Editora: Record, 2009
Tradução de Maria Alice Máximo
Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos em
setembro/out de 2015
Se lhe perguntam sobre o tema do livro A
CICATRIZ DE DAVID, algumas
frases-síntese podem ser mencionadas.
Por exemplo, trata-se
da formação do Estado de Israel desde o
ponto de vista dos palestinos; ou, trata-se da saga de uma família de refugiados palestinos; ou ainda, trata-se da
história de dois irmãos palestinos, criados
em culturas diferentes (judaica e árabe) que voltam a se encontrar em condições
conflitivas. Por fim, pode-se dizer
que o tema do livro é uma incursão no
universo árabe/palestino em momentos históricos de guerra.
De fato, estas afirmações
apontam o contexto no qual a narrativa se desenvolve.
Estamos situados na
Palestina, no período entre 1941 a 2002, ou seja, dos tempos da 2ª. Guerra até
o século atual, passando pela época da proclamação do Estado de Israel em 1948
e pelas guerras ocorridas na região. É um romance sustentado
em fatos históricos - mistura ficção com a realidade.
Desta forma, esta novela contribui para a compreensão do
conflito árabe-judeu. E esta é, certamente, a intenção da autora, Susan
Abulhawa. Ela quer desenterrar o sofrimento do povo palestino e explicar o
surgimento do crescente ódio ao povo judeu. Usando suas próprias palavras temos
a seguinte descrição desse tempo:
“Era uma
história de guerra, de um fogo que congelava, queimava e voltava a congelar novamente. A história de amores desvairados e de um homem desvairado que se transformou em homem-bomba.” [1]·.
1)
Quanto à Estrutura e ritmo da narrativa
Há vários saltos temporais, idas e voltas, de
1967 a 2002, além de mudanças de geografia, já que os personagens não somente
vão para América, mas também exploram a região do Líbano, Cisjordânia e
Jerusalém. Para todos os tempos e para todos os lados percorridos, eles
carregam o passado como referência.
O início do romance se passa em 2002 e os
últimos capítulos também neste mesmo ano, no campo de Refugiados, em Jenin. Segundo a autora: “O tempo volta atrás e brinca com as coisas do passado.” [2].
Nesta brincadeira, entretanto, a narrativa
não perde o fio da meada e se mantém na trama. A história guarda uma lógica,
uma integridade - sem ficar solta ou despedaçada.
Esta estrutura não linear da narrativa é,
pelo menos, ousada para uma escritora que está debutando no ofício, com esta
obra.
Nota-se que Susan Abulhawa aproveita um
momento no livro para alfinetar algum possível editor, quanto a técnicas de
montagem de romance. Eis que ela menciona pela voz do personagem Sara:
“Por que alguém inventou que
um romance precisa ter simetria? E ele (editor) disse também que não posso ter
mais de uma voz. Como se pode ter criatividade com
tantas regras?”.
E ela declara - idiotas - todas essas regras.
Apenas segue sua criatividade e constrói um
romance não simétrico, que tem múltiplas vozes, múltiplos pontos de vista. Na
primeira parte, é a autora que relata. Depois passa a palavra ora a Amal, ora a
Yousef, sem perder também o seu próprio ponto de vista.
2)
Quanto ao Tempo, espaço e contexto
Nas primeiras noventa páginas, são apresentados
os costumes, a cultura, os personagens-membros e a vida da família Abulheja,
palestinos que viviam na aldeia de Ein Hod por quarenta gerações, nessa mesma
propriedade de plantio de azeitonas, figos e uvas.
Aqui ficam caracterizados o patriarca Yehya
(avô) e sua mulher Basima, o casal Hasan e Dalia, e seus dois filhos: Yousef,
Ismael e, posteriormente a filha Amal, além de vários outros personagens. [3]
São árabes apegados a Deus, a terra e à própria família, e “era isso – a essência de seu ser - que eles
defendiam e tentavam manter” [4].
Porém, não conseguiram defender nem manter o que pretendiam.
