terça-feira, 13 de outubro de 2015

A CICATRIZ DE DAVID de Susan Abulhawa


Editora: Record, 2009           
Tradução de Maria Alice Máximo
Resenha por Maria Virginia de Vasconcellos em setembro/out de 2015


Se lhe perguntam sobre o tema do livro A CICATRIZ DE DAVID, algumas frases-síntese podem ser mencionadas.

Por exemplo, trata-se da formação do Estado de Israel desde o ponto de vista dos palestinos; ou, trata-se da saga de uma família de refugiados palestinos; ou ainda, trata-se da história de dois irmãos palestinos, criados em culturas diferentes (judaica e árabe) que voltam a se encontrar em condições conflitivas. Por fim, pode-se dizer que o tema do livro é uma incursão no universo árabe/palestino em momentos históricos de guerra.

De fato, estas afirmações apontam o contexto no qual a narrativa se desenvolve. 

Estamos situados na Palestina, no período entre 1941 a 2002, ou seja, dos tempos da 2ª. Guerra até o século atual, passando pela época da proclamação do Estado de Israel em 1948 e pelas guerras ocorridas na região. É um romance sustentado em fatos históricos - mistura ficção com a realidade.

Desta forma, esta novela contribui para a compreensão do conflito árabe-judeu. E esta é, certamente, a intenção da autora, Susan Abulhawa. Ela quer desenterrar o sofrimento do povo palestino e explicar o surgimento do crescente ódio ao povo judeu. Usando suas próprias palavras temos a seguinte descrição desse tempo:

      “Era uma história de guerra, de um fogo que congelava, queimava e voltava a congelar        novamente. A história de amores desvairados e de um homem desvairado que se                transformou em homem-bomba.” [1]·.

1)       Quanto à Estrutura e ritmo da narrativa

Há vários saltos temporais, idas e voltas, de 1967 a 2002, além de mudanças de geografia, já que os personagens não somente vão para América, mas também exploram a região do Líbano, Cisjordânia e Jerusalém. Para todos os tempos e para todos os lados percorridos, eles carregam o passado como referência.

O início do romance se passa em 2002 e os últimos capítulos também neste mesmo ano, no campo de Refugiados, em Jenin.  Segundo a autora: “O tempo volta atrás e brinca com as coisas do passado.” [2].

Nesta brincadeira, entretanto, a narrativa não perde o fio da meada e se mantém na trama. A história guarda uma lógica, uma integridade - sem ficar solta ou despedaçada. 

Esta estrutura não linear da narrativa é, pelo menos, ousada para uma escritora que está debutando no ofício, com esta obra.

Nota-se que Susan Abulhawa aproveita um momento no livro para alfinetar algum possível editor, quanto a técnicas de montagem de romance. Eis que ela menciona pela voz do personagem Sara:

Por que alguém inventou que um romance precisa ter simetria? E ele (editor) disse também que não posso ter mais de uma voz. Como se pode ter criatividade com 
tantas regras?”.

E ela declara - idiotas - todas essas regras.
Apenas segue sua criatividade e constrói um romance não simétrico, que tem múltiplas vozes, múltiplos pontos de vista. Na primeira parte, é a autora que relata. Depois passa a palavra ora a Amal, ora a Yousef, sem perder também o seu próprio ponto de vista.

2)       Quanto ao Tempo, espaço e contexto

Nas primeiras noventa páginas, são apresentados os costumes, a cultura, os personagens-membros e a vida da família Abulheja, palestinos que viviam na aldeia de Ein Hod por quarenta gerações, nessa mesma propriedade de plantio de azeitonas, figos e uvas.

Aqui ficam caracterizados o patriarca Yehya (avô) e sua mulher Basima, o casal Hasan e Dalia, e seus dois filhos: Yousef, Ismael e, posteriormente a filha Amal, além de vários outros personagens. [3] São árabes apegados a Deus, a terra e à própria família, e “era isso – a essência de seu ser - que eles defendiam e tentavam manter[4]. Porém, não conseguiram defender nem manter o que pretendiam.

