de José Eduardo Agualusa
por Ana Studart
A Teoria Geral do
Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, se passa em Luanda, Angola, e tem como
pano de fundo a luta pela independência do povo angolano e suas repercussões na
vida dos personagens.
Os Fatos: À independência
de Angola, alcançada em 1975, segue-se uma guerra civil que se prolonga por 27
anos, onde predominam duas facções, a UNITA- União Nacional pela Independência
Total de Angolam e o MPLA- Movimento Popular
de Libertação de Angola, ligado a Cuba. O romance, já no seu segundo capítulo,
trata dos primeiros tiros da guerra pela independência.
O Enredo: Agualusa
conta a história, supostamente com base verídica,
de uma portuguesa denominada Ludovica, mulher de personalidade tímida e
arredia, residente em Angola. Quando a irmã e o cunhado fogem do país e a abandonam, nas vésperas da independência da
colônia, Ludo, ao se ver sozinha, constrói
uma parede bloqueando a entrada de seu apartamento, localizado no prédio mais
luxuoso de Luanda, o chamado Prédio dos Invejados.
Lá sobrevive por quase
30 anos, se alimentando do que consegue plantar na cobertura do prédio e dos pombos que ela atrai em
armadilhas. A água, se falta na torneira, recolhe da chuva. Para se aquecer e
para cozinhar, vai queimando livros e toda a madeira disponível no apartamento.
Escreve um diário que, ao acabarem as páginas do caderno, continua sendo
escrito pelas paredes, uma escrita que se degrada à medida em que Ludo vai
perdendo a visão. Possui para sobreviver apenas uma pistola, cem dólares, e o
punhado de diamantes roubados que descobre sob o colchão onde dormia o cunhado,
dentro de uma bolsinha de couro.
Ao longo do romance,
são apresentados eventos históricos - o terrorismo, os mercenários, a longa guerra civil que se
seguiu à independência. Agualusa escreve: “A república socialista foi
desmantelada pelas mesmas pessoas que a haviam erguido, e o capitalismo
ressurgiu das cinzas, mais feroz do que nunca”.
A Narrativa: O romance
começa em ritmo lento, depois flui com
facilidade. Os capítulos são curtos, e os títulos, longos e curiosos. O texto é
denso em informações, mas ágil. O autor destaca as falas de Ludo e trechos do
seu diário usando o recurso da fonte itálica.
No texto, alguns termos
angolanos- a mágica Kianda, que serve para o bem e o mal; o Kumbu, dinheiro; Sapeur,
nome angolano para o fanáticos pela moda: Quimbos, vilarejos; e a Kuribeka,
maçonaria angolana
O título do romance é justificado
num inspirado texto de Ludo: “Se ainda tivesse espaço, carvão e paredes
disponíveis, poderia escrever uma teoria geral do esquecimento. Dou-me conta de
que transformei o apartamento inteiro num imenso livro. Depois de queimar a
biblioteca, depois de eu morrer, ficará só a minha voz. Nesta casa todas as
paredes tem a minha boca”.
O livro apresenta muitas passagens tocantes. Ressalto duas delas, relativas a Deus e à morte:
"Deus pesa as
almas numa balança. Num dos pratos fica a alma, no outro as lágrimas dos que a
choraram. Se ninguém a chorou, a alma desce para o inferno. Se as lágrimas
foram suficientes, e suficientemente sentidas, ascende para o céu. Ludo
acreditava nisto. Ou gostaria de acreditar. Foi o que disse a Sabalu: vão para
o Paraíso as pessoas de quem os outros sentem a falta. O Paraíso é o espaço que
ocupamos no coração dos outros.”
E no diário de Ludo:
“Compreendi ao longo dos últimos anos que
para acreditar em Deus é forçoso acreditar na humanidade. Não existe
Deus sem humanidade. Continuo a não acreditar nem em Deus nem na humanidade.”
PDV:O ponto de vista do
romance é misto. Por vezes Ludo fala em primeira pessoa, por vezes o autor é um
narrador onipresente.