A partir de maio de 1948, os antigos
colonizadores ingleses deixam a Palestina. Aumenta o fluxo de chegada de judeus
refugiados, vindos de todas as partes do mundo, para ocupar a região. Proclamam
o Estado judaico e mudam o nome da terra para Israel, ”a terra prometida”.
Os palestinos são expelidos de suas
propriedades, de seus campos de oliva e de suas vilas. A autora descreve a
terrível violência perpetuada pelos judeus que vieram se estabelecer em Israel.
Organizadas, armadas, legitimadas pela ONU, as forças Israelenses atacam e
brutalmente desmantelam aldeias da Palestina, matando e ferindo muitos,
saqueando bens, roubando propriedades e pertences.
No romance, houve até roubo de seres humanos:
o comovente episódio do rapto do bebê Ismael, das mãos da bela beduína Dalia, pelo
soldado judeu Moshe. Ele leva o bebê de presente para a esposa Jolanta que,
estéril, devido a maus tratos recebidos no campo de concentração, sofria por
não poder ter filhos. A partir daí, Ismael
se transforma em David e é criado à maneira do povo judeu. No entanto,
permanece indelével no seu rosto, a cicatriz provocada por um acidente – marca
da irmandade entre Yousef e David.
Neste ponto, fica montado o cenário para a
história/estória da CICATRIZ DE DAVID.
3)
O desenrolar da narrativa
No caminhar do relato, os palestinos
sobreviventes acabam por se estabelecer num campo de refugiados, em Jenin, onde morre aos poucos a
esperança de recuperar seus lares ancestrais. É em Jenin que nasce AMAL, personagem
central do romance, a terceira filha de Hasan e Dalia. A partir daí, a narrativa passa para a voz de
Amal, intercalando com Yousef, seu irmão e, nalguns capítulos, com a autora.
O romance contém alguns textos fortes,
trágicos e terríveis, intercalados com outro ternos, comoventes e extremamente
líricos.
Deste segundo tipo fazem parte os capítulos
sobre o nascimento de Amal, sobre sua infância e sua relação com o pai, e os
relatos sobre os diversos romances e amores que se perpetuam de geração em
geração. As famílias palestinas convivem com lutas, perdas irreparáveis, mas
também com profunda experiência amorosa.
Em 1967, novamente chegam os soldados de
Israel bombardeando, queimando, roubando e saqueando[5].
Amal e sua família sofrem novamente terríveis momentos: ela, menina, presa num
buraco na cozinha enquanto ocorria a invasão em Jenin. Neste ataque, Hasan, o
pai, desaparece na obscuridade da morte na resistência.
Em seguida, a novela dá um salto para os anos
de 2001-2002, quando aparece Sara, a filha de Amal, e o encontro com o irmão David,
de 53 anos, já conhecedor da verdade sobre sua origem árabe.
A narrativa retorna a 1967 para contar a
infância de David e o trágico encontro dos irmãos. É quando Yousef é abatido
pelo soldado judeu, marcado com a cicatriz, seu próprio irmão Ismael, que
desconhece sua origem. Pela cicatriz e
pela aparência, Yousef ferido, torturado e machucado, em tratamento numa enfermaria,
reconhece na figura daquele soldado David, o seu irmão que fora raptado ainda
bebê.
Aqui há um capítulo completo, quase um poema,
com a voz de Yousef como narrador. É
Yousef, o homem (cap. 14). É Yousef empunhando armas, preso, e pensando em
seu amor por Fátima. A tentação é de citar literalmente o texto do romance pelo
lirismo e pela ternura que revela.
E a saga continua. Apesar das desgraças
acontecidas, a família vai tocando a vida.
Vale uma pausa para comentar sobre o choque
cultural da chegada de Amal aos Estados Unidos, em 1973. Em especial,
impressiona e encanta a comparação entre o agradecimento da cultura árabe e
agradecimento do idioma inglês.[6]
Para um árabe, um agradecimento profundo e autêntico merece muitas frases
bonitas de pedidos de bênçãos: “Que Alá
abençoe suas mãos tão generosas”; “A beleza está é nos seus olhos que me acham
bela”; “Que Alá jamais rejeite as suas preces”; “Que Alá te cubra com seu véu
de bênçãos”; e por aí vai. Como aceitar um mero e insuficiente “Thanks”? Para Amal, este foi um primeiro
choque de uma série de sensações de deslocamento na nova cultura.