A partir de maio de 1948, os antigos colonizadores ingleses deixam a Palestina. Aumenta o fluxo de chegada de judeus refugiados, vindos de todas as partes do mundo, para ocupar a região. Proclamam o Estado judaico e mudam o nome da terra para Israel, ”a terra prometida”.  

Os palestinos são expelidos de suas propriedades, de seus campos de oliva e de suas vilas. A autora descreve a terrível violência perpetuada pelos judeus que vieram se estabelecer em Israel. Organizadas, armadas, legitimadas pela ONU, as forças Israelenses atacam e brutalmente desmantelam aldeias da Palestina, matando e ferindo muitos, saqueando bens, roubando propriedades e pertences.

No romance, houve até roubo de seres humanos: o comovente episódio do rapto do bebê Ismael, das mãos da bela beduína Dalia, pelo soldado judeu Moshe. Ele leva o bebê de presente para a esposa Jolanta que, estéril, devido a maus tratos recebidos no campo de concentração, sofria por não poder ter filhos.  A partir daí, Ismael se transforma em David e é criado à maneira do povo judeu. No entanto, permanece indelével no seu rosto, a cicatriz provocada por um acidente – marca da irmandade entre Yousef e David.

Neste ponto, fica montado o cenário para a história/estória da CICATRIZ DE DAVID.

3)       O desenrolar da narrativa

No caminhar do relato, os palestinos sobreviventes acabam por se estabelecer num campo de refugiados, em Jenin, onde morre aos poucos a esperança de recuperar seus lares ancestrais. É em Jenin que nasce AMAL, personagem central do romance, a terceira filha de Hasan e Dalia.  A partir daí, a narrativa passa para a voz de Amal, intercalando com Yousef, seu irmão e, nalguns capítulos, com a autora.

O romance contém alguns textos fortes, trágicos e terríveis, intercalados com outro ternos, comoventes e extremamente líricos.

Deste segundo tipo fazem parte os capítulos sobre o nascimento de Amal, sobre sua infância e sua relação com o pai, e os relatos sobre os diversos romances e amores que se perpetuam de geração em geração. As famílias palestinas convivem com lutas, perdas irreparáveis, mas também com profunda experiência amorosa.

Em 1967, novamente chegam os soldados de Israel bombardeando, queimando, roubando e saqueando[5]. Amal e sua família sofrem novamente terríveis momentos: ela, menina, presa num buraco na cozinha enquanto ocorria a invasão em Jenin. Neste ataque, Hasan, o pai, desaparece na obscuridade da morte na resistência.

Em seguida, a novela dá um salto para os anos de 2001-2002, quando aparece Sara, a filha de Amal, e o encontro com o irmão David, de 53 anos, já conhecedor da verdade sobre sua origem árabe. 

A narrativa retorna a 1967 para contar a infância de David e o trágico encontro dos irmãos. É quando Yousef é abatido pelo soldado judeu, marcado com a cicatriz, seu próprio irmão Ismael, que desconhece sua origem.  Pela cicatriz e pela aparência, Yousef ferido, torturado e machucado, em tratamento numa enfermaria, reconhece na figura daquele soldado David, o seu irmão que fora raptado ainda bebê.

Aqui há um capítulo completo, quase um poema, com a voz de Yousef como narrador. É Yousef, o homem (cap. 14). É Yousef empunhando armas, preso, e pensando em seu amor por Fátima. A tentação é de citar literalmente o texto do romance pelo lirismo e pela ternura que revela.

E a saga continua. Apesar das desgraças acontecidas, a família vai tocando a vida.

Vale uma pausa para comentar sobre o choque cultural da chegada de Amal aos Estados Unidos, em 1973. Em especial, impressiona e encanta a comparação entre o agradecimento da cultura árabe e agradecimento do idioma inglês.[6] Para um árabe, um agradecimento profundo e autêntico merece muitas frases bonitas de pedidos de bênçãos: “Que Alá abençoe suas mãos tão generosas”; “A beleza está é nos seus olhos que me acham bela”; “Que Alá jamais rejeite as suas preces”; “Que Alá te cubra com seu véu de bênçãos”; e por aí vai. Como aceitar um mero e insuficiente “Thanks”? Para Amal, este foi um primeiro choque de uma série de sensações de deslocamento na nova cultura.

