terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Teoria Geral do Esquecimento

de José Eduardo Agualusa


por Ana Studart

A Teoria Geral do Esquecimento, de José Eduardo Agualusa, se passa em Luanda, Angola, e tem como pano de fundo a luta pela independência do povo angolano e suas repercussões na vida dos personagens.

Os Fatos: À independência de Angola, alcançada em 1975, segue-se uma guerra civil que se prolonga por 27 anos, onde predominam duas facções, a UNITA- União Nacional pela Independência Total de Angolam e  o MPLA- Movimento Popular de Libertação de Angola, ligado a Cuba. O romance, já no seu segundo capítulo, trata dos primeiros tiros da guerra pela independência.

O Enredo: Agualusa conta a história, supostamente com  base verídica, de uma portuguesa denominada Ludovica, mulher de personalidade tímida e arredia, residente em Angola. Quando a irmã e o cunhado fogem do país e a abandonam, nas vésperas da independência da colônia, Ludo, ao se ver sozinha,  constrói uma parede bloqueando a entrada de seu apartamento, localizado no prédio mais luxuoso de Luanda, o chamado Prédio dos Invejados.
Lá sobrevive por quase 30 anos, se alimentando do que consegue plantar na cobertura  do prédio e dos pombos que ela atrai em armadilhas. A água, se falta na torneira, recolhe da chuva. Para se aquecer e para cozinhar, vai queimando livros e toda a madeira disponível no apartamento. Escreve um diário que, ao acabarem as páginas do caderno, continua sendo escrito pelas paredes, uma escrita que se degrada à medida em que Ludo vai perdendo a visão. Possui para sobreviver apenas uma pistola, cem dólares, e o punhado de diamantes roubados que descobre sob o colchão onde dormia o cunhado, dentro de uma bolsinha de couro.
Ao longo do romance, são apresentados eventos históricos - o terrorismo, os  mercenários, a longa guerra civil que se seguiu à independência. Agualusa escreve: “A república socialista foi desmantelada pelas mesmas pessoas que a haviam erguido, e o capitalismo ressurgiu das cinzas, mais feroz do que nunca”.

A Narrativa: O romance começa em ritmo lento, depois  flui com facilidade. Os capítulos são curtos, e os títulos, longos e curiosos. O texto é denso em informações, mas ágil. O autor destaca as falas de Ludo e trechos do seu diário usando o recurso da fonte itálica.
No texto, alguns termos angolanos- a mágica Kianda, que serve para o bem e o mal; o Kumbu, dinheiro; Sapeur, nome angolano para o fanáticos pela moda: Quimbos, vilarejos; e a Kuribeka, maçonaria  angolana
O título do romance é justificado num inspirado texto de Ludo: “Se ainda tivesse espaço, carvão e paredes disponíveis, poderia escrever uma teoria geral do esquecimento. Dou-me conta de que transformei o apartamento inteiro num imenso livro. Depois de queimar a biblioteca, depois de eu morrer, ficará só a minha voz. Nesta casa todas as paredes tem a minha boca”.
O livro apresenta muitas passagens tocantes. Ressalto duas delas, relativas a Deus e à morte:
"Deus pesa as almas numa balança. Num dos pratos fica a alma, no outro as lágrimas dos que a choraram. Se ninguém a chorou, a alma desce para o inferno. Se as lágrimas foram suficientes, e suficientemente sentidas, ascende para o céu. Ludo acreditava nisto. Ou gostaria de acreditar. Foi o que disse a Sabalu: vão para o Paraíso as pessoas de quem os outros sentem a falta. O Paraíso é o espaço que ocupamos no coração dos outros.”
E no diário de Ludo: “Compreendi ao longo dos últimos anos que  para acreditar em Deus é forçoso acreditar na humanidade. Não existe Deus sem humanidade. Continuo a não acreditar nem em Deus nem na humanidade.”