Os Personagens: São
muitos e muito bem construídos ao longo
do romance. O autor os apresenta em doses homeopáticas- os personagens só são
visualizados por inteiro praticamente ao fim da leitura.
Dois personagens centrais são inicialmente
apresentados pelo apelido - Ludo e Monte.
Eles também só terão seus nomes completos revelados a partir da metade do
livro- Ludo pela carta enviada pela filha, e Monte ao se tornar detetive.
Alguns dos personagens
mais relevantes, e suas características:
-Ludovica Fernandes Mano, a Ludo- É uma mulher de bom coração. Atira
em Minguito, ladrão que tenta invadir o seu apartamento, mas o recolhe e o
ajuda, por estar ferido. Ao invés de chamar um médico, o ladrão pede que ela cante para ele até
morrer, e Ludo o enterra no terraço. Isso tudo acontece, com detalhes e humor,
em pouco menos de 50 linhas.
-Magno Moreira Monte- Na Revolução dos Cravos estudava em Lisboa, voltou
a Luanda para lutar pela independência. “Marxista contumaz”, carrasco, cruel,
funcionário do serviço de informação no regime socialista, passa a detetive com a chegada do capitalismo. Morre
caindo do telhado, tentando fixar uma antena - uma alegoria? A livre
comunicação triunfando sobre o obscurantismo?
-Orlando- O cunhado de Ludo que, patriota, não aceitava abandonar Angola,
como queria a esposa. Mas após roubar os diamantes, foge sem eles para Portugal,
deixando Ludo e as pedras para trás. Esses diamantes, que Ludo encontra sob o
colchão, são chamados de “milho”- nome apropriado porque, mais tarde, serão
engolidos pelos pombos nas arapucas montadas por Ludo.
-Jeremias Carrasco- Mercenário português que, ao longo do livro, tenta
sem sucesso retirar os diamantes de Ludo. Para o marxista Monte, Jeremias é um
prostituto do imperialismo americano, diferente dos cubanos que lutam por “convicção
e não por dinheiro. Ao que Jeremias retruca que também luta
por convicção – só que “contra o imperialismo soviético”.
-Daniel Benchimol é jornalista, especializado em desaparecimentos.
Pesquisa o sumiço do conferencista Simon Pierre Mulamba, que teria sido visto
sendo engolido pela terra, só sobrando o seu chapéu no chão. E quando uma cidade
inteira – um quimbo- chamada Nova Esperança desaparece da terra, ele, que
anteriormente a visitara, qualifica o evento como “um acidente geográfico”. E se segue o
comentário: “O quimbo desapareceu? Neste país tudo desaparece. Talvez o país
inteiro esteja em vias de desaparecimento, uma aldeia aqui, outra acolá, quando
dermos por isso, não existe nada.” Seria uma alegoria quanto à destruição do
país pela guerra?
-Madalena- Uma boa alma, enfermeira, ex-freira. Abre a
ONG Sopa de Pedra, para alimentar os “musseques” luandeses. A ela “só interessam as revoluções que
começam por sentar o povo à mesa”, porque “discursos não alimentam”.
-Sabalu- Jovem que teve a
mãe assassinada por combater o comércio de cadáveres humanos. Começa por roubar
Ludo galgando os andaimes da construção ao lado, para entrar no apartamento. Acaba
se afeiçoando a ela. Ele ensina Ludo a abraçar- com o isolamento, ela esquecera
como... ”Perdera um pouco a prática. Sabalu teve de lhe erguer os braços. Foi
ele mesmo fazendo ninho no colo da velha senhora”.
Ludo, por sua vez, o
ensina a ler, para que ele possa ler em voz alta os livros que a sua vista não permite mais.
-Fantasma- O cão pastor alemão albino, que Ludo ganha do cunhado, será seu único companheiro pela maior parte do romance. Ludo, quando varada
de fome, pensa em matá-lo, mas resiste. Fantasma morre mais tarde retratando a solidão trágica de Ludo, nesse
texto: “Alguma coisa- uma substância escura- escapava de dentro dela, como água
de um recipiente estalado, e deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único
ser no mundo que a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para
chorar.”