Somente após sete anos, em 1980, seu irmão Yousef, morando agora na Líbia e casado com seu amor Fátima, localiza Amal e lhe telefona convidando para visitá-los.   Após algum tempo, ela parte para Beirute para conhecer a sobrinha, filha de Yousef, que está por nascer. E aí se desenrolam capítulos doces da sua vida: encontra Majid, o amor e paixão da sua existência, e logo se casam.

Mas eis que a destruição se repete. Em 1982, a devastação da guerra. (Amal grávida, volta aos Estados Unidos para salvar-se deixando, tristemente, seu amor e sua família, com a promessa de que viriam encontrá-la).

Como nos conta a história, o acordo de Arafat com os Estados Unidos, parece não ter sido respeitado: a saída da OLP do Líbano teria como contrapartida a retirada dos judeus de Beirute, deixando sobreviver mulheres e crianças palestinas.  De fato, irrompem ataques a Beirute, contra a OLP e bairros da cidade (quando Majid é morto num bombardeio); ataques na Palestina, com massacre de mulheres e crianças em Shatila (quando Fátima - mulher de Yousef, grávida de Falasteen, é cortada e rasgada numa cena macabra, cuja foto corre o mundo).

Na estória, depois disso, Amal e Yousef amargaram as perdas. “Majid, minha história de amor eterno que se tornou nunca mais” [7]·.  Yousef berra e chora e, “seu coração passou a bater movido pelo ódio[8].

E ainda há muito a relatar. [9]
Novamente temos um capítulo muito lindo: O no. 37 - Yousef, o vingador [10], onde o personagem quer justificar sua ação de desespero. A traição, as perdas, o ódio e a desmantelamento de sua vida o conduziram à vingança, mais nada além da vingança...

Anos depois da Intifada – reação dos palestinos ante a ocupação - Amal regressa a Jenin com a filha, para lhe contar a sua própria história. E, lamentavelmente, aí revive e sofre mais um massacre dos israelenses e sucumbe ao seu destino.

A epopeia se encerra em 2002, mas deixa no ar a forte mensagem a favor dos refugiados e dos palestinos.

A autora denuncia claramente a mentira espalhada pelo mundo “Não houve massacre em Jenin”. O relatório oficial das Nações Unidas, escrito por homens que não puseram os pés em Jenin e não falaram com as vítimas nem com os algozes, concluiu que não tinha havido massacre em Jenin. [11].

4)       Susan Abulhawa [12] e a sua mensagem

Esta é uma novela individual e coletiva, com sustentação em fatos verdadeiros e forte inserção na história real. A ficção tem como entorno a realidade. Também se pode afirmar que é um romance inspirado na vida de alguém. Amal parece personificar a autora em vários episódios. 

E de fato, se olhamos a biografia de Susan Abulhawa, chegamos a admitir que seja um romance memorialista. O conteúdo é repleto de referências pessoais e inserção de elementos autobiográficos na existência dos protagonistas.
Para afirmar isso, basta conhecer um pouquinho da biografia da autora:

Seus pais foram refugiados da Guerra de Seis Dias (1967) e depois se mudaram para o Kwait onde Susan nasceu, em 1970.

Sua família foi desmantelada e, em seguida, ela foi enviada para viver com um tio nos Estados Unidos, onde permaneceu até a idade de cinco anos. Depois passou por lares de familiares no Kuwait e na Jordânia. Em seguida, foi enviada para Jerusalém, onde viveu em orfanato por três anos antes de ir aos EUA já com 13 anos de idade. Teve uma Infância instável e sem raízes.