PDV:O ponto de vista do romance é misto. Por vezes Ludo fala em primeira pessoa, por vezes o autor é um narrador onipresente.

Os Personagens: São muitos e  muito bem construídos ao longo do romance. O autor os apresenta em doses homeopáticas- os personagens só são visualizados por inteiro praticamente ao fim da leitura.
Dois  personagens centrais são inicialmente apresentados pelo apelido - Ludo e  Monte. Eles também só terão seus nomes completos revelados a partir da metade do livro- Ludo pela carta enviada pela filha, e Monte ao se tornar detetive.
Alguns dos personagens mais relevantes, e  suas características:    
-Ludovica Fernandes Mano, a Ludo- É uma mulher de bom coração. Atira em Minguito, ladrão que tenta invadir o seu apartamento, mas o recolhe e o ajuda, por estar ferido. Ao invés de chamar um médico,  o ladrão pede que ela cante para ele até morrer, e Ludo o enterra no terraço. Isso tudo acontece, com detalhes e humor, em pouco menos de 50 linhas.
-Magno Moreira Monte- Na Revolução dos Cravos estudava em Lisboa, voltou a Luanda para lutar pela independência. “Marxista contumaz”, carrasco, cruel, funcionário do serviço de informação no regime socialista, passa a  detetive com a chegada do capitalismo. Morre caindo do telhado, tentando fixar uma antena - uma alegoria? A livre comunicação triunfando sobre o obscurantismo?
-Orlando- O cunhado de Ludo que, patriota, não aceitava abandonar Angola, como queria a esposa. Mas após roubar os diamantes, foge sem eles para Portugal, deixando Ludo e as pedras para trás. Esses diamantes, que Ludo encontra sob o colchão, são chamados de “milho”- nome apropriado porque, mais tarde, serão engolidos pelos pombos nas arapucas montadas por Ludo.
-Jeremias Carrasco- Mercenário português que, ao longo do livro, tenta sem sucesso retirar os diamantes de Ludo. Para o marxista Monte, Jeremias é um prostituto do imperialismo americano, diferente dos cubanos que lutam por “convicção e não por dinheiro. Ao que Jeremias retruca que também  luta  por convicção – só que “contra o imperialismo soviético”.
-Daniel Benchimol é jornalista, especializado em desaparecimentos. Pesquisa o sumiço do conferencista Simon Pierre Mulamba, que teria sido visto sendo engolido pela terra, só sobrando o seu chapéu no chão. E quando uma cidade inteira – um quimbo- chamada Nova Esperança desaparece da terra, ele, que anteriormente a visitara, qualifica o evento como  “um acidente geográfico”. E se segue o comentário: “O quimbo desapareceu? Neste país tudo desaparece. Talvez o país inteiro esteja em vias de desaparecimento, uma aldeia aqui, outra acolá, quando dermos por isso, não existe nada.” Seria uma alegoria quanto à destruição do país pela guerra?
-Madalena- Uma boa alma, enfermeira, ex-freira. Abre a ONG Sopa de Pedra, para alimentar os “musseques” luandeses.  A ela “só interessam as revoluções que começam por sentar o povo à mesa”, porque “discursos não alimentam”.
-Sabalu- Jovem que teve a mãe assassinada por combater o comércio de cadáveres humanos. Começa por roubar Ludo galgando os andaimes da construção ao lado, para entrar no apartamento. Acaba se afeiçoando a ela. Ele ensina Ludo a abraçar- com o isolamento, ela esquecera como... ”Perdera um pouco a prática. Sabalu teve de lhe erguer os braços. Foi ele mesmo fazendo ninho no colo da velha senhora”.
Ludo, por sua vez, o ensina a ler, para que ele possa ler em voz alta os livros que a sua vista  não permite mais.
-Fantasma- O cão pastor alemão albino, que Ludo ganha do cunhado, será seu único companheiro pela maior parte do romance. Ludo, quando varada de fome, pensa em matá-lo, mas resiste. Fantasma  morre mais tarde retratando a solidão trágica de Ludo, nesse texto: “Alguma coisa- uma substância escura- escapava de dentro dela, como água de um recipiente estalado, e deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único ser no mundo que a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para chorar.”