-Conclusão: É impressionante como
o autor consegue colocar tantos personagens, tantas ações e
emoções em tão poucas páginas – 171 - o que mostra a sua maestria e sua
capacidade de síntese, sem perda nas descrições de personagens e situações. Tem
trechos de muito humor - algumas vezes negro - e de muita poesia. O romance, construído magistralmente, é um verdadeiro quebra-cabeças que só se
visualiza por completo ao final da
leitura. Para compreender o romance foi preciso ir recuperando os passos de
cada personagem. Eles se entrelaçam numa sucessão de coincidências que, apesar
da quantidade, são críveis. No desfecho, tudo se encaixa sem que o autor deixe
pontas soltas. O romance é arte em
construção e poesia. Vale a leitura.
Recomendo sem
restrições.
Sobre o autor:
José Eduardo
Agualusa (Alves da Cunha) é jornalista e escritor angolano, com livros
traduzidos em 25 idiomas. Nasceu em 13 de dezembro de 1960, em Huambo, Angola. Estudou agronomia e silvicultura em Portugal, no Instituto
Superior de Agronomia de Lisboa e atualmente divide seu tempo entre Portugal, Angola
e Brasil, trabalhando como jornalista e escritor.
O avô de Agualusa era
carioca, e ele costuma vir ao Brasil regularmente, há mais de 20 anos. No
romance fica evidente a ligação do autor com o Brasil- Ludo, ao queimar livros
de Jorge Amado, deixa de poder “revisitar Ilhéus e São Salvador”. E um morto é
enterrado ao som de “Morte e Vida
Severina”.
Duas poesias do
romance foram escritas por uma poetisa brasileira, Christiana Nóvoa- Haikai e
Exorcismo. Curtas e muito bonitas.
Sobre a influência
brasileira, ele falou à revista Época, em 2004: “Sempre ouvi música e li
escritores do Brasil. Caetano, Chico Buarque e Rubem Fonseca me fizeram
entender o país com maior profundidade. Conheço mais o Brasil do que muitos
brasileiros. O povo é alegre e isso se deve muito à influência africana.” Nessa mesma entrevista, Agualusa criticou o
racismo brasileiro e a incapacidade das elites em entender o país. Seu escritor
preferido é Eça de Queiroz
Agualusa escreve para
o portal angolano Rede Angola,
mensalmente, para a revista portuguesa LER e assina todas as
segundas-feiras uma coluna no Segundo Caderno do carioca O Globo.
Em 2006, ele lançou,
com Conceição Lopes e Fatima Otero, a publicação brasileira Língua Geral, dedicada exclusivamente a
autores da língua portuguesa.
Agualusa foi premiado
já em seu primeiro romance- “A Conjura”. Por ele recebeu o Prémio de Revelação Sonangol.
Em 2007 recebeu o
prestigiado "Prêmio Independente de Ficção Estrangeira", promovido
pelo diário britânico The Independent em colaboração com o Conselho das Artes do Reino Unido, pelo livro O Vendedor de Passados. Foi o primeiro escritor
africano a receber essa premiação
Em entrevista à
revista “Quem”, Agualusa se refere ao seu processo de escrita: “Não
sei como as idéias se tornam contos e romances. Isso pertence ao
domínio do mistério. Também não sei como as imagens chegam a um televisor. A
gente liga um televisor e as imagens aparecem. Ninguém se pergunta como
chegaram ali. Acontece o mesmo com a escrita. Um dia acordo, sento-me ao
computador e começo a escrever. Há aquela estória que quer tomar forma. As
personagens que saem da sombra e começam a falar. Eu apenas me esforço por
ouvir o que elas têm a dizer. Há um momento verdadeiramente mágico em que todos
os fios se começam a ligar.”
Para ele, a escrita transforma o mundo. “Ninguém
acredita nisto e, no entanto, é verdade “