Foi adotada em Carolina do Norte e permanece nos Estados Unidos desde então. Graduou-se em Biologia e frequentou a Escola de Medicina no Departamento de Ciência Biomédica, onde completou o mestrado em Neurociência.

Mais tarde, virou-se para o jornalismo e ficção. Seu primeiro livro foi Mornings in Jenin, publicado originalmente em 2006 com o título Cicatriz de David. Tornou-se um Best seller internacional traduzido para 26 idiomas. Em 2013, Abulhawa publicou uma coleção de poesias intitulada My voice sought the Wind - e foi anunciado seu segundo romance, The Blue between Sky and water (Bloombury,2015). Diversos comentários políticos de sua autoria foram publicados em jornais americanos.

Em 2002,  esteve visitando o campo de refugiados em Jenin, como observadora internacional, em seguida ao ataque de Israel,  e testemunhou atrocidades que relatou da seguinte forma: “What I saw in Jenin was shocking at so many levels”… ..So when I left there, I really wanted to tell their story because I knew nobody was going to talk about it”.. O resultado foi a publicação de Cicatriz de Davi, com o nome de  Mornings in Jenin, em 2010. Foi descrita como uma lírica estória da família Abulhewa, um relato do sofrimento e das perdas e mais perdas, e sucessivos horrores infligidos durante a guerra de 1967, seguida dos ataques a Líbano, Jenin, Sabra e Shatila, e a agonia e devastação impostas aos palestinos.

Tornou-se uma ativista e palestrante frequente, em prol da causa da Palestina. Foi fundadora da ONG Playgrounds for Palestine.

Quando acusada pelo filósofo francês, Bernar-Henri Levy de concentrar clichês anti-Israel e anti-judeus mascarando uma ficção – ela responde que está apenas abrindo a cortina, de forma leve, para mostrar a escura verdade que querem manter escondida.

Alguns depoimentos da autora em Entrevista ou posts não deixam dúvida quanto à mensagem que ela pretende transmitir com o romance. Ela afirma:

·               A narrativa de Israel dominou a literatura. É natural que o primeiro relato venha dos             conquistadores... mas...

Contaram a história que o Ocidente queria ouvir. Era mais fácil escutar uma estória de uma terra sem seu povo. Era um happy end romântico.  O relato palestino não tinha apelo e, inicialmente, não foi recebido pelo Ocidente.”
·       
                “Que a história dos judeus – de perseguição e sofrimento – tenha sido divulgada em             novelas, poesias, filmes e teatros – ela compreende. Mas, porque nossa história                   não foi contada?”

Em conclusão: Recomendamos com veemência este livro, principalmente pelo valor informativo e histórico. [13]

Afinal, para não deixar de levantar uma lacuna, pode-se comentar que os personagens palestinos não apresentam sinais de crueldade humana (mesmo o vingador atua com desespero, como resposta, e não com maldade pura). Falta um “bad guy” – um maldoso – uma personalidade ambígua e complexa na família palestina, para dar mais realismo à condição humana dos personagens. 

Contudo, esta constatação não tira o brilho da ficção que tem a qualidade de prender o leitor. O maior valor está no depoimento, cujo significado, profundidade e emoção não estão nem de longe expressos aqui nesta resenha.






[1]Pag. 390
[2] Pag. 410
[3] O personagem Ari Perlstein, para dar um exemplo, representa o judeu pacifista.
[4] Pag. 54
[5] Pag. 113
[6] Pag. 266
[7] Pag. 339
[8] Pag. 345
[9] Nasce Sara, a filha de Amal, nos Estados Unidos.  Yousef deixa a OLP, e entra num caminho sem volta atuando na clandestinidade e na resistência. Segundo ele: “já era tempo de eles provarem um pouco daquilo que tem feito de nossas vidas (pag. 359)”. E torna-se um terrorista.
[10] Pag. 364
[11] Pag. 341
[12] Dados coletados na Wikipédia, em setembro de 2015

[13] Bibliografia complementar: A indústria do Holocausto – Reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus de Norman Finkelstein // Ver video no Youtube sobre a história na região