-Conclusão: É impressionante como o autor consegue colocar tantos personagens, tantas ações e emoções em tão poucas páginas – 171 - o que mostra a sua maestria e sua capacidade de síntese, sem perda nas descrições de personagens e situações. Tem trechos de muito humor - algumas vezes negro - e de muita poesia.  O romance, construído magistralmente,  é um verdadeiro quebra-cabeças que só se visualiza por completo  ao final da leitura. Para compreender o romance foi preciso ir recuperando os passos de cada personagem. Eles se entrelaçam numa sucessão de coincidências que, apesar da quantidade, são críveis. No desfecho, tudo se encaixa sem que o autor deixe pontas soltas. O romance  é arte em construção e poesia. Vale a leitura.
Recomendo sem restrições.

Sobre o autor:
José Eduardo Agualusa (Alves da Cunha) é jornalista e escritor angolano, com livros traduzidos em 25 idiomas. Nasceu em 13 de dezembro de 1960, em HuamboAngola. Estudou agronomia e silvicultura em Portugal, no Instituto Superior de Agronomia de Lisboa e atualmente divide seu tempo entre Portugal, Angola e Brasil, trabalhando como jornalista e escritor.
O avô de Agualusa era carioca, e ele costuma vir ao Brasil regularmente, há mais de 20 anos. No romance fica evidente a ligação do autor com o Brasil- Ludo, ao queimar livros de Jorge Amado, deixa de poder “revisitar Ilhéus e São Salvador”. E um morto é enterrado  ao som de “Morte e Vida Severina”.
Duas poesias do romance foram escritas por uma poetisa brasileira, Christiana Nóvoa- Haikai e Exorcismo. Curtas e muito bonitas.
Sobre a influência brasileira, ele falou à revista Época, em 2004: “Sempre ouvi música e li escritores do Brasil. Caetano, Chico Buarque e Rubem Fonseca me fizeram entender o país com maior profundidade. Conheço mais o Brasil do que muitos brasileiros. O povo é alegre e isso se deve muito à influência africana.”  Nessa mesma entrevista, Agualusa criticou o racismo brasileiro e a incapacidade das elites em entender o país. Seu escritor preferido é  Eça de Queiroz
Agualusa escreve para o portal angolano Rede Angola,  mensalmente, para a revista portuguesa LER e assina todas as segundas-feiras uma coluna no Segundo Caderno do carioca O Globo.
Em 2006, ele lançou, com Conceição Lopes e Fatima Otero, a publicação brasileira  Língua Geral, dedicada exclusivamente a autores da língua portuguesa.
Agualusa foi premiado já em seu primeiro romance- “A Conjura”. Por ele recebeu o Prémio de Revelação Sonangol.
Em 2007 recebeu o prestigiado "Prêmio Independente de Ficção Estrangeira", promovido pelo diário britânico The Independent em colaboração com o Conselho das Artes do Reino Unido, pelo livro O Vendedor de Passados. Foi o primeiro escritor africano a receber essa premiação
Em entrevista à revista “Quem”, Agualusa se refere ao seu processo de escrita:  “Não sei como as idéias se tornam contos e romances. Isso pertence ao domínio do mistério. Também não sei como as imagens chegam a um televisor. A gente liga um televisor e as imagens aparecem. Ninguém se pergunta como chegaram ali. Acontece o mesmo com a escrita. Um dia acordo, sento-me ao computador e começo a escrever. Há aquela estória que quer tomar forma. As personagens que saem da sombra e começam a falar. Eu apenas me esforço por ouvir o que elas têm a dizer. Há um momento verdadeiramente mágico em que todos os fios se começam a ligar.”
Para ele,  a escrita transforma o mundo. “Ninguém acredita nisto e, no entanto, é verdade “