Somente após sete anos, em 1980, seu irmão
Yousef, morando agora na Líbia e casado com seu amor Fátima, localiza Amal e
lhe telefona convidando para visitá-los.
Após algum tempo, ela parte para Beirute para conhecer a sobrinha, filha
de Yousef, que está por nascer. E aí se desenrolam capítulos doces da sua vida:
encontra Majid, o amor e paixão da sua existência, e logo se casam.
Mas eis que a destruição se repete. Em 1982,
a devastação da guerra. (Amal grávida, volta aos Estados Unidos para salvar-se
deixando, tristemente, seu amor e sua família, com a promessa de que viriam
encontrá-la).
Como nos conta a história, o acordo de Arafat
com os Estados Unidos, parece não ter sido respeitado: a saída da OLP do Líbano
teria como contrapartida a retirada dos judeus de Beirute, deixando sobreviver mulheres
e crianças palestinas. De fato, irrompem
ataques a Beirute, contra a OLP e bairros da cidade (quando Majid é morto num
bombardeio); ataques na Palestina, com massacre de mulheres e crianças em
Shatila (quando Fátima - mulher de Yousef, grávida de Falasteen, é cortada e
rasgada numa cena macabra, cuja foto corre o mundo).
Na estória, depois disso, Amal e Yousef
amargaram as perdas. “Majid, minha
história de amor eterno que se tornou nunca mais” [7]·. Yousef berra e chora e, “seu coração passou a bater movido pelo ódio” [8].
E ainda há muito a relatar. [9]
Novamente temos um capítulo muito lindo: O no.
37 - Yousef, o vingador [10],
onde o personagem quer justificar sua ação de desespero. A traição, as perdas,
o ódio e a desmantelamento de sua vida o conduziram à vingança, mais nada além
da vingança...
Anos depois da Intifada – reação dos
palestinos ante a ocupação - Amal regressa a Jenin com a filha, para lhe contar
a sua própria história. E, lamentavelmente, aí revive e sofre mais um massacre
dos israelenses e sucumbe ao seu destino.
A epopeia se encerra em 2002, mas deixa no ar
a forte mensagem a favor dos refugiados e dos palestinos.
A autora denuncia claramente a mentira
espalhada pelo mundo “Não houve massacre
em Jenin”. O relatório oficial das
Nações Unidas, escrito por homens que não puseram os pés em Jenin e não falaram
com as vítimas nem com os algozes, concluiu que não tinha havido massacre em
Jenin. [11].
4)
Susan Abulhawa [12]
e a sua mensagem
Esta é uma novela individual e coletiva, com
sustentação em fatos verdadeiros e forte inserção na história real. A ficção tem como entorno a realidade.
Também se pode afirmar que é um romance
inspirado na vida de alguém. Amal parece personificar a autora em vários
episódios.
E de fato, se olhamos a biografia de Susan Abulhawa, chegamos a
admitir que seja um romance memorialista. O conteúdo é repleto de referências
pessoais e inserção de elementos autobiográficos na existência dos
protagonistas.
Para afirmar isso, basta conhecer um pouquinho
da biografia da autora:
Seus pais foram refugiados da Guerra de Seis
Dias (1967) e depois se mudaram para o Kwait onde Susan nasceu, em 1970.
Sua família foi desmantelada e, em seguida, ela
foi enviada para viver com um tio nos Estados Unidos, onde permaneceu até a
idade de cinco anos. Depois passou por lares de familiares no Kuwait e na Jordânia.
Em seguida, foi enviada para Jerusalém, onde viveu em orfanato por três anos
antes de ir aos EUA já com 13 anos de idade. Teve uma Infância instável e sem
raízes.
Foi adotada em Carolina do Norte e permanece
nos Estados Unidos desde então. Graduou-se em Biologia e frequentou a Escola de
Medicina no Departamento de Ciência Biomédica, onde completou o mestrado em Neurociência.
