desossado, recheado com farofa de castanha, com carne de bebê.
Dante, o narrador, vai decaindo ao mesmo tempo em que o negócio prospera, e passa inclusive ao uso de drogas para se alienar da realidade .
Jantar Secreto acaba sendo uma interessante e bem verossímel avaliação sobre o caráter humano, com final surpreendente.
 A CAPA:  é adequada ao tema do livro, preparando o leitor para o tema, sem chocar. O desenho é limpo, e o fundo branco faz sobressair as manchas e gotas de sangue. Essa capa segue o mesmo estilo “clean” da capa de outro romance dele, “Suicidas”. As bordas rosadas das páginas combinam com o conjunto da apresentação, e me lembraram alguns missais católicos. 
PDV: Dante é o narrador, e é sob sua ótica que conhecemos os personagens e nos inteiramos dos acontecimentos.
O TEXTO:
A escrita é coloquial, seca, com palavras usadas no  cotidiano, mas muito bem elaborada.  A narrativa é simples, objetiva, recheada por diálogos.  Posso dizer que, apesar de alguns trechos pesados para a leitura,  o romance,  por vezes  chega a ser bem divertido.
Alguma leveza  vem, por exemplo, da descrição da receita do “Entrecote de Cordeiro Grellhado com Redução de Vodka, Cítricos e Maçã Verde Assada”  que, apesar dos ingredientes,  chega a dar água na boca do leitor; dos  diálogos bem elaborados em mensagens  do  WhatsApp; da elegância dos  convites impressos para os jantares secretos; das cartas de Leitão para a mãe, e da reprodução de seu desenho quando criança. São elementos introduzidos no texto com interessante criatividade.
O romance assume um toque intimista quando Dante conversa diretamente com o leitor, ao  escrever: “Acho que chegou a hora de você saber um pouco mais sobre o lugar de onde a gente veio. Pingo d’Água é uma cidade ridiculamente pequena…”. Mais tarde nos adverte, ao chegar no matadouro,  sobre o horror que se avizinha: “É onde você vai entrar agora. Fique avisado”.
A partir da metade do livro, o suspense aumenta na trama, e a leitura torna-se mais ágil, num crescendo de acontecimentos.
Os capítulos têm títulos elucidativos e bem objetivos. A partir daí são subdivididos por numeração.
O estilo é ágil, o autor termina por vezes o capítulo com uma frase curta ou  surpreendente, outras vezes dando dicas do que acontecerá adiante, prendendo a atenção do leitor. Exemplos:
“Eu não podia imaginar que daria naquela merda toda, podia?”
“No fim das contas fiz a pior escolha possível”.
“Eu não poderia estar mais enganado”.
A partir do segundo capítulo o autor joga no texto pequenos poemas que seriam encontrados em banheiros públicos, e usa o recurso do tipo itálico para destacá-los.
"Dize-me o que tu comes, que te direi quem és". 
“Quem ama, come”.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
A falta de conexão desses poemas com os textos onde são inseridos despertam curiosidade, e o motivo só é revelado ao final do livro.
PERSONAGENS:
São poucos e têm personalidade marcante. São definidos ao leitor mais pelas atitudes que tomam do que por descrições na escrita.
Leitão: um hacker gordo, preguiçoso e sem caráter que, com suas ações, leva os amigos gradualmente ao desastre. Sua mãe, uma cafetina de Pingo d’Água, já roubava carga dos caminhões que passavam pela cidade e matava e digeria os motoristas.
Dante: um homossexual sensível e vaidoso que estuda administração e trabalha numa livraria. Adere aos jantares em meio a remorsos, culpa e arrependimentos, tornando-se seu gerente.
Hugo: um Chefe de cozinha talentoso, ambicioso e sem limites que  chega a atropelar um mendigo para garantir a carne do jantar.
Miguel: o estudante de medicina "certinho" que se vê encurralado pelos amigos e acaba cedendo aos jantares, relutante, para ter dinheiro para tratamento médico da mãe. Por trabalhar num hospital, é forçado a roubar o primeiro cadáver.
Umberto: ricaço decadente e repugnante que mente aos quatro jovens ser dono de um crematório chamado Fogo e Paixão (!), capaz de abastecer os jantares com carne em abundância. Na verdade, as vítimas são selecionadas num Posto da Polícia Rodoviária e levadas aos galpões de um matadouro de porcos e galinhas, para morrer. Ele acaba por ditar as decisões da empresa: aumenta a frequência dos jantares, abre filiais em outros estados e considera até a exportação da valiosa carne.
Cora:  uma prostituta descrita por Dante como incrível, linda, divertida e deliciosamente amoral. Ela se apaixona por Leitão e fatia, sem remorso, os cadáveres com sua motosserra amarela.
Ruth: uma jornalista  freelancer que investiga os jantares secretos para uma reportagem, e é  morta em queima de arquivo e digerida.
Arthur: noivo de Ruth, quer elucidar o seu desaparecimento misterioso. É personagem importante que só aparece na porção final do romance. 
COMENTÁRIOS
É impossível deixar de comentar o requinte desses jantares exóticos. Os convidados, em trajes de gala, se reúnem num endereço pré-combinado, e são revistados e transportados com olhos vendados até o local do jantar. O ambiente é sofisticado, a recepção é em meio a velas, champanhe, e “amuse bouches”, e os participantes são orientados a usar o termo carne de gaivota ao invés de carne humana, que é elegantemente servida sob cloches de inox.
Frequentam esses jantares médicos, artistas, advogados, empresários, atores e diretores de TV. A nata da sociedade.
Algumas das melhores frases do romance estão nas falas de Umberto e Dante.
Na voz de Umberto:
 “Tem gente de sobra no mundo. A China está toda fodida com superpopulação”.
“Ainda tem essa cambada que vagabundeia e vive de subsídio do governo. Bolsa Familia, cotas, nem sei mais o que.  Pega essa gente toda e fatia. Faz bife. Carpaccio. Pobre à milanesa.”
" Qual  carne é  melhor? Da mulher ou do homem? Do preto  ou do branco? Do gordo ou do magro? Do velho ou do novo?  A do índio e do asiático tem gosto parecido?”
“Comer carne humana é o poder dos poderes.”
“Somos o topo da cadeia alimentar, o leão da selva. E queremos nos sentir desse jeito. Superiores, sempre.”
Na voz de Dante:
 “Naquele momento pensei que, na escala de crueldades, tinha gente muito pior no mundo. Gente que desviava verba de hospital público, que traficava órgãos, que fazia vídeos de sexo com criancinhas. A perversão não tem limites. O ser humano é um bicho escroto por natureza.”
 “Qualquer um faria o mesmo.”
“Acontece que o jantar é hediondo”.
“A vida é assim, você precisa ter a cara esfregada no esgoto e sentir o cheiro da morte para começar a tentar se redimir”.

CONCLUSÃO:
O meu primeiro ódio do livro foi para Leitão, o amigo irresponsável que torra o dinheiro do aluguel com uma prostituta e depois lança na internet a proposta para os jantares antropófagos, deslanchando assim a trama. O meu primeiro nojo foi quando atropelaram um mendigo sujo e malcheiroso para servir no jantar. Vieram outros nojos, depois. O livro de Raphael Montes é assim: capaz de despertar, com realismo, os mais diversos sentimentos no leitor, ao longo da leitura.
Embora considere essa possibilidade terrível, me parece bastante plausível, considerando-se a crise de consciência moral atual, que jantares antropófagos, se oferecidos na realidade, tivessem adeptos no Brasil. Posso facilmente imaginar candidatos a gastar uma fortuna para degustar a carne de seus  semelhantes, e assim  se sentirem superiores. Exatamente como escreve o autor: 
"Em geral todos eram muito comedidos, fascinados com a eletrizante experiência de chegar vendados em local desconhecido tratados como Reis no banquete digno de Barbetti, provando o sabor de uma carne rara e especial como é a humana".
Considero  Jantar Secreto  um livro surpreendente sob todos os aspectos- a escrita, a trama, os personagens. É ousado e original. Ele conquista a atenção do leitor inicialmente pela história, que começa banal, mas envolvente, de quatro estudantes com problemas financeiros, com suas namoradas, com suas amizades, num Brasil em crise econômica. E depois conquista pelo desenrolar dos fatos, as coisas horríveis acontecendo de maneira plausível, a empresa crescendo, uma linha de montagem se formando para o processamento da carne, uma coisa levando a outra cada vez mais terrível, sem que aparentemente fosse possível evitá-las. A ironia mórbida é impagável, como por exemplo a de Dante aderir, no Avaaz, a uma petição contra a tortura de cães na China, para se “redimir”.
“Uns são espancados, outros sangram até a morte antes de serem comidos. É assim que são tratados os cachorros no festival de carne canina de Yulin”.
Os últimos capítulos são surpreendentes, e o desfecho é irretocável. O cartão de visitas impresso na última página fecha o livro como deveria.
Vale a pena a leitura, para aqueles que conseguem ver, além do horror da antropofagia, uma crítica  muito bem elaborada sobre a crise moral do momento atual, e a falta de horizonte para os jovens, que, sem perspectivas , acabam enveredando por atalhos condenáveis para sobreviver.  Recomendo.