Mais tarde, virou-se para o jornalismo e
ficção. Seu primeiro livro foi Mornings
in Jenin, publicado originalmente em 2006 com o título Cicatriz de David. Tornou-se um Best
seller internacional traduzido para 26 idiomas. Em 2013, Abulhawa publicou
uma coleção de poesias intitulada My
voice sought the Wind - e foi anunciado seu segundo romance, The Blue between Sky and water (Bloombury,2015). Diversos comentários
políticos de sua autoria foram publicados em jornais americanos.
Em 2002, esteve visitando o campo de refugiados em Jenin,
como observadora internacional, em seguida ao ataque de Israel, e testemunhou atrocidades que relatou da
seguinte forma: “What I saw in Jenin was
shocking at so many levels”… ..So when I left there, I really wanted to
tell their story because I knew nobody was going to talk about it”.. O resultado foi
a publicação de Cicatriz de Davi, com o nome de Mornings
in Jenin, em 2010. Foi descrita como uma lírica estória da família
Abulhewa, um relato do sofrimento e das perdas e mais perdas, e sucessivos
horrores infligidos durante a guerra de 1967, seguida dos ataques a Líbano,
Jenin, Sabra e Shatila, e a agonia e devastação impostas aos palestinos.
Tornou-se uma ativista e palestrante frequente, em prol da causa da Palestina. Foi fundadora da ONG Playgrounds for Palestine.
Quando acusada pelo filósofo francês,
Bernar-Henri Levy de concentrar clichês anti-Israel e anti-judeus mascarando
uma ficção – ela responde que está apenas abrindo a cortina, de forma leve,
para mostrar a escura verdade que querem manter escondida.
Alguns depoimentos da autora em Entrevista
ou posts não deixam dúvida quanto à mensagem que ela pretende transmitir com
o romance. Ela afirma:
· “A
narrativa de Israel dominou a literatura. É natural que o primeiro relato venha
dos conquistadores... mas...
Contaram a história que o Ocidente queria ouvir. Era mais fácil
escutar uma estória de uma terra sem seu povo. Era um happy end romântico. O relato palestino não tinha apelo e,
inicialmente, não foi recebido pelo Ocidente.”
·
“Que a história dos judeus – de perseguição e sofrimento – tenha
sido divulgada em novelas, poesias, filmes e teatros – ela compreende. Mas,
porque nossa história não foi contada?”
Em conclusão: Recomendamos com veemência este
livro, principalmente pelo valor informativo e histórico. [13]
Afinal, para
não deixar de levantar uma lacuna, pode-se comentar que os personagens
palestinos não apresentam sinais de crueldade humana (mesmo o vingador atua com desespero, como
resposta, e não com maldade pura). Falta um “bad guy” – um maldoso – uma personalidade ambígua e complexa na família
palestina, para dar mais realismo à condição humana dos personagens.
Contudo,
esta constatação não tira o brilho da ficção que tem a qualidade de prender o
leitor. O maior valor está no depoimento, cujo significado, profundidade e
emoção não estão nem de longe expressos aqui nesta resenha.
[1]Pag. 390
[2]
Pag. 410
[3] O personagem Ari Perlstein, para dar um exemplo, representa o judeu pacifista.
[4]
Pag. 54
[5]
Pag. 113
[6]
Pag. 266
[7]
Pag. 339
[8]
Pag. 345
[9] Nasce Sara, a filha de Amal, nos Estados Unidos. Yousef deixa a OLP, e entra num caminho sem
volta atuando na clandestinidade e na resistência. Segundo ele: “já era tempo de eles provarem um pouco
daquilo que tem feito de nossas vidas (pag. 359)”. E torna-se um
terrorista.
[10]
Pag. 364
[11]
Pag. 341
[12]
Dados coletados na Wikipédia, em setembro de 2015
[13]
Bibliografia complementar: A indústria do Holocausto – Reflexões sobre a
exploração do sofrimento dos judeus de Norman Finkelstein // Ver video no Youtube sobre a história na região